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Cultura

Glauber o subversivo, por Zuenir Ventura - O Globo
A Comissão da Verdade do Rio promove hoje à tarde, no Parque Lage, uma homenagem a Glauber Rocha, quando entregará a seus filhos uma série de documentos encontrados no Arquivo Nacional, entre os quais uma entrevista à revista britânica “Time Out”, de 1971, onde revelava que estava sendo perseguido pela ditadura militar e que considerava o Brasil de Médici “um estado totalitário”, comparável ao “nazifascismo alemão”.

Zuenir Ventura

Um remédio mais radical
Pensando bem, de cabeça inchada mas fria, o contrário seria pior: ganhar dentro e perder fora de campo. Perdemos a Felicopa, mas realizamos a melhor das Copas — a Copa das Copas, como a presidente Dilma prometia e a gente ironizava. Nós, jornalistas, somos mesmo profetas do passado, quase nunca acertamos o futuro.

Esperávamos o sucesso nos gramados, e anunciávamos o caos nas ruas, aeroportos e portos. Erramos, embora se saiba que as obras ficaram inacabadas, assim como outros legados de infraestrutura.

Mas no momento o que interessa é que recebemos o elogio quase sem restrições dos colegas estrangeiros, o reconhecimento das delegações adversárias à nossa hospitalidade, à organização, à tolerância bem-humorada para com as provocações dos espaçosos hermanos, admitida até por eles mesmos.




Tudo isso foi um bálsamo para aliviar o que a psicanálise chama de “ferida narcísica”, que é quando a autoestima chega ao baixo nível a que chegou a nossa após as duas derrotas.

Contribuiu para a depressão nacional a interpretação ao pé da letra de Nelson Rodrigues. A seleção, muito menos a atual, não é a pátria de chuteiras, não representa a pátria sem chuteiras.

Isso foi uma hipérbole do genial cronista, que um dia escreveu que toda unanimidade é burra e hoje, por ironia, aceita-se unanimemente o que escreveu ou disse. Nessa linha, para quem gosta de alegorias e símbolos, a despedida dos brasileiros foi com lágrimas, enquanto a dos argentinos, sempre mais dramáticos, foi com os vômitos de Messi.




A propósito, como torci pelos alemães, fui cobrado por não ter sido movido pelas razões geopolíticas, e sim pela rivalidade futebolística. Tive que dizer que adoro o tango, reverencio Jorge Luis Borges, curti os filmes “As nove rainhas”, “O segredo dos seus olhos” e “O filho da noiva”, mas — e talvez aí esteja o principal motivo de uma certa animosidade — tenho inveja do nosso vizinho por ser apenas bicampeão do mundo em futebol, mas penta em Prêmios Nobel. Eu trocaria duas de nossas honrosas taças por pelo menos uma das cinco deles, a da Paz, já que têm duas só nessa categoria.




Enfim, depois da overdose desses últimos 30 dias, acho que vou adotar uma dieta detox, o sistema de alimentação que consiste em ajudar o corpo a eliminar toxinas. Só não recomendo o mesmo para o futebol brasileiro porque o grau de intoxicação em que se encontra o organismo em causa, a começar pela CBF, não se resolve com demissão de comissão técnica — necessita com certeza de um tratamento demorado e bem mais radical.

Zuenir Ventura é jornalista

Zuenir Ventura

Comendo o adversário


Zuenir Ventura, O Globo

Embora no Brasil ninguém mais coma ninguém por via oral, minha amiga Ceres costuma promover uma espécie de rito antropofágico nos dias em que a nossa seleção joga, com a degustação de pratos típicos do país adversário — não para absorver suas virtudes, como faziam os índios canibais, mas para secar o time.
Em geral dá certo, como deu esta semana com a Croácia. Depois de muitas pesquisas dos ingredientes, temperos e maneiras de cozinhar, foi oferecido o seguinte menu: “patiscada” (lagarto redondo, alho fatiado, bacon, cenoura e mais 15 componentes), “peka od hobotnice” (polvo cabeça limpa, com alho e batatas) “poriluk cuspajz” (alho-poró, toucinho defumado, batatas) e, como sobremesa, “povitica” (enrolado de nozes com farinha, gemas de ovo, semente de papoula).
Gostei mais da comida do que de tudo que o exigente “patrão Fifa” preparou, a começar pelo show de abertura, cafona e chinfrim, considerando que o Brasil, com festas como o carnaval e Parintins, já ensinou ao mundo como realizar emocionantes espetáculos populares.
Pior ocorreu com a cena em que um paraplégico conseguiu ficar de pé e chutar uma bola. Resultado de anos de estudos do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, a experiência, prevista para o centro do campo, acabou acontecendo num canto e quase não foi vista, já que os organizadores cortaram o tempo da apresentação.
Também não gostei da seleção num jogo em que a vitória, apesar de merecida, não refletiu o equilíbrio entre as equipes. Se houvesse lógica no futebol, o resultado seria de 2 a 0, já que tanto o gol da Croácia, feito por Marcelo, quanto o do pênalti, cavado por Fred, foram, digamos, atípicos.
Ainda bem que houve compensações para o mau desempenho. A principal delas foi ver Neymar jogar. Nada se aproxima mais de uma obra de arte do que os dribles, os passos de balé, os movimentos corporais desse artista genial de 22 anos, que ainda por cima costuma transformar essa coreografia em belos gols.

Oscar. Foto: Marcos Ribolli

Se ele foi indiscutivelmente o melhor em campo, o segundo lugar coube ao injustiçado Oscar, que calou os que queriam barrá-lo. Foi quem mais desarmou os adversários, segundo estatística do jogo, quem deu o passe para um dos gols de Neymar e quem fez o seu de bico. Se, como todo mundo diz, o importante é o resultado, que a seleção continue assim.
Um destaque para o que aconteceu fora do gramado no Itaquerão. A torcida demonstrou que é possível gostar de futebol e criticar a Fifa e o governo. Em seis cidades-sede houve manifestações de pequenos grupos com violência e vandalismo, resultando em 17 feridos e 70 detidos.
Será que esses protestos tiveram o efeito das vaias e xingamentos que o estádio dirigiu à presidente Dilma e a Joseph Blater, e que foram vistos e ouvidos por milhões de pessoas em todo o país?

Hoje é o dia

Lista de Convocados Seleção Brasileira 2014
Essa seleção pode não ser a melhor da história, mas talvez seja a mais simpática. A cena do Neymar correndo para resgatar o menino que estava sendo retirado de campo no treino é um exemplo. Julio Cesar pulando a cerca para dar autógrafo é outra. O sorriso de David Luiz com aquela cabeleira de anjo barroco revolta ao vento é irresistível.
Calazans e Renato, que entendem de futebol, me corrijam, se for o caso, mas acho que não há entre eles nenhum bad boy como Edmundo, nem marrento como Romário. Vamos ver como será recebida mais tarde.
O comportamento do paulista é uma incógnita para mim, pelo menos na política. A cidade e o estado estão, como se sabe, enfrentando muitas dificuldades: engarrafamentos de até 344km, violência urbana, greves, manifestações e até falta de água. Pois bem, nada disso abalou o prestígio do governador Geraldo Alckmin, que hoje venceria as eleições com 44% dos votos.
O segundo colocado, Paulo Skaf, teria 21%, e o terceiro, Alexandre Padilha, do PT, apenas 3%, segundo a pesquisa do Datafolha divulgada esta semana. Dilma em queda deve estar querendo desvendar o segredo do sucesso desse que o humorista José Simão já apelidou de “picolé de chuchu”.
Isso me lembra um colega de Simão, o casseta Bussunda, ao revelar numa enquete de jornal “o lugar mais estranho em que tinha feito amor”. As pessoas citavam: banheiro de avião, debaixo de uma escada, em cima do capô de um carro, num elevador em movimento. Ele respondeu: “São Paulo.”
Voltando ao futebol, os entendidos dizem que o time de Felipão só tem um craque, craque mesmo, que é Neymar. Os outros são bons jogadores, um ou outro até ótimo, mas que não fazem a diferença, o que não impediu, porém, que ganhasse brilhantemente a Copa das Confederações.
Quem sabe não vai acontecer agora o inverso de 78, 82 e 98. No primeiro caso, o Brasil terminou invicto, mas em terceiro lugar, e isso levou o treinador Cláudio Coutinho a se consolar com a declaração: “Somos os campeões morais.”
No segundo caso, a seleção de Telê Santana, de craques como Sócrates, Zico, Falcão, Júnior, Roberto Dinamite, grande favorita, também perdeu. O futebol-arte foi derrotado por três gols do italiano Paolo Rossi. E a de 98, que tinha tudo para ganhar, não fossem a polêmica convulsão de Ronaldo Fenômeno e o apagão do time, goleado pela França por 3 a 0.
Torço para que o resultado de amanhã seja pelo menos o mesmo do jogo contra a Sérvia, em que o Fluminense venceu por 1 x 0. Falando nele, consta que Fred comprou um apartamento na rua onde mora Alice, minha neta tricolor de 4 anos e sete meses. Metida como é, deve estar achando que é por causa dela.
por Zuenir Ventura

Com vocês, um analfabyte

Às vezes, acho que sou o único no mundo a não usar celular, a não ter página no facebook, a não acessar blogs e a nunca ter enviado ou recebido uma mensagem por Twitter, o que não me impede de eventualmente aparecer nessas redes dando opinião, recomendando produtos, ditando regras, dizendo coisas aceitáveis e até bobagens que muita gente curtiu.
Já tuitei, por exemplo, o elogio rasgado a um artista que admiro, tudo bem. Mas, e se eu tivesse falado mal dele? Pior foi a descoberta, que já contei aqui, da existência do que chamei de meu “fakebook”. Depois de não sei quanto tempo e de algum sucesso junto a inúmeros e desprevenidos seguidores, soube da fraude, reclamei e a página foi retirada do ar.
E se um amigo não tivesse me avisado? Como adivinhar o que é falso em meio a informações corretas e outras que poderiam ser? Censura, nem pensar. Mas não haverá um filtro para impedir esses e outros contos do vigário virtuais? É um dos problemas que a internet ainda não resolveu e que tira dela a credibilidade.
No entanto, não é por isso que sou um analfabyte, é por incompetência mesmo, o que me deixa “desconectado”, isto é, isolado de um mundo em que as pessoas cada vez mais passam horas diante dessas redes sociais vendo a vida passar. Foi-se o tempo do contato direto, do boca a boca, do olho no olho. É como se toda comunicação hoje tivesse que ser mediada por uma tecnologia: internet, TV, rádio.
Por isso, e porque não aguento mais o desprezo por não saber lidar com as novas ferramentas, estava decidido a me atualizar e entrar para o facebook. Mas aí li que uma pesquisa da Universidade de Princeton chegou à conclusão de que essa rede está em declínio e perderá 80% de seus usuários até 2017. O mais curioso é que o estudo usa o “modelo epidemiológico”, ou seja, trata o hábito ou mania como uma infecção, que se adquire por contágio, pelo contato com outras pessoas. Ou seja, como uma doença.
Eu já desconfiava, pelo menos nos casos crônicos, mas não disse nada com medo de que o doente fosse eu.
Duas cenas chamaram a atenção no acidente com o trem que descarrilou no Rio na quinta-feira. A primeira foi a foto do secretário estadual de Transportes às gargalhadas, enquanto as pessoas, num sol de 50 graus, caminhavam desesperadas pelos trilhos em busca de condução alternativa. De que será que ele ria tanto?
A outra foi a declaração do presidente da SuperVia elogiando a “rapidez” com que o tráfego foi restabelecido: “Nosso pessoal está de parabéns.” Ele se referia ao fato de que os trens voltaram a circular 13 horas depois. Será que estava falando sério ou era para rir também?

Saindo dos armários

Uma das diferenças entre Barack Obama e Bill Clinton, ou melhor, entre a época de um e a de outro, pode ser observada na última declaração do atual presidente sobre drogas. Em termos de costumes, a geração do marido de Hillary usava a meia verdade para confessar pecados do passado. Quando admitiu ter fumado maconha na juventude, fez logo a ressalva hipócrita: “Fumei, mas não traguei.” Ah, bom, então tudo bem. Já Obama revelou com todas as letras ter fumado, tragado a outrora chamada “erva maldita” e, pior, cheirado cocaína.
Fernando Henrique, que hoje encabeça uma corajosa campanha pela descriminalização do uso das drogas, teria dito o mesmo. Mas ele nega, até porque, garante, nunca usou nem cigarro comum (na campanha para a prefeitura de SP, em 1985, Jânio Quadros difundiu o boato devastador de que seu adversário, se eleito, o que não aconteceu, iria promover a distribuição de maconha nas escolas públicas).
Agora são tempos de abrir os armários. Veja outro tema tabu, a homossexualidade, cuja defesa não é mais apenas uma bandeira dos militantes. Depois que o STF reconheceu por unanimidade a união gay como legal (com direito a herança, pensão e adoção) e depois que o Papa Francisco recusou-se a estigmatizar os homossexuais (“Quem sou eu para julgá-los?”), a condição deixou de ser uma doença ou uma patologia social para ser o que é, uma opção sexual, com visibilidade cada vez maior em filmes, peças e novelas.
Apenas um exemplo. O personagem mais carismático de “Amor à vida” é uma bicha — e bicha má, como ele mesmo se classificava, de jogar criancinha em caçamba. O público já esqueceu essa e outras maldades de Félix, continua achando graça em seus trejeitos, está aceitando como natural sua redenção e torce para ele ficar com Nico, a bicha do bem. Se isso não acontecer, não será pela vontade popular, mas talvez porque, tecnicamente, a solução se mostraria impraticável. Segundo me ensinou um entendido, os dois só conjugam na voz passiva, o que tornaria a união homoafetiva inutilmente redundante. A conferir. Cartas para a coluna do Ancelmo.
Pode-se alegar que esse liberalismo só acontece na arte, já que na vida real, aqui e lá fora, continua havendo preconceito e violência homofóbica. Ou seja, mesmo num mundo ideal, sem intolerância, haverá sempre resíduos, como um Marco Feliciano e um Putin, para lembrar Shakespeare: “O mal que os homens praticam sobrevive a eles.”
Já tenho minhas divas do verão. São elas Soraya Ravenle, do musical sobre Chico Buarque; Laila Garin, de “Elis”; Dira Paes e Patrícia Pillar, de “Amores roubados"; Maya Gabeira, das ondas gigantes; e, mais formosa e irresistível do que todas, Alice, que dispensa justificativa.
de Zuenir Ventura

Rolezinho, inclusão ou transgressão?


Está anunciado para chegar amanhã ao Rio e a outras capitais um movimento social que vem dividindo opiniões e dando muita dor de cabeça às autoridades paulistas. São os rolezinhos, encontros que centenas de jovens da periferia combinam pela internet para acontecer em shopping centers, onde vão não para comprar, mas para se divertir cantando funk, correndo pelos corredores, namorando, zoando e, como alegam, protestando contra a falta de opção de lazer na região onde moram.
Nos cinco que foram registrados desde dezembro, quando começou a onda, houve oito boletins de ocorrência e medo entre lojistas e frequentadores. Alguns centros comerciais conseguiram na Justiça liminares proibindo as invasões e permitindo barrar a entrada de possíveis manifestantes.
Fenômeno comportamental, protesto político ou caso de polícia? O debate está aberto, com posições divergentes. Houve quem criticasse severamente a decisão judicial, como a ministra da Igualdade Racial, Luiza Bairros, para quem os jovens são “vítimas de discriminação racial explícita”. Ela acha que os problemas decorrem da reação assustada de “clientes brancos”. Simples assim. 
Em ano de eleições, o governador Geraldo Alckmin também identificou-se com a agitação, lembrando que no seu tempo fez rolezinhos na praça, em cena difícil de imaginar. Avisou que só acionará a PM se houver roubos ou depredações. Essa também é a posição da Secretaria de Segurança do Rio, que só intervirá contra atos de vandalismo no Shopping Leblon, no Ilha Plaza e no Plaza de Niterói, para onde estão previstas as manifestações de amanhã.

Zuenir Ventura - podia ser pior

Não peço muito para 2014, até porque no ano passado, por essa mesma época, fiz uma lista de doze desejos e vejam abaixo algumas de minhas frustrações. Eu dizia, por exemplo, que ficaria feliz em 2013...
  • “Se o tricolor repetir o brilhante desempenho de 2012.” Não repetiu e ainda teve que apelar para o tapetão.

  • “Se os mensalões do PSDB e do DEM forem julgados pelo Supremo Tribunal Federal com o mesmo critério e rigor com que foram tratados os aloprados do PT. Não por represália, como querem alguns, mas por uma questão de equidade e justiça.” Continuo aguardando.
  • “Se eu não precisar embarcar (ou desembarcar) no aeroporto Galeão-Tom Jobim ou no Santos Dumont num dia de calor.” Sem comentários.
  • “Se as autoridades conseguirem impor a ordem no caos do nosso trânsito de cada dia — inclusive das bicicletas que em geral não respeitam as calçadas nem o sinal vermelho.” Piorou.
  • “Se o Rio continuar lindo e adorável — só que um pouco menos quente.” Como se sabe, ficou mais quente ainda.
  • “Se Alice superar a sua crise existencial por causa do ciúme do irmãozinho Eric.” Nem nisso fui atendido.

  • Se no próximo réveillon houver menos confusão do que neste que passou, com arrastões, roubos em frente ao palco principal e até troca de tiros, com doze pessoas feridas. A cena dos documentos roubados ou perdidos espalhados pelo chão de uma delegacia foi patética (ainda bem que o delegado foi exonerado). Saudades do tempo em que os turistas estrangeiros se extasiavam com o espetáculo e pediam explicação, como um francês me pediu uma vez: “Como é que vocês conseguem juntar 2 milhões de pessoas sem tumulto e violência?”

De qualquer maneira, em matéria de violência, o destaque não foi daqui, mas do eterno feudo dos Sarney, que já disputava o título de mais pobre. Agora, ostenta o de campeão no quesito barbárie. O que aconteceu em 2013 no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, chocou os juízes do Conselho Nacional de Justiça: mais de 60 presos foram selvagemente assassinados dentro da prisão (alguns tiveram a cabeça decepada), onde também chefes de facção criminosa promoviam espetáculos de estupros de mulheres e irmãs de bandidos rivais à vista de todos.
O estarrecedor relatório do CNJ ao presidente do STF levou o governo do estado a ocupar o presídio com a PM. Parece que não adiantou muito. Logo nos primeiros dias deste ano, mais dois detentos foram encontrados mortos dentro de celas. Portanto, na hora de lamentar as mazelas do Rio, devemos nos lembrar de um consolo: é que podia ser pior, muito pior.
Podia ser o Maranhão.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Há dias, na sua coluna, num texto exemplar como sempre, o Zuenir Ventura lembrava que há 45 anos era assinado o Ato Institucional n° 5, que instaurava a ditadura sem disfarces no Brasil. Congresso fechado, fim dos direitos constitucionais, censura e repressão a valer, poderes absolutos para o governo militar, e que se danassem os escrúpulos.
Os escrúpulos não tinham sido suficientes para deter o golpe de 64, mas alguns ainda sobreviveram por quatro anos. O AI-5 acabou com todos. Também é bom e saudável não esquecer o clima de antiesquerdismo furioso que justificou o golpe de 64 e o golpe dentro do golpe de 68. Ser “de esquerda” era um risco, durante o recesso dos escrúpulos.
Pode-se imaginar que a renúncia aos escrúpulos entre os que assinaram o AI-5 significasse um drama de consciência para alguns, mas foi a desobrigação com qualquer escrúpulo que liberou a mão do torturador. Com a “abertura” foram restituídos os escrúpulos.
Hoje quem é — ou pretende ser — “de esquerda” só se arrisca a ouvir o rosnar da direita, que não parece ser preâmbulo de nada parecido com o que já houve. Mas não custa ficar de sobreaviso, né, Zuenir?

Zuenir Ventura - para não esquecer

Chamado de golpe dentro do golpe, o Ato Institucional nº 5, cuja promulgação completou 45 anos ontem, foi um dos maiores atentados cometidos contra a liberdade de expressão e os direitos humanos. Vale a pena lembrar.
Em uma década de vigência, esse decreto institucionalizando a ditadura militar fechou o Congresso, cancelou o habeas corpus e puniu mais de mil cidadãos, cassando ou suspendendo seus direitos, além de promover a censura de cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, cem revistas, mais de 200 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas. Só o falecido Plínio Marcos teve 18 peças vetadas.
O índex ia de Chico Buarque, um dos mais perseguidos, à comediante Dercy Gonçalves. Já na madrugada de 13 de dezembro, vários jornais foram censurados ou impedidos de circular, e centenas de políticos, intelectuais, jornalistas, artistas foram presos num tipo de operação que mais tarde seria consagrada pelos bandidos: o “arrastão”.
O AI-5 foi assinado por 22 dos 23 membros do Conselho de Segurança Nacional, composto pelos ministros civis e militares reunidos pelo então chefe do governo, marechal Costa e Silva, o segundo ditador a mandar no Brasil no período de 1964 a 1985.
A sessão que aprovou o Ato constituiu um espetáculo semelhante a uma peça do tropicalismo, então na moda, dirigida por José Celso Martinez Correa. Os ministros-atores funcionaram como encarnações alegóricas da hipocrisia e da pusilanimidade.
O único a se portar com dignidade naquela sexta-feira, 13, foi o vice-presidente da República, Pedro Aleixo, que se recusou a apoiar um documento que, como todos leram, instaurava no país o reino do arbítrio, da tortura e do terror. Basta dizer que um preso acusado de delito político ficaria incomunicável por dez dias — cinco a mais do que o Alvará de 1705, usado para arrancar confissão dos inconfidentes mineiros.
Consta que, cheio de dúvidas e quase arrependido, Costa e Silva teria desabafado: “Peço a Deus que não me venha convencer amanhã de que Pedro Aleixo é que estava certo.” Diz-se que o velho ditador tinha esperança de que o AI-5 acabasse logo. Ele acabou antes.
Pelo menos dois remanescentes daquele conselho continuam por aí sem esboçar qualquer revisão crítica do passado: Jarbas Passarinho, ex-ministro do Trabalho e da Previdência, e Delfim Netto, pai do “milagre econômico”.
O primeiro é autor da famosa frase que pronunciou ao emitir seu voto a favor do AI-5: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”. O segundo tornou-se muito respeitado pelos antigos adversários que agora estão no poder e dos quais tem funcionado como conselheiro ou guru. Tão respeitado que eles parecem ter atualizado a imprecação de Passarinho, mudando-a para:

 “Às favas todos os escrúpulos éticos”.