De André Petry:
É alarmante a inclinação brasileira para o desvio, para o caminho que contorna o ponto principal, a rota que, no seu melhor trajeto, apenas tangencia o cerne da questão. Tome-se o caso da Agência de Vigilância Sanitária, que, de vez em quando, suspende a venda de um remédio ou cosmético sob a alegação de que falta "o registro". O público não é bobo, e intui que o produto faz mal à saúde, ou foi contrabandeado do Paraguai, ou provoca câncer. Sabe-se lá. O fato é que, em vez de ir ao que interessa, provando que o produto é ruim, paraguaio ou cancerígeno, coisa que dá trabalho, recorre-se ao desvio, suspendendo a comercialização por uma razão burocrática, coisa que não dá trabalho nenhum num país tão afeito à burocracia. É o país do desvio.
O problema é particularmente acentuado no âmbito da Justiça. Agora mesmo, o Conselho Nacional de Justiça baixou normas disciplinando as autorizações judiciais de escutas telefônicas, numa tentativa de acabar com a baderna. A intenção do CNJ é perfeita. O descontrole judicial sobre o grampo é a ante-sala do caos. Já levou ao caso dos dois réus que ficaram sob escuta telefônica durante dois anos, um mês e doze dias! Foi esse descontrole que permitiu que o governo Bush, logo após os atentados de 2001, espionasse telefonemas e computadores de cidadãos americanos com a colaboração secreta da gigante AT&T. Como a regra era o descontrole, a espionagem andou solta, numa flagrante violação de direitos constitucionais. Se a coisa chegou a esse ponto tenebroso na mais celebrada democracia do mundo, na pátria do "devido processo legal", é fácil imaginar aonde pode chegar aqui. Mas a Procuradoria-Geral da República recorreu à Justiça alegando que o CNJ, ao disciplinar as escutas telefônicas, age "além de sua competência constitucional". Talvez sim, talvez não. O Supremo Tribunal Federal é que vai decidir.
Mas a Procuradoria-Geral da República não nos informa se é contra o controle do grampo. Não nos informa se acredita no abuso, se teme que o CNJ se transforme num SNI jurídico, se defende a idéia de que os juízes tenham ampla liberdade para decidir como bem entenderem, se o caso faz mal à saúde, se veio do Paraguai ou se provoca câncer. Contorna o mérito. De novo, é o desvio. Claro que é preciso zelar pelo cumprimento da lei e suas formalidades, pelo devido processo legal. É óbvio que um órgão não pode afanar poderes alheios, mas é pedir demais um pouco de clareza? Qual é, afinal, a posição dessa gente? É preciso controlar as escutas, só que o meio de fazê-lo é outro, ou o melhor é continuar como está, tirando escuta do forno como se fosse pão quente?
No país do desvio, não se discute a liberdade acintosa de Pimenta Neves, assassino confesso de sua ex-namorada. Ou se a voz de prisão contra a segunda maior autoridade da Polícia Federal é fumo de justiça ou balcanização da polícia. Ou tantas outras coisas. É mais fácil explicar tudo dizendo que faltou preencher a segunda via do requerimento de acesso ao número do protocolo do pedido de registro do cartório de notas da vara da Justiça do.... Há muitas razões para o excesso brasileiro de burocracia. Evitar o mérito das coisas é uma delas.
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