Vítima de pedofilia

[...] fala sobre trauma
Tigre, Tigre, da americana Margaux Fragoso (foto), não é uma leitura fácil. 
Segundo a revista New York o livro tem a “cena mais indecente” publicada 
nos últimos dez anos. No trecho, a autora descreve seu primeiro contato 
com o órgão genital masculino: “O conjunto parecia um cachorro-quente 
sem pão com dois balões meio murchos”. A indecência: Margaux tinha 
então 8 anos e estava diante de um homem de 52. Era aniversário de 
Peter Curran[nome fictício] e ele havia pedido um presente: um “carinho 
especial”.
Foi o primeiro contato sexual de Margaux com o homem que abusaria 
dela nos próximos dez anos. Os anos de abuso, vergonha e confusão 
compõem o enredo de Tigre, Tigre(Rocco), recém-lançado no Brasil. Mas 
a narrativa não é o retrato estereotipado de uma vítima e seu algoz. 
Margaux, hoje com 32 anos, também expõe seus sentimentos pelo 
agressor e sua sensação de profundo desamparo. Seu pai, muito rígido e 
tradicional, não impediu seu contato com o pedófilo. Sua mãe, uma 
paciente psiquiátrica não foi capaz de detectar o risco que a menina corria.
Com o livro, Margaux tenta entender como e quando se percebeu como 
vítima e por que, mesmo cercada de adultos, nenhum a protegeu. Nesta 
entrevista, concedida por e-mail a ÉPOCA, Margaux Fragoso fala do 
trauma do abuso e sugere como os pais devem lidar com a pedofilia.
Você sofreu abuso dos 7 aos 17 anos de idade e teve uma relação 
próxima com o agressor até o dia em que ele cometeu suicídio, quando 
você tinha 22 anos. Margaux Fragoso – Tigre, Tigre está sendo lançado 
quase dez anos depois da morte dele. Por que decidiu contar sua 
história?
Margaux Fragoso – O violento suicídio de Peter foi um catalisador. Para 
mim, escrever é o oposto de morrer, porque é se comunicar, é afirmar 
a vida. Todo dia depois de sua morte escrevi trechos de meu livro. E eu 
lia muito também. Escrever e ler me mantinham em contato com a 
minha identidade depois que meu senso sobre mim mesma havia sido tão 
maltratado.
No fim da vida, Peter sugeriu que você escrevesse sobre a relação 
que viveram. Como encarou esse pedido?
Não da maneira como ele queria. Ele sempre tentou controlar o que eu 
escrevia, insistindo que eu escrevesse apenas sobre os momentos felizes. 
O livro desafia o desejo dele. Se fosse possível conversar com quem já 
deixou este mundo, eu pediria a Peter para ler Tigre, Tigre. Na margem 
do exemplar dele, eu escreveria uma frase de James Baldwin: “Quando 
um livro é publicado, pode machucá-lo – mas antes que ele o machuque, 
eu tive que me machucar primeiro. Só posso dizer sobre você o tanto que 
consigo dizer sobre mim mesmo”.
O que você quer que as pessoas sintam ao terminar de ler Tigre, Tigre
O que sentiu ao terminar de escrevê-lo?
Quero que as pessoas sintam o que tiverem que sentir, não o que quero que 
sintam. Todos os escritorres deveriam lutar para dar aos seus leitores a chance 
de chegar às suas próprias conclusões. É um sentimento profundo terminar de 
escrever um livro e fazê-lo de uma forma que você considera correta, que o 
agrada. Imagino que o final é capaz de despertar assombrações para algumas 
pessoas. Porque, no final, fico pensando na miríade de imagens da infância e 
todo mundo, até certo ponto, lamenta-se da perda da infância. E há uma perda 
tão profunda que guarda dentro de si uma beleza, e senti essa beleza de uma 
maneira muito sutil enquanto eu escrevia. Eu podia ver todas as imagens em 
minha cabeça – o riso no bosque, o descanso nas colinas. E Peter está preso 
naquelas colinas; ele nunca cresceu, e essa era a tragédia pessoal que ele 
transmitia aos outros.
Em várias passagens, você conta que se considerava impura, uma espécie 
de prostituta juvenil. Quando se deu conta de que era a vítima de um crime
 – e não a culpada por ele?
Tenho consciência agora de que não foi minha culpa e, por isso, não tenho mais 
vergonha. Embora às vezes eu me sinta levemente envergonhada ao ler algumas 
das resenhas sobre meu livro, que soam como transcrições de um processo 
judicial. 
Uma das críticas colocava a minha foto debaixo de letras garrafais: “Exposição 
indecente”. O uso de um jarguão legal me fez sentir como uma criminosa. Agora 
sei por que as crianças raramente denunciam seus agressores. Porque há uma 
mensagem subliminar na sociedade de que o mensageiro, por assim dizer, será 
morto. Você será visto como um bem danificado ou, então, ser julgado culpado 
de 
alguma maneira. Então, por que não manter o segredo em vez de enfrentar o 
desprezo?
Como os pais devem tratar seus filhos em caso de abuso?
É importante que os pais tratem uma criança que foi abusada exatamente da 
mesma maneira que antes. Não trate a criança como se ela estivesse arruinada. 
Escutei pais, incluindo o meu próprio, dizer coisas como “prefiro que minha filha 
morra num acidente de trânsito a que seja molestada. Essa é a pior coisa que pode 
acontecer.” Minha resposta para isso é: não, o abuso sexual tem tratamento. Não 
é terminal. Pelo amor de Deus, todos precisamos parar de ser histéricos para que 
a criança possa de fato se recuperar. Muitos pais agem como se nunca fossem 
conseguir lidar com a situação se soubessem que seus filhos foram molestados. E, 
por favor, lidem com isso, vocês são adultos. Se vocês conseguirem lidar com isso, 
seus filhos conseguirão. Não passe a sua vergonha para o seu filho.
O seu livro explora um pouco a sexualidade da perspectiva da criança – você 
descreve o que teria sido seu primeiro orgasmo, aos 7 anos. Você acredita que 
deixar de falar sobre sexo com as crianças abre espaço para pedófilos?
Pelo que li, as crianças têm uma sexualidade voltada para si próprias, e é isso que 
descrevi naquela cena. Os estudos sobre a sexualidade na infância mostram que as 
crianças não pensam em outras crianças ou adultos quando têm prazer – elas não 
tem ideia do conceito de “sexo”. Acho importante dizer para as crianças que o corpo 
pertence a elas e que não precisam se sentir envergonhadas de se auto-estimular 
desde que isso aconteça em momentos privados. Os agressores tentam controlar a 
sexualidade da criança e interferem em seu desenvolvimento natural. Eles 
transformam aquilo que é normal e inocente em algo vergonhoso. É importante que 
as crianças saibam a verdade sobre o sexo quando perguntam sobre o assunto. Dizer 
que pertence a elas mesmas durante a infância e que, quando adultos, é dividida com 
outra pessoa. Procure reduzir o sentimento de vergonha ao falar do assunto com seus
 filhos para que eles possam se sentir livres para conversar sobre a sexualidade com os 
pais se precisarem, se tiverem alguma curiosidade ou se, mais grave, estiverem 
sofrendo algum abuso. As crianças não vão falar sobre abuso se sentirem que seus pais 
ficam extremamente desconfortáveis ao falar de sexo em geral.

Tigre, Tigre também discute a questão da autoestima – quando criança, você costumava medir seu valor pela atenção que recebia dos outros e, por isso, sempre tentava agradar as pessoas. Melhorar a autoestima das crianças pode reduzir sua vulnerabilidade a pedófilos?

Quando os pais dão aos filhos esse sentido de valor próprio, eles não sentem que precisam consegui-lo de seus agressores. Alguns filmes para as garotas, como A Bela e a Fera, dá a elas a impressão de que o amor vence tudo e que os agressores vão mudar, em algum momento. No filme, a besta é domesticada e se torna um príncipe. Na realidade, a besta é, geralmente, incorrigível – é preciso correr dela, não tentar mudá-la. As meninas precisam ser ensinadas desde cedo a não aceitar abuso de nenhuma forma e a não tentar “consertar” o menino mau. Ao sair do mundo com Peter, tive que aprender a estabelecer limite para as pessoas, especialmente homens. Havia sido programada para agradá-los, a colocar seus desejos em primeiro lugar. Entrar no mundo do sexo tão cedo faz a pessoa sentir como se não tivesse vontade própria – como se fosse um objeto 
que pertence a alguém. Parei de ter relações sexuais com Peter 
aos 17 anos mas carreguei esse trauma profundo comigo muitos 
anos depois. Ser sexualizada na infância faz a pessoa sentir que 
a sexualidade não é dela. Algumas mulheres podem não se sentir 
no direito de negar as exigências dos homens no sexo; outras 
acham que não podem ter sexualidade alguma. Um preço muito 
grande, que às vezes dura a vida inteira, é pago para que o 
pedófilo tenha seus momentos de gratificação. Hoje tenho um 
bom marido, porque fiz a escolha consciente de não perseguir 
os “maus garotos”.
Além de descrever sua relação com Peter Curran, a senhora 
também descreve sua relação com seus pais. Naquela época, 
você os culpava pelo que estava acontecendo? 
Culpei meu pai na época por ser tão crítico e negativo que me fez 
sentir como se tivesse que sair de casa. Eu não suportava ficar em 
casa. Ele dizia que eu havia gerado a doença mental de minha mãe 
e acreditei nele. Acreditei que nunca deveria ter nascido. Minha 
autoestima era nula. Agora sei que ele mesmo tinha baixa autoestima. 
Mas como eu ia saber disso lá atrás? Precisei escrever sobre ele para 
entender quão inseguro ele era, e como ele passou isso para mim 
inconscientemente.
Mais tarde, tive que lidar com uma raiva reprimida contra minha mãe. 
A ligação entre a mãe e seu filho é muito primária. Depois de um tempo 
é preciso deixar de lado a busca por falhas ou vamos ficar constantemente 
procurando a quem culpar, e isso acaba se tornando inútil. Um amigo me 
ensinou a pensar: “Quando as pessoas não estão em um estado mental são, 
não é possível esperar que elas ajam como pessoas saudáveis.”
A cultura latina tradicional de seu pai e de grande parte da população 
brasileira dá uma grande importância grande para a virgindade e a honra.
 Essa cultura dificulta lidar com a questão da pedofilia?
Sim, é pior quando se pensa que a honra é baseada na virgindade. Não é 
nada mais do que uma forma de controle patriarcal. Mas quando se vem 
de um contexto cultural como esse, como muitas garotas latinas, toma-se o 
código de honra como verdade divina. Tive que aprender que o verdadeiro 
código de honra é seguir uma ética que promove a harmonia social e a saúde, 
e não tem nada a ver com a “pureza” sexual.
No passado, para manter minha honra, tive que manter silêncio sobre o que 
aconteceu, enquanto me sentia suja. Agora construí uma vida digna fazendo 
exatamente o oposto do que o meu pai acharia honroso.
Você descobriu que o próprio Peter havia sido abusado na infância – um 
traço comum a muitos pedófilos. Descobriu que sua mãe também fora uma 
vítima na infância – característica comum em algumas famílias de vítimas. 
Por que isso acontece?
O trauma pode ser passado de geração em geração. Minha tia e minha mãe 
sofreram abuso sexual e minha mãe não lidou com aquilo. Por isso, ela não foi 
capaz de entender o que Peter estava fazendo e impedi-lo. Segundo as 
estatísticas, mulheres que foram abusadas sexualmente têm mais chance de 
ter filhos vítimas de abuso. Porque é tão doloroso acreditar que o ciclo 
traumático está se repetindo que as mães podem se recusar a ver o que está 
acontecendo. Se o mesmo acontecer com minha filha, não temerei enfrentar 
o problema. Protegi a minha mãe de saber da realidade do abuso por todos 
aqueles anos. Não quero que a minha filha me proteja mantendo segredos.
Até que ponto a seu relato coincide com o de outras vítimas da pedofilia? 
Acredito que é comum as crianças terem relações próximas com seus agressores. 
Os pedófilos podem entrar na vida da criança e satisfazer a necessidade delas por 
afeto quando a família falha. As relações de longo prazo são provavelmente mais 
comuns do que se imagina. É raro que as pessoas falem sobre isso em público 
porque, se o fazem, veem seus sentimentos privados atacados. Como, então, as 
pessoas poderiam saber da existência desses laços secretos se ninguém nunca fala
 sobre eles?
É importante perceber que a minha memória não é uma forma de propaganda; 
nós, escritores, não estamos tentando propor uma forma definitiva de pensar 
esses assuntos. Admitir que em algum momento alguém ama uma pessoa como 
Peter não quer dizer que o desculpa por seus crimes; é apenas um sentimento 
subjetivo que existe e, por isso, tem o direito de se tornar um assunto. Não o 
amo mais e talvez a razão pela qual fui capaz de frear esse sentimento foi o 
reconhecimento de senti-lo, antes de qualquer coisa.
Minhas palavras têm sido distorcidas em várias mídias, que as tiraram de 
contexto, como a declaração de meu jovem “eu” de que sentia como se a 
relação com Peter fosse uma forma de dependência de heroína. Para mim, 
ser viciado em heroína não é uma situação desejável, mas é possível entender 
por que alguém tenta escapar do mundo usando drogas. As drogas cultivam uma 
falsa realidade, assim como os pedófilos. No fim, as drogas destroem sua vida, 
assim como esse tipo de “amor”. Uma das manchetes dizia algo como “Garota
 imatura compara relação pedófila com prazer das drogas”, como se eu estivesse 
dizendo algo positivo.
Toda vez que se tenta dizer algo novo, é preciso encarar a resistência dos mitos 
culturais. Como Boris Cyrulnik, um especialista no estudo dos traumas, diz, “nós 
[como uma cultura] desconfiamos da mentira e tentamos reprimi-la, mas amamos 
os mitos e não queremos nada além de nos rendermos a eles.” O mito é de que 
uma criança nunca poderia nutrir sentimentos de amor e afeição por seu agressor; 
é esse mito que quero destruir. Porque, se a sociedade admitir toda essa 
complexidade, vai precisar refazer tudo dentro de um novo modelo, e trabalhar em
 busca de novas soluções. É mais fácil classificar essas situações em duas categorias 
bem distintas: pobre menina abusada e grande monstro mau. Mas esse tipo de 
pensamento nos ajudou a saber mais sobre esse tipo de relação, nos ajudou a 
preveni-la?
Você leu livros de psiquiatria e psicologia para escrever o livro?
O psicólogo social Philip Zimbardo me ajudou a colocar várias coisas sob perspectiva.
 Ele discute o que chama de “teoria situacional”, que defende que as situações têm
 um grande poder sobre a identidade. Comecei a entender pela minha pesquisa 
– que foi feita depois de eu escrever minhas memórias e, na verdade, faz parte da
 preparação para o romance em que estou trabalhando agora – que meu estado 
mental durante os anos com Peter era bem similar ao dos membros de uma seita 
sob o controle de um líder carismático. Peter literalmente criou minha realidade a 
partir das cartas dele, do que dizia, e eu não tinha contato com o mundo externo.
Eu pensava dentro dos limites restritos que ele construía e por todos aqueles anos 
fui incapaz de ver a situação do lado de foram. Foi interessante o caso de Jaycee
 Dugard [americana sequestrada aos 11 anos que passou 18 com o criminoso e teve
 dois filhos dele] ter reaparecido bem no momento em que uma editora aceitou 
publicar meu livro. Jaycee aprendeu a amar seu agressor e não tentou escapar. 
Muitas pessoas não tentam entender a posição dela ou ficam indignadas com o 
fato de ela ter admitido amá-lo. É muito difícil para as pessoas entender a 
Síndrome de Estocolmo sem passar por ela. Todo mundo quer acreditar que os 
seres humanos não são vulneráveis ao controle mental; quer acreditar no mito do 
“indivíduo incondicional”. Como o experimento de Zimbardo na prisão de Stanford 
mostra, é possível pegar um grupo de alunos de faculdade normais e saudáveis, dar 
a eles o poder absoluto de guarda e tornar os prisioneiros indefesos. Seis dias depois, 
ele teve que parar com a experiência por causa do flagrante abuso por parte daqueles 
que tinham poder e do colapso psicológico dos subordinados. Em Tigre, Tigre
a realidade entra em colapso, e entro em colapso com ela. Não há terra firma em 
que apoiar meus pés.

Você já participou de grupos de apoio para vítimas de pedofilia? O seu livro 
pode ser usado para ajudar pessoas que passaram pelo mesmo trauma?
Falei recentemente com o Centro de Prevenção do Abuso Infantil de Baltimore e foi 
uma experiência muito positiva para mim. Lembro-me de ter visto uma discussão 
em grupo sobre meu livro em que o escritor revelava no fim: “para ela foram 14 anos, 
para mim, 12”. Não estou contando a experiência de ninguém além de mim, ainda 
assim, sei que muitas pessoas têm muito em comum comigo. Mesmo que eles 
respondam de forma negativa inicialmente, quem sabe o livro possa abrir um diálogo 
dentro deles mesmos que não tenha nada a ver comigo. Publiquei o livro para que as 
pessoas vissem, e fico em paz de saber que levarão dele o que precisam. Sinto como 
se houvesse espaço para que os leitores se conectem de várias maneiras, não uma só. 
Por exemplo, pessoas que não sofreram abuso podem ter sido vítimas de bullying, 
como eu fui. Ou terem tido um pai cruel, ainda que carismático. Ou podem ter 
gostado de Kurt Cobain. Ou ter criado pombos. Ou talvez eles tenham tirado sarro de 
alguma garota estranha ao ponto de aniquilar toda sua autoestima. Talvez eles possam 
pensar um pouco sobre isso e ensinar outras crianças a não praticar bullying com outras. 
Porque esse comportamento é danoso e alguns dos danos são permanentes.
Ou, talvez, alguém com as mesmas tendências de Peter que esteja pensando em cometer
 abuso e leia como me senti indigna e envergonhada e como Peter foi preso e acabou 
destruindo a si mesmo. Ele pode não ter agido ainda e decidir resistir à tentação.
Você diria que superou completamente o trauma do abuso?
Não, é impossível superar o abuso como se ele nunca tivesse acontecido. Há sempre uma 
parte ferida que pode doer conforme a situação. Mas tento não deixar meu passado me 
definir. Normalmente, não me vejo como uma pessoa que sofreu abuso. Quando estou 
numa situação em que dizer que sobrevivi à pedofilia serve um bom propósito, então eu 
uso essa identidade temporariamente. Mas, fora desse contexto, não a uso.
De qualquer forma, se aconteceu, você não pode negar. Precisa aceitar. Precisa ver o que aconteceu – olhar nos olhos do monstro e encará-lo como ele é. Se você correr, ele o segue. 
Se o encarar, ele enfraquece. O caos é o vazio e a tragédia é a ausência de significado. As palavras e as histórias são nossas defesas contra os dois.
Você diz que o segredo é o que torna possível a pedofilia. Como os pais podem ajudar 
as crianças a quebrar esse mundo de sigilo?
Deixando nossos filhos à vontade para nos contar qualquer coisa. Nós, pais, precisamos 
enfrentar as coisas que mais nos perturbam, porque aí mostramos aos nossos filhos que 
eles podem nos dizer tudo. Em geral, crianças que sofrem abuso – e falei com outras 
vítimas – sentem que precisam proteger os adultos de saber, porque eles não conseguirão 
lidar com a informação. Com isso, o fardo é colocado nos ombros de crianças muito novas, 
que são capazes de sentir nosso desconforto e perturbação e tentam nos blindar. Devemos 
aos nossos filhos ser fortes e enfrentar o que achamos que não podemos.
Os políticos deveriam apoiar a ideia de que o tratamento para os pedófilos é a melhor 
maneira de prevenir o crime. É preciso criar linhas anônimas em que pedófilos que estão pensando em cometer o crime possam ligar e ser dissuadidos de fazê-lo. Fred Berlin criou 
uma linha assim no Canadá e nos Estados Unidos, mas quando se tornou lei que quem ligava deveria ser denunciado para as autoriedades, os telefones pararam de tocar. Todos aqueles pedófilos que poderiam ter sido dissuadidos de cometer abuso sexual voltaram às sombras, cultivando relações com crianças em segredo.
Você nasceu em 1979. Acredita que as crianças nascidas nos últimos dez anos estão mais protegidas do abuso?
Não sei. O que sinto é: quanto mais o diálogo sobre o assunto está aberto, mais difícil é para 
os pedófilos esconder sua verdadeira intenção. Os pais vão saber que é difícil achar homens 
mais velhos que apenas querem ficar próximo de garotas novas, como em Annie ou Punky Brewster, dois dos programas preferidos do Peter. Os bondosos homens dessas histórias 
adotam as jovens garotas simplesmente porque queriam dar a elas uma vida melhor. Esse 
tipo de altruísmo não é impossível, mas a minha história é bem mais provável. É engraçado 
como minhas memórias são vistas como improváveis, mas quando você pensa por um 
momento, percebe que as histórias boas demais para ser verdade são ainda mais raras.
Qual a melhor forma de proteger as crianças dos pedófilos?
Na prática, tratando a pedofilia como um caso particular. Fred Berlin, um especialista 
americano no assunto, tem defendido o tratamento há muito tempo e diz que a pedofilia 
precisa ser tratada como o alcoolismo e a bulimia. Drogas para inibir a testosterona, antidepressivos e terapia de grupo são algumas opções. Os antidepressivos funcionaram com Peter. Nós não tínhamos mais relações sexuais desde os 17 anos. Mas, para que a mudança ocorra, os governos precisam investir no desenvolvimento de centros de tratamento e as
 pessoas têm que deixar o ódio de lado para permitir que esses centros existam. É um
 problema que precisa ser tratado pela raiz.
Quando mostramos compaixão, mesmo quando ela é o sentimento mais difícil, temos uma chance de atingir as defesas e as racionalizações dos pedófilos. A compaixão desarma a 
defesa, enquanto a culpa e o julgamento não conseguem entrar na mente daqueles que se recusam a admitir. Há tanta ênfase em tratar as vítimas depois do abuso; por que não tratar
 os agressores e prevenir o problema? Uma estratégia que funcionou nos Estados Unidos é incentivar a vigilância dentro do grupo. Descobri que tem uma organização chamada Cosa que, embora não seja voltada para pedófilos, atinge pessoas afetadas por todo tipo de compulsão sexual. Nosso ódio veemente não deve forçar essas instituições a fechar as portas – impedindo, assim, que os pedófilos consigam ajuda. Isso perpetua o ciclo de abuso.
O assunto não vai sumir do nada, não importa o quanto queiramos isso. Olhar para o problema com moralismo é ferir a população que queremos prometer, ou seja, nossas crianças.
Seu pai dizia que gostaria que a senhora fosse tão forte e firme quanto ele acreditava ser. 
A senhora acha que o livro confirma que tem essas duas qualidades?
Há sempre uma força muito grande ao confrontar as verdades mais ásperas sobre si mesmo e aqueles próximos de vocë. Mas ser forte é se permitir, antes de tudo, ser fraco. O que quero dizer é que não é preciso ser desnecessariamente rude, bradar uma coragem vazia. O 
verdadeiro poder vem de admitir e aceitar nossa humanidade como ela é – em sua fragilidade 
e imperfeição.

Letícia Sorg é repórter especial de ÉPOCA em São Paulo.

Um comentário: