Um dia desses, minha filha Bia apareceu com uma brincadeira nova. Era um daqueles passatempos despretensiosos que nos levam a refletir sobre coisas muito profundas. Filosóficas mesmo. Cada participante devia escrever num papel a frase: “O que você faria se...”. E prosseguir completando-a. Por exemplo: O que você faria... se a noite virasse dia?
Quando cada um completa a pergunta (sem respondê-la), as folhas são embaralhadas. Cada pessoa pega uma folha escrita por outra. E responde a pergunta proposta ali. A parte mais divertida vem em seguida. Em voz alta, faço minha pergunta: “O que você faria se a noite virasse dia?”. A pessoa ao lado lê a resposta que está na folha dela e que, obviamente, não tem relação com a pergunta que ouviu de mim. O resultado fica mais ou menos assim:
– O que você faria se a noite virasse dia?
– Colocava minhas pantufas e pegava uma carona no trenó do Papai Noel.
O resultado é quase sempre assim. Nonsense. Outra vezes, conseguimos perceber sentido naquilo que aparentemente não faz sentido. É uma delícia. Brincamos disso na pizzaria, enquanto esperamos a nossa combinação favorita: marguerita, calabresa picante e primavera (uma pizza de salada que minha filha adora).
Preciso me policiar para não lançar, em toda noite de pizza, a mesma pergunta. Sou obcecada por ela: “O que você faria se só lhe restasse esse dia?”
Andava pelado na chuva? Corria no meio da rua? Entrava de roupa no mar? Paulinho Moska e Billy Brandão nos deram essas pistas na música que ficou famosa na voz de Lenine.
Graças à brincadeira da pizzaria descobri uma feliz coincidência: eu e o Dante, meu marido, faríamos exatamente a mesma coisa. Iríamos à praia. Ao lado das pessoas que amamos, esperaríamos a morte de frente para o mar.
Para mim, o mar sempre teve um caráter de excepcionalidade. Como não temos praia na capital paulista, pisar na areia não é um evento banal. É um prêmio por bom comportamento. O direito de sentir cada grãozinho de areia tem de ser conquistado. O mar é para ser degustado. Com reverência. Nos melhores momentos da minha vida, o mar esteve presente. De uma forma ou de outra. Se eu tiver o privilégio de poder escolher onde morrer é lá que quero estar.
Acho que esse sentimento é compartilhado por muitas pessoas que têm consciência do fim da vida. Lembro de pelo menos três personalidades que quiseram ver o mar antes de morrer: o ex-governador de São Paulo Mario Covas, o cantor Cazuza e o jornalista francês Jean-Dominic Bauby, cuja história foi lindamente retratada no filme O Escafandro e a Borboleta.
Andei refletindo bastante sobre a morte nas últimas duas semanas. Tive duas ótimas conversas com o geriatra Franklin Santana Santos, um dos poucos brasileiros integralmente dedicados à pesquisa e à educação sobre a morte e o morrer. Escrevi sobre ele nesta coluna na semana passada. O que ouvi dele vai ficar guardado em mim para sempre. Se você quiser saber mais sobre o assunto, recomendo os livros dele. Os mais recentes são A arte de morrer: visões plurais(Editora Comenius) e Cuidados Paliativos: Discutindo a Vida, a Morte e o Morrer (Editora Atheneu).
Ser um doente terminal é, de certa forma, um privilégio. Quem sabe que vai morrer tem a chance de se cercar das pessoas amadas, de dividir com elas suas angústias sobre a morte. Espero ter a chance de dizer à minha filha que estou partindo. Não quero levantar para pegar meu texto na impressora e despencar no meio da redação. Nem sair cedo para fazer uma matéria e nunca mais voltar.
Quem sabe que vai morrer tem tempo de resolver questões materiais, de acertar pendências emocionais. Pode rever as pessoas que fizeram diferença na sua vida e dizer: “Olha, preciso te dizer que você foi muito importante e te agradecer por tudo o que fez por mim”.
Tenho tentado fazer isso hoje mesmo. Amanhã pode ser tarde demais. Por que esperar meus últimos dias para reconhecer a importância das pessoas que me fizeram tanto bem? E se eu não tiver últimos dias?
Franklin chamou minha atenção para o fato de que precisamos botar em prática hoje aquilo que achamos que vamos valorizar no fim da vida. Se nos seus últimos dias o importante para você seria passar mais tempo com sua família, passe mais tempo com ela hoje.
É preciso estabelecer o que é fundamental na sua vida e colocar cada coisa em seu lugar. Anda trabalhando demais? OK. Bem-vindo ao clube das formiguinhas. Mas por que você trabalha tanto? Por que o trabalho lhe realiza e lhe dá prazer? Ou por que pretende ficar rico?
Se o trabalho é apenas um meio para pagar suas contas, coloque-o no seu devido lugar. Dedique-se a ele, mas não deixe que ele sugue sua vida. Se ele o impede de se dedicar à coisa mais importante da sua existência, algo está muito errado na sua escala de prioridades.
Chegar ao fim da vida com a sensação de que ela foi bem vivida nos ajuda a ter uma boa morte. Não importa se você acredita em Deus ou não. Se sua vida teve um propósito, se ela fez sentido para você, muito provavelmente você morrerá em paz. “Quem vive bem, morre bem”, diz Franklin.
Espero poder chegar ao fim da vida com a sensação que tenho hoje. Sentindo que chorei, que sorri, que aprendi, que melhorei, que construí. E que, principalmente, não me arrependo de nada. Pensei nisso enquanto ouvia Cássia Eller, que morreu de repente e faz uma falta danada. Escrevi esta coluna ouvindo sua interpretração maravilhosa da música Non, je ne regrette rien, muito conhecida na voz de Edith Piaf. Ouça Cássia aqui, conte-me o que sentiu e responda: o que você faria se só lhe restasse esse dia?
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