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Agenda de um jornalismo em estado de putrefação


Por comiseração, ninguém disse em voz alta, mas o Jozias Insoso virou um cadáver jornalistico. Refugiara-se nas brumas do recesso certo de que a fornalha da crise esfriaria, Sarney cairia e a tucademopigalha venceria. A coisa não foi bem assim, contudo. O PMDB e a base aliada partiu para o ataque e enfrentous as manchetes. A cobertura do Jozias, que já não cheirava bem, entrou em estado de putrefação.

Jorna-lista de 7 folhas, Jozias não é um defunto estreante. Fenecera outras vezes. Como nas vezes anteriores, a morte lhe chega pontualmente, na hora incerta. Jozias parecia condenado a uma posteridade bem superior à que merecera em vida. Se houvesse se dado conta do momento, Jozias teria economizado muito tempo.

Imaginou que poderia refazer a sua hora. Vê-se agora compelido a cuidar dos minutos. Em vez de ponteiros, o relógio de Jozias tem espadas. Para ele, o tempo não passa. Já passou. Envolto em anormalidade, Jozias condenou-se a uma agenda de paranormal. Nos próximos dias, sua rotina deve ser assim:

6h- Sobre o criado-mudo, o despertador grita mais alto do que os soníferos que Jozias tomara na noite da véspera.

6h10- Jozias deixa-se ficar sobre a cama. Deleita-se com a idéia de que a morte é uma das poucas coisas que se pode fazer deitado.

6h15- Jozias entrega-se a reflexões lúgubres. Sempre acreditara na vida eterna. Só não dispunha do endereço. Imaginara que passasse pela presidência da folha. Ilusão.

6h30- Após relutância de meia hora, Jozias se levanta do túmulo de sua mediocridade existencial.

6h35- Jozias tateia a parede. Procura o interruptor. Não é fácil achar o botão da luz depois de morto. Arrasta os chinelos até o banheiro.

6h40- Jozias faz xixi.

6h45- Jozias se olha no espelho. Dá de cara com a folha. É diante do testemunho irrefutável do reflexo que Jozias é mais profundamente Jozias. Ele diz para sua imagem: Eu não estava farto da vida. Ela é que se fartou de mim.

7h- Jozias veste seu terno de vidro.

7h30- Jozias vai à mesa do café. Aguarda-o uma solitária tigela de inhame. Anima-se com a aparência fálica do tubérculo. Degusta-o.

8h- O motorista de taxi chega. Exige que Jozias vá no banco da frente.

8h10- O rádio do taxi cospe na cara de Jozias o penúltimo escandalo de gaveta guardado para ocasião especial. O chofer aumenta o volume.

8h30- Jozias chega ao jornal. Da porta de entrada ao elevador de serviço, percorre 75 metros de repórteres. Vai escrever? Sorri um riso de Monalisa. E silencia.

8h40- O ascensorista sonega o bom-dia ao jorn-alista-zumbi. Cenho crispado, ele mente para o Jozias: “O elevador está enguiçado”.

8h50- Pelas escadas, Jozias alcança o porão da folha. Arrasta atrás de si uma fieira de jorna-listas. Toma o rumo do gabinete. Tropeça num dos escândalos mal escondidos na gaveta e que caiu sob o tapete fofo. Cai. Ouvem-se risos. Levanta. Mais risos.

8h55- Jozias chega à sala da presidência. Com o bico do sapato de cromo alemão, afasta o lixo que se acumula na frente da porta. Entra.

9h- Jozias pede à secretária que lhe providencie um cafezinho.

9h10- Jozias folheia os jornais do dia. Pula as primeiras páginas. Salta os cadernos de política. Passa batido pelos obituários. Estaciona o olhar nos classificados de empregos.

9h40- Jozias recolhe um maço de papéis sobre a mesa. Rosna para a cópia da nota em que o ajudante pedira que se afastasse. Festeja um convite para paraninfo da formatura da primeira turma de ensino à distância da faculdade da família do amigo jorna-lista Claudio Humberto.

10h- Jozias recebe a visita de Ricardo Noblat, cuja companhia tornou-se o pior tipo de solidão. Eles passam em revista a conjuntura. Noblat conclui: Durante o recesso, o PMDB fez barba, cabelo e bigode. Sem trocadilho.

10h30- Jozias discute com Noblat a estratégia para abater em pleno vôo as 11 denúncias protocoladas no Conselho de (a)Ética.

11h- Trancado em seus rancores, Jozias desperdiça o tempo vago dedilhando no computador trechos do novo romance que decidiu escrever: Joaninhas Insosas (com trocadilho, por favor).

14h- Jozias ouve pelo serviço de som a voz que vem do corredor: “Está aberta a redação”. Só então se dá conta de que, entretido com o romance, esquecera-se de almoçar. Dá de ombros. A ruminação das amarguras o saciara.

14h10- ...

15h- ...Não se deve esperar grandeza de quem se rendeu à baixeza.
...
16h20- Jozias devolve a cadeira a Noblat. Antes de deixar a redação o início de um fuxico desaforado de Arthur Virgílio. Faz ouvidos moucos. E resmunga para si mesmo: Roto, grande *#~§¢%¬.

16h30- Jozias refugia-se, de novo, na casamata da imprensa.

17h- Com oito horas de atraso, o garçom serve a Jozias o cafezinho que ele encomendara, pela manhã, à secretária. Jozias leva a xícara aos lábios. O café está gelado.

18h- Entre abespinhado e desacorçoado, Jozias decide voltar para casa. Escadas, porta de saída...

18h15- Jozias procura o carro. E nada. O porteiro informa que seu motorista fora buscar a mulher no cabeleireiro. Oferece ao pseudojornalista um Fiat Mille emprestado. Jozias se dá conta de que, antes mesmo de ser desmentido, se desmentiu.

18h20- Jozias decide tomar um táxi. Leva a mão direita a cabeça. Tenta esconder a careca. O taxista não reconhece o confundível. E estranha o gesto: É dor de cabeça? E Jozias, lacônico: Hum, hum...

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