Os trabalhadores que paralisaram as obras do Maracanã por 21 dias tinham entre suas principais reivindicações a conquista de um plano de saúde mais amplo, que alcançasse seus familiares. Nada mais deprimente. Até mesmo os peões estão incluindo, junto com suas reivindicações salariais (ou acima delas) a inscrição nos planos privados, temendo as traumáticas e escandalosas humilhações com risco de vida nos hospitais públicos.
Essa novidade nas pautas dos operários ganha relevo no momento em que a Câmara Federal aprova a regulamentação da Emenda 29, que, teoricamente, garante mais recursos para a saúde pública, ao estabelecer percentuais obrigatórios para a União, Estados e Municípios.
(Teoricamente porque se permanecer a redação atual, os Estados não incluirão como receitas repasses do governo federal para educação, o que reduz suas obrigações atuais em mais de R$ 7 bilhões. E porque a União não tem um percentual fixo: está obrigada a repetir o gasto do ano anterior mais a variação positiva do PIB).
O pleito operário é um atestado berrante do grau de descrédito da saúde pública no Brasil, atacada por informações sinistras: segundo o Sindicato dos Médicos do RJ, de janeiro a agosto deste ano, 6 mil pacientes morreram nos quatro maiores hospitais da cidade, na maioria dos casos devido às péssimas condições de atendimento.
No mesmo momento, uma auditoria da Controladoria Geral da União revelava superfaturamentos e outras irregularidades em seis hospitais federais no RJ, práticas que poderão acarretar um prejuízo superior a R$ 16 milhões.
Todos os discursos a respeito do estado terminal da saúde pública no Brasil abstraem a discussão do principal: com esse modelo de atenção, de natureza quase exclusivamente curativa, não haverá dinheiro que chegue.
De fato, como motor de todo esse quadro de penúria, há um complô de interesses conjugados, que seriam fatalmente afetados se o país adotasse uma consistente política preventiva, que reduziria drasticamente a clientela disponibilizada à gula de tais interesses.
Não se pode dizer que os R$ 150 bilhões orçados este ano pela União, Estados e Municípios sejam suficientes para prover os serviços, desde que houvesse seriedade na sua gestão. No entanto, o modelo em si, com profissionais mal pagos e desmotivados, além das terceirizações, resiste a qualquer iniciativa de racionalização ou aumento de verbas. Hoje em dia, os recursos são maiores do que há dez anos, o que não se reflete nos serviços.
Como acontece em todas as rotinas de um sistema híbrido, em que o público e o privado transam sem qualquer recato, haverá sempre uma saúde pública desacreditada, ao gosto das poderosas empresas que intermediam a preços exorbitantes a chamada medicina de grupo.
Para que se possa pedir mais dinheiro para a rubrica precisam que milhares de brasileiros morram por causa de um atendimento tão imoral que joga até a peãozada no colo do sistema privado, um dos negócios mais lucrativos do país: 1 em cada 4 brasileiros caiu na sua rede, proporcionando um invejável faturamento – em 2010, R$ 73 bilhões contra uma despesa de R$ 58 bilhões, isto é, ganhos de R$ 15 bilhões, ou mais de 20% da receita.
Pode até ser que realmente haja necessidade de alocar mais recursos para a saúde pública. Para Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, "o gasto público em saúde é muito baixo (menos de US$ 350 per capita – inferior a Argentina, Uruguai, Chile, Costa Rica e Panamá). Do total de gastos com saúde, menos de 50% são públicos. São números muito abaixo daqueles dos países que têm sistemas similares ao SUS, inclusive na América Latina".
Quem garante que haverá alguma melhora por conta de mais recursos? O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, calcula que precisamos para a área mais R$ 45 bilhões, isto é, o que se perdeu com o fim da CPMF. Mas esta supressão não repercutiu no atendimento: com ela e sem ela o ambiente caótico é o mesmo.
Em São Paulo, uma única "OS" gerencia 22 unidades hospitalares. O Estado do Rio e a Prefeitura carioca seguem o mesmo caminho. Esse "novo modelo de gestão" aproveita a falência da administração pública, com suas roubalheiras crônicas, sua incompetência generalizada, sua ausência de vocação, com a farsa do "Estado faz que paga e o funcionário faz que trabalha",
para vender uma alternativa nada confiável.
Mais dinheiro na rubrica não significa necessariamente mais dinheiro para os serviços públicos de saúde. Estes estão ganhando uma nova roupagem de privatização, com a transferência de gestão para "organizações sociais".
Ninguém da área quer mudar o sistema ambíguo de que se nutre, responsável por graves distorções que fazem os gastos paralelos em caráter particular superarem as verbas governamentais. E abastecem com o dinheiro dos impostos uma meia dúzia de aproveitadores privados, não só através da terceirização, como das compras superfaturadas de medicamentos e serviços.
Quando digo que ninguém quer mudar, é ninguém mesmo. Todos os atores dessa farsa encontraram como tirar uma casquinha e se beneficiar do pano de fundo, o sistema público combalido. Sem esta condição deprimente, a cadeia de interesses espúrios perde fôlego e não se sustenta.
É como definiu muito bem o senador Cristóvão Buarque, em seu artigo de 27 de agosto último: "no sistema atual, mesmo com o SUS, a doença tem sido motivo para viabilizar o lucro das indústrias farmacêuticas e de equipamentos, bem como o salário de servidores, mais do que para atender aos doentes".
Por conta dessa trama diabólica, o cidadão não passa de bucha de canhão. Nada se faz para preservar sua saúde; pelo contrário, trabalha-se na direção oposta. Doente, precisando de atendimento, submetem-no a um pesadelo cruel, que atinge e dilacera a todos, mas principaliza no ritual macabro os mais velhos e é implacável com os pobres, presos por inanição aos açougues onde o plantonista tem de decidir diariamente quem vai deixar morrer e quem vai ser atendido, como admitiu um médico a alguns deputados que foram saber da situação em hospitais do Rio de Janeiro.
Por conta dessa insuficiência orgânica, 47 milhões de brasileiros já se renderam à bitributação na atenção médica, como acontece na educação, na previdência e na segurança, onde máquinas privadas são irrigadas pelas economias familiares, à margem dos altos impostos cobrados, isso sem falar numa boa fatia de atendimentos pagos à vista: o profissional que se garante liberta-se dos planos e faz seu próprio preço.
Contribui para essa capitulação a incrível conduta dos conselhos regionais de Medicina e dos sindicatos, que , já que os equipamentos públicos não teriam mais salvação.
Concentram suas fiscalizações nos hospitais públicos, enquanto a mídia as noticia como se o remédio mesmo fosse procurar um plano, já que os equipamentos públicos não teriam mais salvação.
Exemplo disso: não foi o CRM quem flagrou medicamentos com prazo de validade vencido na sofisticada Clínica São Vicente, na Gávea, mas sim o pessoal da Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Saúde Pública, acionada por alguém indignado. Na operação, a polícia achou mais de 80 produtos com prazo vencido e deteve o responsável pela farmácia, liberado depois de ouvido.
As fiscalizações fecham os olhos para os prazos de atendimentos via planos: uma consulta pode demorar até três meses, um exame de ultra-sonografia ou ressonância magnética, requisitados em abundância, ídem. Na emergência de um hospital particular, o cidadão pode esperar até 8 horas para ser atendido, nada diferente dos públicos.
Os números são cada vez mais chocantes. Estudo circunstanciado do pediatra Gilson Carvalho, de São Paulo, revela a que ponto chegamos: em 2009, União, Estados e municípios somaram R$ 127 bilhões dos seus orçamentos, enquanto as áreas privadas faturaram R$ R$ 143 bilhões.
Detalhando: a União gastou R$ 58 bilhões; os Estados, R$ 34 bilhões e os municípios, R$ 35 bilhões. Os seguros de saúde faturaram R$ 64 bilhões, os gastos diretos somaram R$ 24 bilhões e os medicamentos custaram R$ 55 bilhões, somando tudo R$ 270 bilhões.
Junte-se a esse diagnóstico a crescente terceirização no âmbito do SUS, mais a renúncia fiscal no imposto de renda da pessoa física para gastos com saúde de R$ 6,5 bilhões, a renúncia fiscal de R$ 5,1 bilhões em medicamentos e os benefícios das entidades "filantrópicas" de R$ 2,1 bilhões. Ou seja, além do faturamento direto, o sistema privado ainda se sacia num modelo que lhe favorece de cabo a rabo cada vez mais.
Se realmente quiserem mais verbas para o sistema público e tiverem boas intenções, terão que ir fundo numa cirurgia transformadora: primeiro, precisam adotar com honestidade os procedimentos preventivos através dos médicos de família; depois, precisarão pagar decentemente aos profissionais da área, exigindo dedicação exclusiva, como preconiza o médico Aloysio Campos da Paz, responsável pela excelente qualidade do atendimento na rede Sarah.
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