A aprovação do projeto de lei que fixou o salário mínimo em R$ 545 cai como uma luva na cantilena de que o governo Dilma Rousseff estreou rompendo com os paradigmas de seu antecessor.
Desde a posse, o gestual lhe deu alento. Louva-se a discrição, a formalidade e o recato com o mesmo diapasão que, até dia desses, registrava uma marionete com passado duvidoso e presente sem jogo de cintura. Só a aversão pelos modos de Luiz Inácio Lula da Silva continua a mesma.
É outro governo e há novos personagens no poder, sendo o mais decisivo deles uma presidente cujo processo de decisão parece guardar poucas semelhanças com o de Lula.
A vitória sobre as centrais sindicais simboliza a expectativa de que a presidente, que vem de um extrato de classe média cultivada, finalmente consiga colocar essa gente em seu devido lugar.
O distanciamento, que é nítido, talvez possa ser resumido pelo fato de que os sindicalistas agora precisam de uma pauta para encontrar a presidente da República. Mas isso não significa que seu conteúdo seja distinto daquele que marcou a relação das centrais com o início do governo passado. Houve enfrentamento lá e cá.
Lula mal tinha tomado pé do governo quando mandou para o Congresso um projeto de reforma da Previdência que instituiu a cobrança de inativos, o fator previdenciário e a elevação da idade mínima. Foi o suficiente para o então ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, ser saudado em eventos com o "carrasco dos trabalhadores" ou "pit bull das reformas".
Unidade do governo na questão fiscal tem os dias contados
Também foi no início do governo que Lula chegou a verbalizar seu interesse em desidratar a CLT com o fim da multa de 40% do FGTS e flexibilidade às férias.
Na sua estreia Lula garfou em um mês o reajuste do mínimo adiando para maio uma correção prevista para abril. O arrocho fiscal de 2003 seguiu determinando reajustes inferiores à demanda sindical até que, em 2005, Waldomiro Diniz surgiu das trevas do petismo inaugurando a temporada de crises do primeiro mandato e jogando o governo no colo do movimento sindical.
A agenda de reformas pretendida pelo governo foi postergada naquilo que feria o interesse dos sindicatos como a regulamentação do direito de greve ou da previdência complementar para o funcionalismo público. E, finalmente, no segundo mandato, as centrais coroariam essa simbiose com a regulamentação que lhes deu acesso aos recursos da contribuição sindical.
Ainda é cedo para saber se a aprovação dos R$ 545 animará o governo Dilma a retomar a agenda perdida do primeiro mandato de Lula. As desigualdades no mercado de trabalho entre estatutários, celetistas e informais seguem sendo a principal agenda social que o governo Lula deixou inacabada. O mais provável, porém, é que, depois dessa trombada inicial, ambos os lados recolham suas armas.
Às centrais não interessam esticar a corda sob pena de perder o controle sobre seus postos no Ministério do Trabalho. E ao governo não convém correr o risco de fomentar a aproximação entre centrais e a oposição num momento em que os dois principais líderes da oposição, o senador Aécio Neves e o governador Geraldo Alckmin demonstram interesse em estreitar a relação.
É bem verdade que o placar acanhado de ambas as propostas oposicionistas – R$ 600/106 votos e R$ 560/120 votos – não autoriza as centrais a fazer fé na conversão tucana às suas causas. Tampouco a oposição parece iludida pela ideia de que os sindicalistas abandonariam o butim do Ministério do Trabalho por um barco à deriva.
Todos os governos eleitos desde a redemocratização estreiam com grandes vitórias legislativas. Fernando Collor de Mello enfiou goela abaixo dos congressistas o confisco. Fernando Henrique Cardoso quebrou monopólios ancestrais com sua anuência. E Lula passou uma reforma da Previdência mais radical do que a do governo que acusara de neoliberal.
Isso não ofusca a vitória de Dilma com os R$ 545, apenas a situa na tradição. Enaltecer em demasia o resultado de ontem só deixa em evidência a expectativa contrária de que a marionete não seria capaz de lidar com o Congresso.
Aliados já disputam, desde a madrugada de ontem, os louros da vitória e suas devidas recompensas, mas a votação tem consequências políticas que extrapolam a guerra por cargos e emendas.
A defesa dos R$ 545 ajudou a manter a unidade do governo em torno do corte de gastos para conter a inflação. Guido Mantega, um dos focos de resistência ao discurso fiscalista no governo Lula, acabou se tornando seu porta-voz na gestão Dilma com o pacote dos R$ 50 bi em cortes. Uma das faixas estendidas na noite de quarta-feira nas galerias da Câmara comparava o ministro da Fazenda a Fernando Henrique Cardoso.
Passada a aprovação do mínimo, tende a ficar claro que os R$ 50 bi são uma meta com reduzidas chances de ser alcançada. No gasto social mais importante da União – a Previdência – o mínimo de R$ 545 já terá feito sua parte. Se focado no PAC, o corte pode acabar comprometendo a produtividade da economia. A margem possível de contenção no funcionalismo é reduzida e o corte em verbas de gabinete pode deixar o café mais fraco na repartição mas nem sequer faz cócegas na balança fiscal.
Sem os cortes desejados, pode ganhar força no governo a ideia de que a saída é conter o crédito pela via dos juros. No primeiro mandato, prevaleceu a ala, liderada por Antonio Palocci, que defendia despesas menores e política monetária mais restritiva. No segundo mandato, aquele em que Dilma, aliada a Mantega, passou a reinar, o crescimento da economia se fez mais vigoroso com a expansão de gastos.
É o velho cabo de guerra que, para onde quer que penda, afeta a rua e, por consequência, o Congresso. Aí, sim, vai ser preciso desencavar aquele bambolê que ficou no fundo do armário para que o ex-presidente continue uma fotografia na parede.
Maria Cristina Fernandes
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