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A princesa empoderada

Esta quem me contou foi um vizinho da minha irmã Lelé. Disse ela que sua amiga Marileide, uma linda mulher, independente, empoderada e de autoestima nas alturas apreciava a natureza numa reserva ecológica, quando de repente...uma rã pulou no seu colo e disse:

- Linda princesa, eu era um lindo e rico princípe. Uma bruxa feia e má  lançou-me um feitiço e transformei-me nesta rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo. A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma: 
- Eu, hein? Nem morta!

Luis Fenando Veríssimo


MPF e STF - pesos e medidas

Recorre-se tanto à frase "dois pesos e duas medidas" para reclamar isonomia nas investigações de casos de corrupção no país que eu proponho o fim da hipocrisia. Oficialize-se, já, dois sistemas de pesos e medidas diferentes no Brasil, um que vale para o PT (Sistema 1) e outro para os outros, principalmente o Psdb ( Sistema 2).

As previsíveis confusões - desencontros em investigações, pedidos de arquivamentos, etc - seriam resolvidas por um conselho arbitral formado por representantes dos dois sistemas. Desde que não fosse presidido pelo Janot, claro.
Paródia Briguilina





"Recorre-se tanto à frase “dois pesos e duas medidas” para reclamar isonomia no julgamento dos casos de corrupção no país que eu proponho o fim da hipocrisia. Oficialize-se, já, dois sistemas de pesos e medidas diferentes no Brasil, um que vale só para o PT (Sistema 1) e outro para os outros, principalmente o PSDB (Sistema 2). As previsíveis confusões — desencontros em construções, conflitos na medição de terras etc — seriam resolvidas por um conselho arbitral formado por representantes dos dois sistemas. Desde que não fosse presidido pelo Barbosa, claro. "
Luis Fernando Veríssimo



Coluna do Veríssimo

no O Globo
O contexto maior, por Luis Fernando Veríssimo
Mais do que em qualquer outro confronto, na luta pela Petrobras, e por tudo que ela simboliza além da exploração de uma riqueza, se definem os lados com nitidez
Recomenda-se a desiludidos com a atualidade em geral e com o PT em particular a procurar refugio no contexto maior. O contexto maior não absolve, exatamente, o contexto imediato, a triste realidade de revelações e escândalos de todos os dias, mas consola. Nossa inspiração deve ser o historiador francês Fernand Braudel, que — principalmente no seu monumental estudo sobre as civilizações do Mediterraneo — ensinou que, para se entender a Historia, é preciso concentrar-se no que ele chamava de la longue durée, que é outro nome para o contexto maior. Braudel partia do particular e do individual para o social e daí para o nacional e o generacional, se é que existe a palavra, e na sua história da região, o indivíduo e seu cotidiano eram reduzidos a “poeira” (palavra dele também, que incluía até papas e reis) em contraste com a longue durée, o longo prazo da história verdadeira. Assim na sua obra se encontram as minúcias da vida diária nos países do Mediterrâneo mas compreendidas sub specie aeternitatis, do ponto de vista da eternidade, que é o contexto maior pedante.
Do ponto de vista da eternidade nada do que está sendo revelado, em capítulos diários, sobre o propinato na Petrobras e os partidos políticos que beneficiou deixa de ser grave, mas é impossível não ver o cerco à estatal do petróleo no contexto maior da velha guerra pelo seu controle, que já dura quase 70 anos, desde que a Petrobras venceu a primeira batalha, a que lhe permitiu simplesmente existir, quando diziam que nunca se encontraria petróleo no Brasil. Mais do que em qualquer outra frente de confronto entre conservadores e progressistas e direita e esquerda no Brasil, na luta pela Petrobras, e por tudo que ela simboliza além da exploração de uma riqueza nacional, se definem os lados com nitidez. A punição dos responsáveis pelos desvios que enfraqueceram a estatal deve ser exemplar e todos os partidos beneficiados que se expliquem como puderem, mas que se pense sempre no contexto maior, no qual a sobrevivência da estatal como estatal, purgada pelo escândalo, é vital.
Fernand Braudel viveu e lecionou no Brasil. Não conheço nenhum texto dele sobre sua experiência brasileira. Seria interessante saber como ele descreveria, ou preveria, hoje, a longue durée da nossa História. O que significaria, na sua avaliação, o longo dia no poder do PT? O contexto maior tudo perdoaria ou tudo justificaria? Enfim, o contexto maior de todos é o Universo, que, no fim, engole todos os significados. O que também não é um consolo.



Seria Levy um "verme moral"?

A altura de Joaquim Levy

por Luiz Fernando Veríssimo

Paul Krugman e Joseph Stiglitz não são donos da verdade, mas são donos de um Prêmio Nobel cada um. Os prêmios lhes dão uma respeitabilidade que eles não encontram entre seus pares economistas, pois são os dois mais notórios inimigos da atual ortodoxia — keynesianos nadando contra a corrente da maioria. Para Krugman e Stiglitz, o receituário ortodoxo para vencer a crise mundial provocada pelo capital financeiro equivale a receitar gasolina para apagar incêndios. O sacrifício de gastos sociais e as outras formas de austeridade vendidas com o nome de fantasia de “responsabilidade fiscal” já provocam reações de consequências imprevisíveis na Europa. Só quem está gostando da irresponsabilidade social oficializada é o capital financeiro, que pariu a crise e ama a sua cria.
Na foto do espantoso novo Ministério da Dilma que saiu nos jornais, destaca-se, além do vestido da Kátia Abreu, o tamanho do ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Ninguém, nem o Rossetto, chega aos seus ombros. O que não deixa de ser simbólico. Levy domina o grupo fotografado com sua altura como dominará o governo com suas medidas de, sim, responsabilidade fiscal e austeridade. E a altura de Levy tem outro significado: será difícil alguém chegar ao seu ouvido. Alguém preocupado com a incoerência de um governo do PT entregar-se tão despudoradamente a uma ortodoxia de efeito duvidoso. Alguém pedindo clemência para os programas sociais ameaçados, talvez a própria Dilma. Se não fosse esperar demais, até alguém pedindo para ele ler Krugman e Stiglitz de vez em quando. Mas o ouvido de Levy é inalcançável, à prova de palpites. Na própria foto, ele parece estar com a cabeça numa camada superior da atmosfera, respirando outro ar. Certamente não o mesmo ar do pastor Hilton, lá embaixo.




Imagino que o Joaquim Levy tenha lido o Thomas Piketty, nem que seja só por curiosidade. Piketty também nada contra a corrente. Se a questão maior para qualquer pessoa que não seja um verme moral é a questão da desigualdade crescente no mundo, Piketty prova que o capitalismo, do jeito que vai, só agravará o problema. Ele chama a pretensão de que uma economia de mercado sem regulação acabará por “elevar todos os barcos” e diminuir as desigualdades de “um conto de fadas”. Mas esse conto de fadas é o outro nome da ortodoxia econômica que querem nos impingir.



A longa indigestão, por Luiz Fernando Veríssimo

no O Globo 

Quando o Brizola se convenceu de que não chegaria à Presidência da República, consolou-se com uma sentença: a elite brasileira teria que engolir um sapo barbudo em seu lugar. Quem estava vivo e consciente na época se lembra do quase pânico provocado pela perspectiva do Lula no poder. Oitocentos mil empresários fugiriam do país. Ninguém sabia ao certo o destino da sua prataria, nem de suas cabeças. A ideia de engolir um sapo, ainda mais um sapo com uma ameaçadora barba cubana, era revoltante. Mas, fazer o quê? Lula foi eleito legalmente, o sapo foi deglutido e empossado. E o pior não aconteceu. Poucos empresários emigraram e os que ficaram, principalmente do setor financeiro, não se arrependeram. E ninguém foi guilhotinado.
É verdade que o PT tratou de tornar-se mais palatável para ser eleito. Prometeu seguir o modelo econômico vigente, com alguns ajustes na área social para honrar seu passado e seus compromissos de campanha, mas sem fazer loucuras. E o sapo barbudo desceu pela goela da nação com a suavidade possível. Já a sua digestão foi outra coisa. Não se muda de dieta tão radicalmente sem consequências ao menos gástricas. Pela primeira vez o Brasil tinha na presidência um ex-operário, vindo das lutas sindicais, que errava a concordância verbal mas mobilizava a massa. Com todas as suas precavidas concessões ao status historicamente quo, o PT não deixava de representar a “classe perigosa”, como a nobreza francesa chamava os pobres antes da Revolução, no poder, o que também não ajudava o metabolismo. A resistência do patriciado brasileiro ao PT tem várias causas: diferenças ideológicas, interesses contrariados, medo, a própria arrogância do partido no governo e suas quedas na corrupção, e — especialmente inadmissíveis — os seus sucessos: distribuição de renda, políticas sociais, desemprego baixo etc. Mas o ódio ao PT só se explica como má digestão.


Doze anos de indigestão: é compreensível a irritação causada pela eleição de mais quatro anos de PT no governo e a continuação da praga do Brizola. Os que se manifestam contra uma suposta fraude no pleito apertado e pedem o impeachment dos vencedores estão exercendo o direito de todo perdedor, o de espernear. Só achei curioso ver, desfilando numa manifestação na Avenida Paulista, uma faixa que pedia a volta dos militares ao poder. Teoricamente, não é preciso mais de três pessoas para fazer e carregar uma faixa daquelas: uma para pintá-la e duas para segurá-la. Fiquei pensando em quantas pessoas no desfile além das três hipotéticas concordavam que outra ditadura militar é preferível ao PT no governo. Talvez ninguém, talvez a maioria. Nunca se sabe o efeito da má digestão num organismo.


Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Pós Fukuyama

Francis Fukuyama (lembra dele?) decretou o fim da História com a vitória definitiva das forças do mercado contra o dirigismo econômico. A sua foi uma das frases mais bem-sucedidas do século passado.

O Muro de Berlim caíra em cima do que restava das ilusões socialistas, a frase não tinha resposta e o capitalismo desregulado não tinha mais inimigos. Dominaria o planeta e nossas vidas pelos próximos milênios.

Como o próprio Fukuyama reconheceu mais tarde numa revisão da sua sentença, a História reagiu. O capital financeiro predatório mantém seu poder de ditar a moral e os costumes da época, mas não não tem mais a certeza de um futuro só dele nem a bênção da filosofia sintética e incontestável do Confúcio da direita.

Se pela História tornada irrelevante Fukuyama queria dizer contradição e conflito, tudo o que aconteceu no mundo depois da publicação do seu livro desmentiu sua premissa. Mostrou que a História está viva, forte e irritadíssima. Nenhuma senhora, ainda mais com sua biografia, gosta de ser declarada inválida antes do tempo.

A crise provocada pelo capital financeiro fora de controle levou protestantes para as ruas na Europa e nos Estados Unidos e transformou “austeridade”, a solução receitada para as vitimas da crise, em palavrão.

Ninguém quer pagar, com o sacrifício de gastos sociais, por uma porcaria que não fez. E cresce a busca por alternativas para os dogmas neoliberais e pelo fim do monólogo dos donos do dinheiro.

E o papel da esquerda na História pós-Fukuyama? O socialismo está numa crise de identidade. Como é difícil, hoje, recuperar o sentido antigo, sem qualificativos, de uma opção pelo socialismo, as pessoas se entregam à autorotulagem para se definirem exatamente, (sou dois quartos de esquerda-esquerda, um quarto de centro-esquerda e o outro quarto deve ser gases), o que só atrasa as discussões que interessam.




Quais são os limites da coerência ideológica e do pragmatismo? O que ainda pode ser resgatado das ilusões perdidas? Por que não se declarar logo um neo-neoliberal e ser feliz?

Num livro recém-publicado, a ex-mulher de François Hollande revela que ele tem horror a pobre. Se pode sobreviver a Francis Fukuyama, a François Hollande e a partidos políticos brasileiros que se chamam de “socialistas” com uma certa imprecisão semântica, o socialismo ainda tem um futuro, mesmo que seja apenas um apelido conveniente para o que se quer.

A escolha continua sendo entre socialismo e barbárie. Pode-se não saber mais o que é socialismo, mas para saber o que é barbárie basta abrir os olhos.

Luis Fernando Veríssimo: os escoceses sairão debaixo das sais da rainha?

Não sei se os escoceses votarão por sair de baixo das saias da rainha Elizabeth hoje, ou não, mas o fato de o ímpeto separatista ter chegado a este ponto (as últimas pesquisas davam um empate técnico entre o “sim” e o “não”) num país do Reino Unido — aquela aconchegante matriz da Commonwealth, que os britânicos inventaram para fingir que ainda têm um império — mostra como nem as presumíveis zonas de conforto do mundo estão livres dos contrassensos da História.


Marina, por Luis Fernando Veríssimo


A comparação da Marina com o Jânio e o Collor é gratuita, mas, se ela for eleita, entrará na lista dos nossos presidentes exóticos — o que não significa que terá o mesmo destino dos outros. 

Mulher, negra, com uma história pessoal de superação da sua origem mais admirável até do que a do Lula, ela seria, no governo, no mínimo uma curiosidade internacional, e talvez uma surpresa.
Acho difícil que sobreviva a todas as suas contradições e chegue lá, mas no Brasil, decididamente, você nunca pode dizer que já viu tudo. Temos uma certa volúpia pelo excêntrico.
A influência da religião numa hipotética administração Marina é discutível. Não se imagina que o bispo Malafaia e outros bispos evangélicos teriam o mesmo poder no governo que tiveram sobre a redação dos princípios da candidata, obrigada a mudar alguns para não desagradá-los.
E o que significaria termos um governo evangélico em vez de um governo católico ou umbandista? Obscurantismo por obscurantismo, daria no mesmo. Outra excentricidade do momento — sob a rubrica "Só no Brasil" — é o fato de a candidata mais revolucionária nestas eleições ser ao mesmo tempo a mais conservadora.
A aprovação quase universal do casamento gay está tornando esta questão obsoleta, para não dizer aborrecida, mas outras questões em choque com princípios religiosos, como a da liberação do aborto e a pesquisa com células-tronco, afetam a vida e a morte de milhões de pessoas.
É impossível saber quantas mulheres já morreram em abortos clandestinos por culpa direta da proibição do uso de preservativos pelo Vaticano, por exemplo.
Não faz a menor diferença para mim, para você e para o nosso cotidiano se Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo porque nem Ele era de ferro, ou se a humanidade descende de macacos.
Eu mesmo adotei uma crença mista a respeito: acredito que todos os antepassados da nossa espécie eram filhos de macacos menos os meus, que foram adotados. Mas a oposição à pesquisa com células-tronco que pode levar à cura de várias doenças hoje mortais não é brincadeira. É criminosa.
Acho a Marina uma mulher extraordinária. Mas, como alguém que está na fila para receber os eventuais benefícios de pesquisas com células-tronco, voto no meu coração.

Sonho e pesadelo

Sonho é:
Comer um churrasco preparado por gaúchos, numa praia do nordeste, com mulheres mineiras, organizado por paulistas e animado por cariocas.




Pesadelo é:
Comer um churrasco preparado por mineiros, numa praia gaúcha, com mulheres nordestinas, organizado por cariocas e animado por paulistas."

Luiz Fernando Veríssimo


Cronica de Luis Fernando Veríssimo

GERAL
O suicida de pijama, por Luis Fernando Veríssimo
Até os 4 ou 5 anos de idade eu fazia xixi na cama. Eu sei que você poderia muito bem viver sem esta informação, mas eu queria contar a lembrança mais remota que tenho da minha infância. Eu no banheiro, antes de dormir, com meu pai ao meu lado tentando me inspirar a fazer xixi na privada para não fazer depois, na cama.

— Vamos, meu filho.

Eu nada.

— Pelo Brasil!

Nada.

— Pelo doutor Getúlio, meu filho!

Mas o xixi não saía, nem pela pátria nem pelo presidente.

O Getúlio Vargas não tinha nenhum poder sobre a minha diurese, mas mandava em todo o resto, no país. Estávamos em pleno Estado Novo.

Um pouco depois meu pai aceitou um convite para lecionar literatura brasileira na Universidade da Califórnia durante dois anos, em parte para fugir da ditadura de Vargas e seu Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP.

Nossa volta dos Estados Unidos em 45 coincidiu com o fim do Estado Novo e a queda de Vargas — que, cinco anos depois, voltaria à Presidência, eleito.

A volta de Vargas em 1951 foi um caso raro de ditador que retoma legalmente o poder, de certa forma legitimando retroativamente o seu governo de exceção. Mas o Getúlio foi um caso raro em todos os sentidos.

Surpreendia que tantas contradições coubessem numa figura tão pequena.

Foi um produto da oligarquia rural responsável pela legislação social mais avançada da sua época e líder de um estado filofascista na origem que se aliou rapidamente à guerra ao fascismo.

Nada representa suas contradições, ou a sua esperteza política, melhor do que o que se dizia dele durante seu apogeu, que era o pai dos pobres e a mãe dos ricos.

Também podia agradar à esquerda e à direita ao mesmo tempo.

A campanha para a sua volta do exílio foi feita em cima de uma marchinha nostálgica que pedia para botarem o retrato do baixinho na parede outra vez.

O fim do Estado Novo tinha deixado um branco insuportável nas paredes da nação. Um nicho sem ídolo.

Sempre me intrigou o fato de o Getúlio ter vestido um pijama para se matar. Não era exatamente um traje adequado para deixar a vida e entrar na História tão dramaticamente.

Talvez fosse apenas outra contradição: um símbolo de cálida domesticidade e velhos hábitos prestes a ser furado por uma bala no coração.

Vá entender.



A salada, por Luis Fernando Verissimo

Vivemos na era da comunicação total. Basta ter um computador — ou melhor (ou pior), um telefone esperto — para ter à mão toda a informação de que se precisa. Já existe a tecnologia para transmitir imagens holográficas de pessoas e coisas, que se materializam, em três dimensões, em qualquer lugar, a qualquer distância, como se estivessem lá.
Nas campanhas eleitorais, já é teoricamente possível o candidato ter contato com o eleitorado sem sair de casa. O chamado “corpo a corpo” não tem mais sentido. Ou tem, mas sem os corpos presentes. O candidato pode estar no palanque de um comício em Maceió e num comício em Porto Alegre ao mesmo tempo, dizendo as mesmas coisas. É ele e não é ele, é sua imagem transmitida e multiplicada.
O próprio comício torna-se uma coisa obsoleta. E diminuem as viagens dos candidatos em aviões que às vezes caem, um risco proporcionalmente maior num país deste tamanho. Tudo isto é fazível, mas ainda é ficção científica e vai demorar para ser realidade. Provavelmente nunca será.
A política irá sempre exigir a presença física do candidato, o aperto de mão, a pele contra pele e o beijo no bebê. Entre o que poderia ser e o que continuará a ser há um abismo, e foi nesse abismo que desapareceu o Eduardo Campos, como já tinham desaparecido outros antes dele e (bate na madeira) desaparecerão outros depois.
A morte de Campos e o alvoroço que causou no seu partido e nos partidos coligados, indecisos quanto à confirmação ou não da Marina Silva como candidata da aliança, mostram mais uma vez a salada ideológica e programática que é a política brasileira. Parte da aliança faz restrições a Marina, o que deve levar seus apoiadores a estranhar que as restrições não tenham aparecido quando ela foi escolhida como segunda da chapa.
Qual é a posição da maioria da aliança quanto às posições da Marina, como sua crítica ao mega-agronegócio, por exemplo? Não se duvida do socialismo sincero da sigla PSB, mas que espécie de socialismo une o resto da aliança? A salada não exclui ninguém, nem o PT, com suas chamadas “alianças espúrias", epitomadas naquela visita à casa do Maluf, uma cena da qual o Lula poderia ter nos poupado.
Nenhum eleitor brasileiro sabe exatamente no que está votando, nessa mistura do pragmatismo dos grandes partidos com o oportunismo dos partidos caroneiros, que não representam nada a não ser sua própria gula por um naco de poder. Uma salada decididamente indigesta.

 


Luis Fernando Veríssimo é escritor 

Papo Vovô

Uma das funções de avô é acompanhar os programas de TV da neta, para poder fazer comentários inteligentes. Tenho cumprido meu papel, mas nem sempre entendo o que está acontecendo.
Pensei que um dos personagens do “Gabriela Estrela” e a Gabriela fossem namorados, mas a Lucinda me corrigiu: 
“Não são namorados, são apenas amigos, vô.” Depois disse a meu respeito, com um certo desdém: 
"Esse guri só pensa em namoro"

Luis Fernando Veríssimo

Luis Fernando Veríssimo: podem rir com o coronel


O Millôr pulverizou a frase feita “Uma imagem vale mil palavras” desafiando: “Diga isso sem palavras”. Mas, em alguns casos, uma imagem, ou uma superimposição de imagens, diz tudo sobre um momento, sem precisar de palavras.

Há dias os jornais publicaram, simultaneamente, duas fotos, uma do Marcelo Rubens Paiva na Flip, interrompendo um depoimento que fazia sobre o desparecimento de seu pai, Rubens Paiva, morto pela ditadura militar, até poder controlar a emoção, outra, a do coronel Wilson Machado, um dos ocupantes do Puma em que explodiu, prematuramente, a bomba destinada a causar pânico e mortes no Riocentro, no 30 de abril de 1981.
O coronel está rindo na foto. Depois de mais de 30 anos desde o seu desaparecimento, a família do Rubens Paiva continua sem saber onde está o seu corpo. Nos 33 anos desde a explosão da bomba no seu colo, o então capitão Wilson Machado teve uma carreira militar normal com promoções sucessivas, chegou a coronel e certamente chegará a general.
A julgar pela sua foto, está em paz com sua vida e sua consciência. Os superiores do coronel, que planejaram e ordenaram o atentado, também não têm com o que se preocupar.
Os responsáveis pelo desaparecimento de Rubens Paiva também não. A própria instituição militar já disse que nada de anormal aconteceu nos seus quartéis durante o chamado “período de exceção”. Todos podem rir como o coronel.

Crônica do dia


Ás vezes as pessoas que amamos nos magoam, e nada podemos fazer senão continuar nossa jornada com nosso coração machucado. Às vezes nos falta esperança. Às vezes o amor nos machuca profundamente, e vamos nos recuperando muito lentamente dessa ferida dolorosa. Às vezes perdemos nossa fé, então descobrimos que precisamos acreditar, tanto quanto precisamos respirar… é nossa razão de existir. Às vezes estamos sem rumo, mas alguém entra em nossa vida, e se torna o nosso destino. Às vezes estamos no meio de centenas de pessoas, e a solidão aperta nosso coração pela falta de uma única pessoa. Às vezes a dor nos faz chorar, nos faz sofrer, nos faz querer parar de viver, até que algo toque nosso coração, algo simples como a beleza de um por do sol, a magnitude de uma noite estrelada, a simplicidade de uma brisa batendo em nosso rosto, é a força da natureza nos chamando para a vida. Você descobre que as pessoas que pareciam ser sinceras e receberam sua confiança, te traíram sem qualquer piedade. Você entende que o que para você era amizade, para outros era apenas conveniência, oportunismo. Você descobre que “algumas” pessoas nunca disseram “eu te amo, e por isso nunca fizeram amor, apenas ”transaram “… descobre também que outras disseram “eu te amo” uma única vez e agora temem dizer novamente, e com razão, mas se o seu sentimento for sincero poderá ajudá-los a reconstruir um coração quebrado. Assim ao conhecer alguém, preste atenção no caminho que essa pessoa percorreu, são fatores importantes… Não deixe de acreditar no amor, mas certifique se de estar entregando seu coração para alguém que dê valor aos mesmos sentimentos que você dá, manifeste suas idéias e planos para saber se vocês combinam, e certifique-se de que quando estão juntos, aquele abraço vale mais que qualquer palavra… 

Esteja aberto a algumas alterações, mas jamais abra mão de tudo, pois se essa pessoa te deixar, então nada irá restar.

Aproveite sua família que é uma grande felicidade, quando menos esperamos iniciam-se períodos difíceis em nossas vidas. Tenha sempre em mente que às vezes tentar salvar um relacionamento, manter um grande amor, pode ter um preço muito alto se esse sentimento não for recíproco, pois em algum outro momento essa pessoa irá te deixar e seu sofrimento será ainda mais intenso, do que teria sido no passado. Pode ser difícil fazer algumas escolhas, mas muitas vezes isso é necessário, existe uma diferença muito grande entre conhecer o caminho e percorrê-lo. Não procure querer conhecer seu futuro antes da hora, nem exagere em seu sofrimento, esperar é dar uma chance a vida para que ela coloque a pessoa certa em seu caminho. A tristeza pode ser intensa, mas jamais será eterna. A felicidade pode demorar a chegar, mas o importante é, que ela venha para ficar e não esteja apenas de passagem.

Luiz Fernando Veríssimo

Vida de cinema, por Luiz Fernando Veríssimo

Os filmes que víamos antigamente não nos prepararam para a vida. Em alguns casos, continuam nos iludindo. Por exemplo: briga de socos. Entre as convenções do cinema que persistem até hoje está a de que socos na cara produzem um som que na vida real nunca se ouviu.

O choque de punho contra o rosto fazia estrago nos rostos — ou não fazia, era comum lutas em que os brigões quase se matavam a murros terminarem sem nenhuma marca nos rostos — mas poupava os punhos. E como sabe quem, mal informado pelo cinema, entrou numa briga a socos, o punho quando acerta o alvo sofre tanto quanto o alvo.

No cinema de antigamente você já sabia: quando alguém tossia, era porque iria morrer em pouco tempo. Tosse nunca significava apenas algo preso na garganta ou uma gripe passageira — era morte certa.

Quando um casal se beijava apaixonadamente e em seguida desparecia da tela era sinal que tinham se deitado. E depois, não falhava: a mulher aparecia grávida. Nunca se ficava sabendo o que acontecia, exatamente, depois que o casal desaparecia da tela, a não ser que o filme fosse francês.

Pode-se mesmo dizer que o começo da mudança do cinema americano começou na primeira vez em que a câmera acompanhou a descida do casal e mostrou o que eles faziam deitados. Depois desse momento revolucionário não demoraria até aparecerem o beijo de língua e o seio de fora. E chegarmos ao cinema americano de hoje, em que, de cada duas palavras ditas, uma é fucking.

Se a vida fosse como o cinema nos dizia, nunca faltaria bala nas nossas pistolas ou gelo no balde para o nosso uísque quando chegássemos em casa. E sempre que tivéssemos de sair às pressas de um restaurante, atiraríamos dinheiro em cima da mesa sem precisar contá-lo e sem esperar que o garçom trouxesse a nota.

Seria uma vida mais simples, em cores ou em preto e branco, interrompida a intervalos por números musicais em que cantaríamos acompanhados por violinos invisíveis, e quando dançássemos com nossas namoradas seria como se tivéssemos ensaiado durante semanas, e não erraríamos um passo, e seríamos felizes até the end.


Claudias Cardinales, por Luis Fernando Veríssimo

Não é que o futebol não tenha lógica. É que a lógica do futebol é itinerante. Muda com o tempo e as circunstâncias. Como o amor no poema do Vinicius, a lógica é eterna enquanto dura — e nunca dura muito, pelo menos no mesmo lugar.

Era lógico, com os jogadores que tinha, que o Vasco da Gama fosse o grande clube brasileiro dos anos 50, base de qualquer seleção nacional. Anos mais tarde, a base de qualquer seleção nacional passou a ser, logicamente, jogadores do Santos e do Botafogo, os melhores da sua época.
Através dos anos, a lógica favoreceu outros grandes times brasileiros, como o Cruzeiro de Minas e ( bons tempos...) o Internacional de Porto Alegre. Times que caíam depois de alcançar a glória não caíam porque a lógica os abandonava arbitrariamente. Caíam porque é da natureza da lógica do futebol ser inconstante. Talvez tenha alguma coisa que ver com o fato de “lógica” ser do gênero feminino.
Por exemplo: a lógica do mundo do futebol nos últimos anos e até recentemente destacava dois times tão superiores aos outros que era difícil imaginá-los decadentes. Um pouco como a Claudia Cardinale no esplendor da juventude, tão mais bonita do que qualquer outra atriz do seu tempo que você não podia imaginá-la envelhecendo e tornando-se o que é hoje, uma senhora respeitável e simpática, ótima pessoa, não duvido, mas definitivamente não a Claudia Cardinale.
Tomamos seu envelhecimento como uma traição. O Barcelona de Messi, Xavi e Cia. e o Bayern Munich de Robben, Schweinsteiger e Cia. não estão tendo um bom ano e arriscam-se a, como a Claudia Cardinale, tornarem-se impostores de si mesmos. A lógica do futebol abandonou-os e concentrou em Madri, onde o Real Madrid foi buscar a Copa da UEFA na goela do Atlético de Madrid, que já se preparava para levá-la para casa, e em Lisboa, onde um improvável Sevilha derrotou o Benfica na decisão da liga europeia.
A decadência, passageira ou não, do Barcelona e do Bayern Munich deve nos alegrar. A seleção da Espanha é o Barcelona com alguns retoques e a da Alemanha é o Bayern Munich travestido. Como são duas das quatro favoritas na Copa que se aproxima (as outras duas, na minha opinião, são Argentina e Brasil), é bom que estejam mal. Má notícia é o que está jogando aquele argentino Di Maria do Real Madrid. Como se a Argentina precisasse de ainda mais força no ataque. Trememos.

Loiras, por Luis Fernando Veríssimo


O filme “Grace de Mônaco” dividiu as opiniões em Cannes. Uns não gostaram e outros odiaram. O correspondente do jornal inglês “The Guardian” em Cannes chegou a dizer que foi o pior filme jamais mostrado no festival.

O filme não é tão ruim assim. Tem as belas vistas de Mônaco e... Bem, tem as belas vistas de Mônaco. Nicole Kidman está bonita como Grace Kelly, mas botaram para atuar ao seu lado como o príncipe Rainier — na pior escolha de elenco desde que Gérard Depardieu foi um Cristóvão Colombo com sotaque francês tão carregado que você ficava esperando que a reação dele ao descobrir um novo mundo fosse “Ulalá” — Tim Roth, com a sua permanente cara de “alguém deu um pum”.
Segundo o filme, foi a simpatia de Grace Kelly que impediu a invasão do Principado de Mônaco por Charles de Gaulle — que no filme é representado, este sim, por um ator convincente, ou pelo menos com um nariz convincente.
Há uma cena em que, participando de um jantar beneficente no principado, De Gaulle sente à sua volta o amor que Grace desperta entre seus súditos e você vê na sua cara toda a política externa da França sendo revisada. Deve ter sido uma das cenas vaiadas em Cannes.


Mas a loira do momento na França não é Grace Kelly, é a Marine Le Pen, depois da retumbante vitória da direita nas recentes eleições de representantes franceses no Parlamento Europeu.
A vitória da direita só não retumbou mais porque não alterou a composição do Parlamento francês, onde a Frente Nacional de Le Pen tem escassa representação, não foi acompanhada por uma guinada para a direita tão radical no resto da Europa e todos sabem que a política francesa é ciclotímica — pula da direita para a esquerda e da esquerda para a direita com desenvoltura de macaco.
De qualquer maneira, até avaliação eleitoral em contrário, a Frente Nacional é hoje o maior partido do país. Grande parte do seu sucesso se deve a Marine, mais simpática do que seu assustador pai Jean-Marie, e que conseguiu transformar um partido xenófobo, racista e antissemita numa opção política palatável, e vencedora.
Discute-se o que é mais perigoso, uma direita dissimulada com boa cara ou uma direita assumidamente carrancuda. O sucesso da loira Marine deve ser visto num contexto bem maior e menos simpático do que ela, de populismo reacionário, de revolta contra imigrantes e de antiesquerdismo primário. Um contexto que se alastra pela Europa toda e agora tem uma vendedora sorridente...

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Inúteis
As eleições para o Parlamento Europeu que acontecem neste fim de semana são um plebiscito disfarçado sobre o futuro da Comunidade Europeia. Entre os candidatos pedindo votos há um forte e barulhento grupo — talvez uma maioria — que é contra a comunidade e, portanto, quer ser eleito para uma instituição que pretende destruir.

As razões para sabotar a União Europeia vão desde o nacionalismo emocional até a reação da Europa do Norte ao atraso que representam as economias letárgicas da Europa do Sul e à ameaça de admissão de mais países problemáticos à comunidade, favorecendo a invasão de mão de obra barata do Leste. E passando pelo ressentimento de muitos com o domínio da Alemanha de Merkel sobre todos. A receita de frau Merkel para a saúde geral da comunidade é apfelstrudel,apfelstrudel e não tem conversa.
Assim, boicotada por dentro, a Comunidade Europeia caminha para ser outra Nações Unidas, um monumento à inutilidade de uma boa ideia. As Nações Unidas também nasceram como um projeto de congraçamento, para substituir as guerras pelo debate e o embate irracional pela razão.
É só lembrar todos os conflitos que acometeram o mundo desde que as Nações Unidas existem, sem que a organização pudesse evitá-los ou condicionar a política de grandes potências, para desesperar a Humanidade.
A ONU faz um trabalho valioso nas áreas da saúde e da alimentação internacionais e continua lá, no seu imponente prédio à beira do East River, mas, no seu propósito principal, fracassou. A Comunidade Europeia também tem um vistoso Parlamento, em Bruxelas, simbolizando sua própria frustração.
É difícil imaginar um retrocesso radical e imediato do seu projeto de união — embora até a permanência do euro, a moeda única de uma nação fictícia longe de ser única, esteja sendo posta em dúvida — mas o resultado das eleições deste fim de semana pode muito bem sinalizar o prelúdio de um suicídio.

A televisão francesa não para de mostrar razões para ninguém ir ao Brasil, na Copa ou em qualquer outro momento. Ao mesmo tempo as agências de viagens não param de vender pacotes para franceses irem à Copa. E a música do Brasil está em alta como nunca em Paris, até em lugares inesperados.
Três cantoras francesas e uma guitarrista fizeram um show há dias no Teatro Bouffes du Nord só de compositores brasileiros, de Villa-Lobos a Hermeto Pascoal e incluindo “Tico-tico no fubá”. Uma cantora francesa chamada Malu le Prince está resgatando a obra injustamente esquecida do Johnny Alf. E um show da Stacey Kent com um quarteto de cordas no Teatro Chatelet não só tinha uma maioria de canções do Tom Jobim e outros brasileiros como acabou em batucada. Você acreditaria na Stacey Kent tocando agogô?

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Othelo
Para quem gosta de cinema, Paris é um banquete. Duvido que outro lugar do mundo tenha tantas salas de exibição, entre cinemões e cineminhas. Além dos últimos lançamentos, estão sempre em cartaz reprises de filmes clássicos e festivais de diretores cultuados.
Um favorito reincidente nestes festivais é Ernst Lubitsch, o judeu alemão que representou como ninguém a efervescência cultural de Berlim entre as duas guerras, e, depois, levou para Hollywood seu humor sofisticado.
Gostos rarefeitos como o por comédias americanas dos anos 30 e 40 com o chamado “toque de Lubitsch” são servidos permanentemente em Paris, em pequenas salas onde as instalações precárias não prejudicam nem o conforto dos fanáticos nem a qualidade da projeção.
Foi num desses cinebutiques que vimos recentemente a colaboração de Shakespeare e Orson Welles em “Othelo”, numa versão restaurada. Eu me lembrava de ter visto o filme no seu lançamento nos Estados Unidos, quase 60 anos atrás. Revi agora com, literalmente, outros olhos, pois, infelizmente, não sou uma versão restaurada de mim mesmo.

Orson Welles em Othelo

Orson Welles é, de certa maneira, um anti-Lubitsch. Enquanto o alemão só teve prestígio e sucesso por toda a vida, Welles precisou brigar para fazer seus filmes, sem contar os que não conseguiu fazer.
O fato de ser o autor do que é universalmente reconhecido como um dos melhores filmes de todos os tempos, “Cidadão Kane”, não o ajudou. “Othelo” levou três anos para ser filmado. Sem produtores dispostos a patrociná-lo, Welles usou o próprio dinheiro, ganho com seu trabalho como ator, para financiá-lo.
O maior problema, quando as filmagens eram retomadas depois de cada interrupção por falta de dinheiro, era conseguir reunir de novo o elenco. O resultado dessa irregularidade só aparece no filme na variação da maquiagem do mouro, que, em certas cenas, está mais escuro do que em outras.
Fora isso, o filme é impressionante. Nunca, com exceção, talvez, do cinema expressionista alemão, ângulos de câmera e enquadramentos insólitos foram usados tão poderosamente para criar um clima de presságio e drama.
Hoje, um estilo de filmagem parecido seria considerado preciosismo, mas a idade deu uma certa respeitabilidade ao exibicionismo de Welles. Você o degusta com prazer.
“Othelo” tem algumas das expressões mais citáveis de Shakespeare. “Pompa e circunstância’’, por exemplo. E a autodefinição de Othelo como “alguém que amou não sabiamente mas demais’’. E sua gratidão à doce Desdêmona por ter recompensado o seu relato de batalhas e sofrimentos com “a world of sighs”, um mundo de suspiros.
Como em todas as versões de Shakespeare no cinema, você sente não poder assisti-la com um glossário do lado, para não perder nada da linguagem. A solução é resignar-se a não entender a metade e gostar de tudo. Ainda mais na voz “tim-maiesca” de Orson Welles.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo


O Chico Caruso — cartunista, chargista, cantor e cômico — conta a anedota com perfeito sotaque alemão. Numa cervejaria lotada da Munique atual as pessoas vão pouco a pouco se dando conta da presença de uma figura conhecida entre eles. Será mesmo quem estão pensando? Não pode ser. Mas é: Adolf Hitler está ali! Começa, a princípio baixinho, mas depois aumentando de volume, um coro: “Volta, volta...”

Hitler resiste, mas, finalmente, o clamor se torna irresistível. Ele, então, se ergue, pede silêncio, e declara:
— Está bem, eu volto. Mas desta vez não vou ser bonzinho não!
Uma versão ampliada da anedota deu num romance chamado “Ele está de volta’’, do filho de mãe alemã e pai húngaro Timur Vermes, que fez sensação na Alemanha e está fazendo o mesmo no resto do mundo. Já existe uma tradução em português.
No romance, narrado na primeira pessoa, Hitler inexplicavelmente volta à vida — nem ele sabe explicar como — e encontra uma Alemanha em plena crise moral, com uma juventude imbecilizada pela televisão, YouTube, reality shows e similares, invadida por raças escuras que no seu tempo eram caçadas como inferiores — e governada por uma mulher! Hitler tem uma solução radical para todos os problemas da Alemanha e o romance acaba com ele sendo cortejado por vários partidos para voltar à política.
Timur Vermes escreveu uma sátira histórica (a ascensão do nazismo e os anos de vigência do Terceiro Reich são recontados do ponto de vista do ex-führer redivivo) e política, mas ela também pode ser lida como nostalgia disfarçada.
Na França, faz sucesso parecido com o do livro do Vermes um filme intitulado “O que foi que fizemos ao bom Deus?”, sobre a família de um católico conservador cujas quatro filhas se casam, respectivamente, com um judeu, um muçulmano, um asiático e um negro, para desespero dos pais. No fim, tudo acaba bem e o filme é uma cálida lição de tolerância — ou não é.
Há quem o veja como um alerta contra o multiculturalismo e a miscigenação. Tudo depende da identidade ideológica de quem o vê. O crítico do “Le Monde’’ disse que o filme parece feito de encomenda para a Frente Nacional, xenófoba e reacionária. Já o crítico do direitista “Le Figaro” adorou.
O livro “Ele está de volta’’ termina com a criação de um slogan para Hitler usar na sua campanha eleitoral. O slogan é “Não foi tudo ruim’’.