Diplomacia

Para o Brasil a política Sul-Sul é prioridade

Entrevista do chanceler Antonio Patriota para Carta Capital

 Carta Capital: Dilma Rousseff terá mais dificuldade de se projetar internacionalmente do que Lula?

António Patriota: O estilo é diferente, e ela recebe um país em condições diferentes. Tem outras oportunidades de interlocução e uma demanda pelo Brasil talvez maior. Tenho certeza de que dará muita importância à interlocução internacional e que o fará com grande talento, habilidade e até prazer. Noto que ela gosta desse papel, possui uma curiosidade que diria inesgotável pelo que se passa no mundo. Também vejo nela um sentido de justiça profundo que se associa bem ao que é a

agenda do Brasil no plano multilateral, de assegurar que os mecanismos de cooperação e os foros de debate reflitam a geopolítica contemporânea e não sejam clubes que polarizam ou excluem certos países.

CC: Ela será chamada de monoglota como foi Lula?

AP: O presidente Lula comunicava-se com habilidade, porque tinha muito a dizer. Mais importante do que falar várias línguas é ter uma mensagem. A presidenta Dilma também tem essa característica, é uma mulher com uma experiência de vida rica e é muito estudiosa. Mais especificamente, tem conhecimento de inglês, francês e espanhol, e é capaz de entender um interlocutor sem a necessidade de tradução. Usa mais na hora de se expressar.

CC: Dilma falou no Congresso que é "natural" que se democratizem as relações entre os países, o que pressupõe mudanças no Conselho de Segurança da ONU. Por que ainda não ocorreram?

AP: Não é um pleito individual, refere-se à própria estrutura de funcionamento do órgão. Tem de desencadear um processo comparável a uma reforma constitucional e isso não é simples de fazer. Já houve uma reforma em 1964, quando o Conselho passou de 11 para 15 membros e teve de ser ratificada por uma maioria de dois terços de membros da ONU, inclusive os cinco permanentes, que têm poder de veto. O debate sobre a reforma do Conselho vem se arrastando desde 1992, é um processo complicado e demorado.

CC: Qual o empecilho?

AP: Existe um amplo consenso de que a atual estrutura, com esses cinco membros permanentes – Rússia, EUA, China, França e Inglaterra -, retrata mais o pós-Guerra do que o mundo contemporâneo. Há países que defendem uma ampliação, passar de 10 para 15. O Brasil e nossos parceiros nesse debate, Alemanha, Japão, índia – e a África também tem de estar representada -, defendemos que o desequilíbrio se encontra na categoria de membros permanentes.

CC: O que temem os membros permanentes em relação a uma ampliação?

AP: Cada um tem sua preocupação. Reino Unido e França são os mais favoráveis a uma reforma tal como nós defendemos. Visto de maneira benévola, acordaram para as mudanças geopolíticas e querem uma reforma que reflita isso. Mais apegados à realpolitik, temem que uma demora muito grande na reforma passe a levantar dúvidas sobre seus status como membros permanentes e que ganhe força a ideia de uma cadeira para a União Europeia, em vez de cadeiras individuais. Quanto aos demais, todos se dizem favoráveis de maneira distinta. A China põe ênfase em mais espaço para o mundo em desenvolvimento, mas sem explicitar como se daria. Os Estados Unidos põem ênfase no tamanho do conselho reformado, que se for além de 21 membros se transformaria num órgão inadministrável.


CC: Este mês o Brasil ocupa a presidência rotativa do Conselho. Qual o significado disso? Apenas simbólico?

AP: E mais do que simbólico. Juntamente com o Japão, o Brasil é o país que mais vezes participou do Conselho como membro não permanente. Você vai acumulando experiência. É a décima primeira vez que participamos como membros não permanentes. O Conselho foi criado em 1945, são 66 anos. Ou seja, em um terço de sua existência o Brasil participou dos trabalhos, é o máximo que um não permanente conseguiu.


CC: Como apontar abusos nos direitos humanos de países aliados do Brasil, como Cuba e Ira?

AP: A palavra aliado não se aplica ao Brasil, que é um país sem inimigos. Além disso, Cuba, por exemplo, tem alguns dos melhore índices das Américas nos direitos econômicos e sociais. Nos civis e políticos aí talvez possa ser questionado. Mas é importante manter a discussão num padrão que se reconheça que todos os países têm progressos a fazer. Que não se transforme o debate, como dizem os americanos, num exercício definger pointing, acusatório de alguns em detrimento de outros. Esse é o grande desafio: encontrar o caminho justo, o equilíbrio.

CC: Se fosse hoje o caso dos boxeadores cubanos que desertaram durante os Jogos Pan-Americanos e foram deportados, o Brasil agiria diferente?

AP: Não respondo perguntas hipotéticas. É uma coisa que aprendi nos Estados Unidos, eles dizem muito para a imprensa: não raciocino sobre hipóteses.

CC: Apesar desse empenho pelos direitos humanos, houve críticas de que faltou uma nota mais dura do governo brasileiro em relação aos problemas no Egito.

AP: Também vi manifestações de apreço pela posição adotada. A situação do Egito é interna, uma convulsão nacional. Nossa preocupação é que as aspirações da população egípcia possam ser equacionadas sem violência, dentro de um ambiente de concórdia, de negociação.


CC: Então o princípio da não interferência em assuntos internos prevalece sobre a defesa dos direitos humanos?

AP: O que a crítica vai contribuir, nesse caso? Crítica a quem? A gente precisa entender também que forças estão em jogo. Dentre as forças que estão se manifestando, todas elas são favoráveis a um Egito mais democrático? Nossa aposta é que o Egito evolua em um sentido progressista. E a não interferência não é um princípio sacrossanto. O Brasil já se manifestou sobre questões internas, como quando combatemos o apartheid na África do Sul.

CC: Os rumos da política externa serão mantidos no governo Dilma, o chamado Sul-Sul. O que o Brasil ganha com essa abordagem?

AP: Não é assim que caracterizo. Durante o governo Lula, a linha de atuação Sul-Sul ficou em evidência porque era o aspecto mais inovador da política externa. Mas já naquela época, como embaixador em Washington, eu defendia que isso não se dava em detrimento da atenção a parceiros tradicionais do mundo desenvolvido. Esse é o espírito com que nós continuaremos a trabalhar. Em primeiro lugar, atenção prioritária aos parceiros sul-americanos – basta dizer que ocupo essa cadeira há um mês e meio e já estive com cinco presidentes da América do Sul. Ao mesmo tempo, estive em Davos e irei a Washington para acertar com a secretária de Estado, Hillary Clinton, a visita do presidente Barack Obama ao Brasil, em março. Uma coisa não exclui a outra.

CC: Sobre o caso Cesare Battisti: se o Brasil não confia na Justiça italiana, por que mantém acordo de extradição com a Itália?

[O ministro diz ter a respeito uma "resposta-padrão" e, de certa forma, cai em contradição. Fala, obviamente, da amizade que une Brasil e Itália e afirma que o caso Battisti é individual e "está encapsulado dentro de um contexto meramente judicial". O Estado italiano, que se considera ofendido pela recusa à extradição, vê traído o acordo firmado com o Brasil, ou seja, a própria lei. A ideia de que o caso tem de ser encarado de um ângulo "meramente judicial" confirma que o Brasil não confia na Justiça italiana. O menos por enquanto.]


CC: Como o senhor acompanhou os ataques que sofreu Celso Amorim de que fazia uma política externa megalonanica?

AP: Jamais corroboraria uma descrição como essa, primeiro porque estive muito engajado na administração anterior. Identifico-me muito com as iniciativas específicas e o espírito em que se desenvolveu a atuação externa do governo Lula. É consenso internacional, não sou eu quem diz, que elevou o Brasil, trouxe respeitabilidade, e nos permite formular políticas e programar iniciativas hoje, no novo governo, a partir de um patamar.

CC: Por outro lado, analistas mais à esquerda dizem já sentir saudade de Amorim, que o senhor seria mais conservador. É verdade?

AP: Admiro muito Celso Amorim, é com quem eu trabalho desde meados dos anos 90. Seria pretensioso da minha parte começar com iniciativas que representassem um exercício inteiramente diferente ao dele. Assim como não seria razoável esperar de qualquer novo chanceler que desempenhasse em um mês e meio como ele em oito anos. Estou aqui num trabalho de consolidação e estou recebendo o bastão a partir de uma base muito boa.

CC: Politicamente, Amorim pode ser considerado mais à esquerda do que o senhor?

AP: Olha, não passei pelas experiências de vida pelas quais ele passou. Nunca paguei preço por opiniões que defendesse, como ele pagou ao ser destituído da Embrafilme. Sou um diplomata cujo mérito, se é que tenho algum, foi ser reconhecido ao longo de minha carreira, onde pude desenvolver um trabalho de acordo com minhas ideias, com aquilo que acreditava, sem ter sido por isso preterido, jogado para escanteio. Ele ficou um bom período depois da Embrafilme aguardando posição. Isso é uma coisa que marca um indivíduo, é uma diferença importante.

CC: Foi noticiado até que o senhor tem se aconselhado com o embaixador aposentado Luiz Felipe Lampreia, que foi chanceler de FHC.

AP: A mídia tem o direito de interpretar como quiser. O fato é que sou ecumênico, converso com quem me procurar. Sou um diplomata de carreira e os diplomatas de carreira se acostumam a ouvir muitos pontos de vista. O Brasil singulariza-se no cenário internacional como um país que não ouve só aqueles que compartilham as mesmas ideias. Como indivíduo, também me defino um pouco assim. Mas meus conselheiros são os assessores aqui do Itamaraty, o secretário-geral, e os embaixadores da ativa, em primeiro lugar.

CC: Após as revelações do WikiLeaks, os diplomatas ficaram mais comedidos nas comunicações internas?

AP: O WikiLeaks não deixa de ter um impacto grande, foi um chamado à reflexão. O que me impressionou foi que um país tão cioso da segurança como os EUA tenha tido suas comunicações tornadas públicas como foram. Isso provavelmente reforçará uma característica do trabalho diplomático, de procurar tratar matéria sigilosa com muito cuidado.



Nenhum comentário:

Postar um comentário