A coreografia ensaiada pelo PGR Rodrigo Janot em torno do vazamento do pedido de prisão de Renan Calheiros, José Sarney e Romero Jucá não é um passo qualquer. Constitui uma forma de terrorismo típica de um período político delicado, no qual se utiliza a Justiça do Espetáculo para ameaçar garantias democráticas, em movimentos típicos de um Estado Policial.
Numa época em que ações necessárias contra a corrupção se transformam em ataques a democracia, o difícil é encontrar quem não tenha sua parcela de responsabilidade na corrosão das instituições, mantidas em situação de insustentável irracionalidade.
Começando pelo governo temporário. Ocupado unicamente em impedir a retorno possível de uma presidente afastada do Planalto por um plenário de espertalhões ocupados em salvar a própria pele, um presidente interino multiplica ações demagógicas de perseguição contra a antiga aliada de chapa eleitoral, a quem deve o título de vice e o primeiro lugar na linha sucessória, mas tratou como inescrupuloso vilão de romances capa-e-espada, e hoje mantém em situação que lembra um cerco militar.
Diminuindo-se toda vez que perdeu a oportunidade de enquadrar e disciplinar o foco original do desarranjo institucional -- a Lava Jato -- motor de um desastre político e econômico superior a seus inegáveis benefícios jurídicos, o Supremo escancarou suas escadarias e gabinetes para todo tipo de pressão indevida.
O terrorismo de Janot é inaceitável e aventureiro, mas tem origem conhecida. Assediado pelo mesmo PGR uma primeira vez, o Supremo cedeu o máximo -- prisão e afastamento do senador Delcídio do Amaral -- quando o próprio Ministério Publico admitia pouco mais que o mínimo. O senado também vestiu a carapuça e, por uma maioria avassaladora, manteve na prisão um senador ao qual não deu sequer oportunidade de defesa.
Numa sociedade que abriga uma população carcerária gigantesca -- quarta maior do mundo --, onde 37% dos prisioneiros estão submetidos ao regime de prisão provisória, sem culpa formada, há um pasto imenso para alimentar a demagogia e sucessivas demonstrações de força. Não há necessidade de política. A chantagem é mais eficaz.
Se ceder ao PGR, o Supremo estará afrontando seus próprios valores e princípios. Se não ceder, corre o risco de ser execrado. Não é dificil adivinhar o próximo passo em qualquer caso -- a prisão de Lula, disse Fernando Morais. Na mosca. "Força-tarefa (do Ministério Público) cobra de Teori Zavaski inquéritos de Lula," noticia o Estado, hoje. Conforme o jornal, procuradores "dizem que, neste caso (de Lula), ele está demorando mais do que o habitual para deliberar."
O jogo agora é este. Esqueçam a regras que definem a presunção da inocência, que devem aplicar-se a quem se chama Renan Calheiros, José Sarney e Romero Jucá, também. Lula, igualmente. Esqueçam a separação de poderes. Vivemos tempos de tumulto, uma terra em transe sem ficção e sem o gênio poético de Glauber Rocha. Não é difícil diagnosticar por que.
Você pode ter a opinião que quiser sobre Dilma Rousseff -- e nós sabemos qual é o julgamento da maioria dos brasileiros sobre ela. Mas está na cara que seu afastamento do governo rompeu o último elo vivo entre a presidência da República e o eleitorado. Os poderes estão soltos no ar, ao alcance de quem chegar primeiro. Não só porque o impeachment jamais conseguiu formar um consenso político, indispensável a decisão mais traumática de uma República.
Mas porque o sucessor é uma nulidade do ponto de vista da população. Acusado pelos mesmas denúncias usadas para justificar o afastamento da presidente, apoiado pelos conhecidos farrapos morais de Brasília, a começar por Eduardo Cunha, jamais se ocupou de construir uma relação política com os brasileiros. Ignorou a noção elementar de que ninguém herda o governo de um país de mais de 200 milhões de habitantes como se estivesse recebendo a fazenda de um avô, um direito adquirido, a ser exercido sem atropelo no curso de uma série de trâmites burocráticos. Chega a ser sintomático -- mas preocupante -- que o país volte a preocupar-se com as ideias de generais ocupados com a lei e a ordem, dedicados, assumidamente, à vigilância de movimentos sociais legítimos. Num mesmo movimento, assume-se aquilo que nunca se fez no país, salvo durante a ditadura: a distribuição de verbas de publicidade a partir de critérios abertamente políticos, com a finalidade óbvia de silenciar vozes que ampliam o grau de liberdades públicas ao oferecer espaço a quem sempre excluído do pensamento único.
Seria absurdo imaginar que a crise de representatividade do Estado brasileiro -- é disso que estamos falando no fim das contas -- teve início com Temer. A longa impopularidade de Dilma, marca do segundo mandato, produzida pelo espírito golpista de uma oposição inconformada com o resultado das urnas, mas também alimentada por erros importantes do governo, é um dado essencial. Dilma foi, literalmente, abandonada pela maioria de seus eleitores.
A recuperação demonstrada depois do afastamento, no entanto, aponta um caminho possível. Mesmo fora do governo, ela carrega a legitimidade dos votos de 2014. Isso lhe dá o direito de retornar ao governo e assumir a responsabilidade de iniciar um debate amplo sobre a reconstrução da democracia, num país que necessita, essencialmente, voltar ao básico: o Judiciário julga; o Congresso legisla; o governo executa.
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