A exposição pública da hipocrisia ocidental
entrevista a Manuela Azenha
Na segunda parte da entrevista de Reginaldo Nasser, mestre em Ciência Política pela UNICAMP e doutor em Ciências Sociais pela PUC (SP), o professor fala da hipocrisia explícita dos Estados Unidos e de países europeus em relação aos ditadores da África e do Oriente Médio e sobre possíveis formatos de uma intervenção militar (Haiti?).
E, atentem, prevê que as revoluções árabes vão provocar mudanças nas lideranças de Israel e dos territórios palestinos, se não imediatamente, a médio prazo.
Viomundo – E porque o senhor acha que a comunidade internacional demorou tanto para se posicionar e de uma hora para outra, os Estados Unidos passaram a crucificar o Gadaffi abertamente? O que tem em jogo e quem sai ganhando com isso?
Reginaldo Nasser – Na verdade, a chamada comunidade internacional não é uma comunidade: são os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, tal. O Mubarak foi aceito por eles há muito tempo e o Gadaffi adotaram recentemente, desde 2003. Essa reintrodução do Gadaffi na comunidade internacional foi feita num acordo muito bom para as duas partes. As reservas de petróleo da Líbia tornaram-se cada vez mais exploradas, pela Shell, BP, Exxon, etc. O Gadaffi declarou que estava suspendendo toda e qualquer forma de produção de armas de destruição em massa, que é uma obsessão dos Estados Unidos. O Huffington Post mostrou o lobby pró-Líbia dentro do Congresso americano, um lobby que já existia antes da suspensão. Um lobby que envolve petróleo, indústria de armas e universidades.
Reginaldo Nasser – Na verdade, a chamada comunidade internacional não é uma comunidade: são os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, tal. O Mubarak foi aceito por eles há muito tempo e o Gadaffi adotaram recentemente, desde 2003. Essa reintrodução do Gadaffi na comunidade internacional foi feita num acordo muito bom para as duas partes. As reservas de petróleo da Líbia tornaram-se cada vez mais exploradas, pela Shell, BP, Exxon, etc. O Gadaffi declarou que estava suspendendo toda e qualquer forma de produção de armas de destruição em massa, que é uma obsessão dos Estados Unidos. O Huffington Post mostrou o lobby pró-Líbia dentro do Congresso americano, um lobby que já existia antes da suspensão. Um lobby que envolve petróleo, indústria de armas e universidades.
V –Universidades?
RN – Sim, não sei se você viu, com os Estados Unidos e com a Inglaterra. O filho do Gadaffi deu 1 milhão e meio para a London School of Economics, estudou e defendeu doutorado. Fundou um centro de estudos sobre democracia e governança. Não sei se é para rir ou chorar. Agora a London School está devolvendo o dinheiro e falando que foi plágio. Eles relatam visitas de intelectuais à Líbia, o Gadaffinho democrata. Tudo tranqüilo. O Gadaffi vendeu que é inimigo do [Osama] bin Laden e é verdade. É uma outra briga. Teve casos dele entregar terroristas para a CIA. Supostos terroristas. É um aliado. Passou a ser bem recebido na Europa, o outro filho dele tinha um time de futebol na primeira divisão, de Perugia, na Itália. O outro foi jogar com o Kaká. Outro dia eu vi um no show dos Rolling Stones. Isso sabendo que a repressão continuava existindo. Isso é fato. As ONGs divulgando a repressão [na Líbia].
Essa é a política clássica, tradicional, não tem nada de novo. A ditadura amistosa. Agora, os Estados Unidos estão tentando ser espertos. No popular, cara de pau. Eu me lembro bem a declaração da Hillary Clinton no primeiro dia de revolta no Egito: não é só que o Mubarak era aliado, ele é da família norte-americana. “Ele é da nossa família”. E aí aquela frase muito objetiva: torço para que as coisas se resolvam bem. E ao longo, a coisa foi crescendo e eles mudaram. E agora na Líbia, mudaram mais rápido por causa do desgaste. Eles tinham que sair na frente e nesse aspecto eles estão sendo muito espertos. Porque agora já estão aparecendo nas manchetes do jornal que os Estados Unidos são o grande opositor do Gadaffi. O Brasil e outros países perderam a oportunidade. Estava claro, já nesse momento, que tinha que sair um grupo de países e apoiar os movimentos.
Não tem essa de ficar esperando, relações diplomáticas. Porque é uma questão política, você tem de estar com os líbios, com os egípcios, e não com o Mubarak. E apostar nisso. O Brasil deu aquelas declarações que o Itamaraty sempre dá. Sinto muito. Aliás, quem teve uma posição muito boa foi o embaixador do Brasil no Egito. Ele foi contundente, falou ao vivo no Jornal Nacional. Pegou pesado: que estava lá, a repressão que assistia não podia acontecer. Os conservadores americanos já estão falando que têm que fazer como fizeram das outras vezes, na Coreia, nas Filipinas, no Chile, ou seja: quando as ditaduras desgastam, tiram os caras.
V – E como vai ficar a relação dos Estados Unidos com esses países árabes?
RN – A relação dos países árabes com os Estados Unidos não vai continuar como era antes, impossível. Mas também não estarão ausentes. Por exemplo, os militares do Egito com os militares americanos tem uma relação orgânica, não vai romper isso de uma hora para outra. A posição dos Estados Unidos é essa, como é a da Inglaterra, como é a da França. É sempre assim: agora, na França, o problema era a ministra das relações exteriores, não era o Sarkozy. Chama-se o tradicional bode espiatório. Para eximí-los não só da cumplicidade mas das políticas conjuntas que foram adotadas. Sabe-se que o Gadaffi segurava a leva de imigrantes que ia para a Europa. O Gadaffi era o melhor aliado.
V – Os líbios no leste, “libertos”, rejeitam explicitamente qualquer intervenção estrangeira. O que eles pedem é que o Conselho de Segurança da ONU monitore uma zona de exclusão aérea. A ONU já condenou as ações de Gadaffi, mas pode-se esperar uma intervenção militar?
RN – Eles estão corretíssimos em rejeitar intervenção estrangeira. O Conselho de Segurança da ONU pode votar e autorizar uma intervenção coletiva. A autorização é do Conselho, mas as tropas são de cada país. Em todo e qualquer caso, os Estados Unidos aparecem como os que têm mais condições e vontade de se envolver nos conflitos.
V – Mas seria justificável uma intervenção militar?
RN – Acredito que não seja justificável mas houve outros fatos que aconteceram. No Haiti, por exemplo. Não estou dizendo se sou favorável ou não. O que havia no Haiti? Uma instabilidade, um prenúncio de guerra civil. De direito, não existe a idéia de intervenção militar em guerra civil. Você pode fazer os acordos, colocar as partes para conversar, mas não intervenção. Mas isso já abriu precedentes. Eu diria, com o precedente, pode se justificar como crise humanitária, que é o mais provável. Estão bombardeando civis, existe a questão das migrações, que está atrapalhando a Tunísia, o Egito, está indo para a Europa. Quer dizer, não é um problema interno.
Que foi o caso do Haiti, autorizado pela ONU, na década de 90, na época do Bill Clinton. Então pode autorizar, mas é improvável. Duvido que a Rússia e a China apoiem. Quase impossível porque vai ter veto. Agora, os Estados Unidos podem agir sozinhos. Ou a OTAN. Aí não passa pela ONU, como foi em Kosovo, que não passou pela ONU. A OTAN autoriza entre eles, europeus e americanos, para dar um ar de que não é unilateral e pode agir. Mas eu acho improvável. Os neoconservadores americanos estão querendo a intervenção sob o princípio humanitário. O Obama vai sair desgastado, ele está perdido. Qualquer coisa que ele fizer, está perdido.
V – Qual é a implicação dessa instabilidade nos países árabes para Israel?
RN – É um desafio interessante. Acho que vai começar a passar o seguinte recado. Nós reconhecemos o Estado de Israel. Duvido que algum governo na Líbia, no Egito, vai se posicionar negando [o direito] a existência de Israel. Outra coisa é aceitar a política de Israel para os palestinos. Isso vai ser questionado, não tenha dúvida. E isso vai permitir colocar as relações diplomáticas em outro patamar. Tanto é assim que eu vejo, já tem sinais disso, que vai haver mudanças dentro de Israel.
A ascensão de líderes como Netanyahu e Mubarak, depende do ambiente em que eles circulam. O Netanyahu não vai mais saber circular nesse ambiente. Nem o Mubarak, que não dá satisfação a ninguém. Essas discussões vão minimamente para o congresso do Egito, para a opinião púbica. O discurso que deve surgir é: não queremos a destruição de Israel mas também não queremos a cumplicidade de fechar Gaza, por exemplo. Acho que vai acontecer um debate dentro de Israel sobre que tipo de político eles querem para fazer os acordos, as negociações no Oriente Médio. Já sabem que com armas não vai dar. No lado militar da coisa, Israel é o mais poderoso mas o Egito é a décima força militar no mundo. Não é nada desprezível. A situação é complicada mas a guerra é improvável e eu acredito que teremos novas lideranças. O [jornal israelense] Haaretz está colocando isso diariamente.
No começo, Netanyahu apoiou Mubarak deliberadamente. E nas entrelinhas, todos preocupados com a chamada instabilidade. Estão acostumamos com esse ambiente, o bin Laden, o Ahmadinejad ou o Mubarak e o Gadaffi. O próprio Gadaffi esta falando que é o bin Laden que está incitando a multidão, então todo mundo vivia de criar seus mitos, que são seus inimigos. Sobrevalorizar o poder e o radicalismo da Irmandade Muçulmana… o terrorismo, os atos de terrorismo são ótimos para esse tipo de liderança.
Não tenha duvida, é fácil cuidar disso. Agora, lidar com esse tipo [de política] que vai surgir, é mais difícil, exige um outro tipo de tratamento da política externa, dos acordos, que vai repercutir nos palestinos também. O Fatah, que está na Autoridade [Palestina], é herança dessa época também, desse tipo de liderança. Acredito que vão começar a questionar o Fatah e o Hamas. No primeiro momento, vai crescer o Hamas, mas eu acho que com o tempo vai aparecer uma outra força com os palestinos. Eles não podem ficar parados entre esses dois polos: Hamas e Fatah. Ou seja, vai haver repercussões internas em todos os países. Discussões políticas, de partidos, de representação, de propostas, é uma verdadeira revolução.
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