Sobre a entrevista de José Dirceu por Gilberto Maringoni

José Dirceu sofre uma injusta e assimétrica perseguição política por parte da República de Curitiba, da mídia e da direita, o que vem a ser a mesma coisa. Há pelo menos uma década, sua reputação é constantemente triturada em rede nacional. Sua resistência é admirável.

É dever de todo democrata externar solidariedade ao ex-ministro diante do arbítrio golpista.

Politicamente não tenho nenhuma simpatia por Dirceu. Apesar de ter uma respeitável história de vida no período da ditadura – que inclui uma arriscada volta clandestina ao Brasil, nos anos 1970 -, há pelo menos duas décadas não me parece que sua ação vise algum processo de mudança social consequente.

Dirceu é um competente pragmático que logrou transformar um partido dividido em uma máquina eleitoral eficiente. Sem sua liderança, a vitória de Lula em 2002 não existiria. O ex-chefe da Casa Civil levou a cabo sua missão a ferro e fogo, passando por cima de grupos minoritários e intervindo em seções estaduais, quando isso foi conveniente para a formação de uma maioria partidária estável.

Fora do governo, José Dirceu tornou-se lobista de grandes transnacionais junto ao governo brasileiro. Não é algo ilegal, mas representa atividade politicamente incompatível com alguém que se pretenda uma liderança de esquerda.

Dirceu concedeu uma entrevista ao jornal Brasil de Fato, antes de ser preso. Ao longo das respostas, ele denuncia o golpe e busca fazer uma autocrítica genérica e sem muito foco da ação de sua agremiação no governo federal. É positivo, mas insuficiente para que se entendam as opções tomadas pelo Partido dos Trabalhadores na última década e meia.

Autocrítica nada tem a ver com pedido de desculpas ou com arrependimento. Na verdade, a autocrítica é o início de uma formulação para a ação, um balanço político do realizado até determinado ponto. Examina-se a situação objetiva em época específica, a consciência de quem conduzia o processo e as opções disponíveis. Dirceu não faz isso. Apenas diz erramos aqui, acertamos ali e ponto. Não há decorrências práticas do que fala.

Vale destacar três afirmações do ex-presidente do PT:

1. “NO CASO PARTICULAR, nós estivemos no governo um período maior: 13 anos e meio. Um processo bem longo de hegemonia política. Ganhar quatro eleições em um país como o Brasil não é para amador”.

POR MAIS ELÁSTICO que seja o conceito de hegemonia política, é muito difícil concordar com a ideia de que o PT teve 13 anos de hegemonia política. Nesse período, apenas na seara econômica, o partido incorporou teses muito caras ao neoliberalismo, como ajuste fiscal, recessão como forma de depreciar a força de trabalho, política de juros altos para se combater a inflação e, em alguns períodos, política fiscal expansiva. Ou seja, apesar “ganhar quatro eleições”, a agremiação adotou como suas as ideias do campo adversário. A hegemonia política era do neoliberalismo, em especial no primeiro governo Lula e no último de Dilma.

2. “O PROBLEMA É QUE NÓS FIZEMOS pouca politização e pouca disputa política a partir dos programas que tínhamos. Essa é uma realidade. E não criamos nenhum nível de organização alternativa”.

O PROBLEMA É QUE Dirceu trata politização como algo solto no ar. Não se sabe por qual razão ele tira de cena a necessidade de se despolitizar o partido para transformá-lo em máquina eleitoral potente. Isso seria impossível com um partido questionador e rebelde.
A partir de 1994, o PT começa – de forma clara – a receber doações empresariais, em especial de bancos. Nada fora das regras institucionais.
Para que isso acontecesse e para que a legenda fizesse o giro de prometer não tocar em nenhum ponto estruturante da institucionalidade quando chegasse ao governo, era preciso despolitizar suas ações. Isso se deu a partir da Carta aos Brasileiros, de 2002. As consequências mais visíveis é que, além de atrair gente como Delcídio Amaral e Andrés Sanches, o partido, ao longo de 13 anos buscou jamais se confrontar com qualquer interesse dos de cima. Assim, as 13 indicações petistas ao STF foram materializadas apenas com juristas de direita, as bases da política monetária de FHC foram mantidas, não se andou um milímetro na democratização das comunicações e a Lei de Anistia tornou-se cláusula pétrea da institucionalidade.

3. “TAMBÉM SUBESTIMAMOS A DIREITA e as forças contrárias a nós. Em parte, porque grande parte dos quadros foi para o governo. (...) Acabamos priorizando mais a luta institucional e eleitoral, mais o ato de governar do que a organização partidária e ainda [menos] a politização e mobilização”.

A AFIRMAÇÃO beira o inacreditável. Primeiro, o PT subestimou a direita não em embates de projetos, mas ao se compor com ela sem tensionar a aliança com demandas populares que ferissem interesses dos ricos. Segundo, Dirceu, tacitamente, afirma que os competentes foram para a administração e os menos aptos ficaram no partido. E terceiro, o ex-ministro contrapõe, espantosamente, “luta institucional” a politização. Trata-se de uma sucessão de loopings retóricos sem comprovação real.

Haveria mais a falar, mas o essencial está aqui. Não vou me alongar.

Nada disso justifica a infâmia cometida contra Dirceu. Minhas observações ficam como contraponto político a um dirigente que está sendo vítima de uma perseguição covarde. A ele, solidariedade incondicional.

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