O estatuto da reeleição, todo mundo sabe, foi enfiado dentro da Constituição em 1997 para beneficiar o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que se reelegeria na sucessão presidencial de 1998. Agora, o PSDB quer retirar a reeleição do texto constitucional. Tudo bem. Todos têm o direito de corrigir os próprios erros. Mas fazer isso sem um pedido de desculpas não fica bem.
O PSDB desembarca da reeleição como se tudo não tivesse passado de um equívoco banal. O partido de FHC comporta-se mais ou menos como uma dona de casa desastrada ao se dar conta de que guardou o açúcar numa lata de café onde estava escrito sal.
A proposta de substituir a reeleição pelo mandato único de cinco anos é um dos seis itens que a Executiva Nacional do PSDB decidiu apoiar na reforma política. Trata-se de um mea culpa histórico. Mas nenhum tucano admitiu formalmente o erro. Aécio Neves, o presidente do tucanato, preferiu atribuir a inspiração à antagonista Dilma Rousseff.
“Depois de uma discussão muito profunda, e a partir dos exemplos que a própria Presidência da República atual e o governo do PT têm dado, de priorizar a reeleição em detrimento do país, estamos defendendo o mandato de cinco anos para todos os cargos eletivos, sem direito à reeleição”, disse Aécio.
A “discussão” do PSDB, embora “muito profunda”, não alcançou o fundo absoluto. O homem comum –categoria que inclui a dona de casa desastrada— vive apenas o dia a dia, sem maiores ânsias metafísicas. Mas o homem público, coautor da história, tem o dever de respeitar o passado –até para aprender com ele.
Não precisa fazer como o arqueologista, que devassa milhões de anos à procura de restos fósseis. Não é necessário imitar o geólogo, que se afunda em bilhões de anos de pedras e metais. Mas 16 anos, convenhamos, não é tanto tempo assim. E os fatos foram marcantes demais. Impossível deixar de mencioná-los.
A reeleição foi aprovada no Congresso sob atmosfera vadia. Soavam ao fundo as vozes de deputados pilhados numa fita. Eles mencionavam uma certa “cota federal” providenciada pelo “Serjão.” Vale a pena reescutar alguns trechos.
“Pelo que eu sei bem, é o seguinte: eram os 200 do Serjão, via Amazonino, que era a cota federal, aí do acordo…”, escuta-se num trecho da gravação. “Ele falou, pra todo mundo, aí, meio mundo, aí. Eu falei com o Luís Eduardo. O Luís Eduardo marcou uma audiência com o Serjão. Daí, o Serjão marcou com o Amazonino.”
Serjão, já morto, era Sérgio Roberto Vieira da Motta. Espaçoso, cresceu muito para as laterais. Daí o apelido. O aumentativo não embutia nenhum exagero. Exceto pela voz, miúda como a de Anderson Silva, tudo em Serjão parecia exagerado. A começar por seu apetite.
Afora a natural apetência por alimentos, Serjão tinha outro tipo de fome. Ele tinha fome de poder. Era fácil irritá-lo. Bastava chamá-lo de “tesoureiro”. Conhecera FHC em 1975, no jornal ‘Movimento’. Em 1978, já atuava como coordenador de sua campanha ao Senado. Tornaram-se amigos íntimos.
No governo FHC, Serjão foi ministro das Comunicações. Onde houvesse uma fresta vazia, lá estava ele para ocupá-la. Faltava oposição ao governo? Serjão tachava o Comunidade Solidária, programa da primeira dama Ruth Cardoso, de ”masturbação sociológica”. Faltava coordenação política ao Planalto? Serjão abraçava, ele próprio, o papel de mercador da reeleição.
Serjão era a paixão com braços. Gestos fartos, guiava-se pela emoção. O poder era seu brinquedo. O lume do holofote, sua vitamina. O subsolo, seu ambiente predileto. Serjão era, antes de ministro, uma combinação de empresário e tocador de campanhas políticas, não necessariamente nessa ordem.
Pois bem, o governo FHC estava tão obcecado pela tese da reeleição que permitiu que a empreitada ficasse com a cara do Serjão –um trator de carne e osso, um personagem pouco afeito a pedidos de licença. Na época, encurtaram-se os caminhos. Mas desceram ao verbete da enciclopédia as fitas, a “cota federal”, as menções ao amigão do presidente.
Na época, uma oposição claudicante tentou instalar uma CPI da Reeleição. FHC dizia: “Não podemos transformar o Congresso em polícia.” Hoje, quando o passado volta para assombrá-lo, o ex-presidente tucano diz que houve, sim, uma investigação. Onde? Na Comissão de Constituição e Justiça. Hã, hã…
Dois deputados acreanos foram cassados. Outros três renunciaram aos respectivos mandatos. O PSDB jamais foi mencionado na encrenca, costuma dizer FHC, esforçando-se para esquecer as manchetes de outrora.
Sob Aécio, o PSDB poderia até fazer como FHC, que nega a compra de votos sob a alegação de que a reeleição passou com falgada maioria. Só não dá para fingir que o passado não existe. Antes de propor o fim daquilo que já desejou tão ardentemente, o tucanato deveria pelo menos recitar o pedaço da missa em que os católicos reconhecem, num ritual secular, seus erros perante Deus.
Em latim: “Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Joanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, omnibus Sanctis, et tibi pater: quia peccavi nimis cogitatione verbo, et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.”
Em português: “Eu pecador me confesso a Deus todo-poderoso, bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado São João Batista, aos santos apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os Santos e a vós, Padre, porque pequei muitas vezes, por pensamentos, palavras e obras, por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa.”
Josias de Souza
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