Poesia

Todas as vidas

Cora Coralina

Vive dentro de mim 
uma cabocla velha 
de mau-olhado, 
acocorada ao pé do borralho, 
olhando pra o fogo. 
Benze quebranto. 
Bota feitiço... 
Ogum. Orixá. 
Macumba, terreiro. 
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim 
a lavadeira do Rio Vermelho. 
Seu cheiro gostoso 
d'água e sabão. 
Rodilha de pano. 
Trouxa de roupa, 
pedra de anil. 
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim 
a mulher cozinheira. 
Pimenta e cebola. 
Quitute bem-feito. 
Panela de barro. 
Taipa de lenha. 
Cozinha antiga 
toda pretinha. 
Bem cacheada de picumã. 
Pedra pontuda. 
Cumbuco de coco. 
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim 
a mulher do povo. 
Bem proletária. 
Bem linguaruda, 
desabusada, sem preconceitos, 
de casca-grossa, 
de chinelinha, 
e filharada.

Vive dentro de mim 
a mulher roceira. 
- Enxerto da terra, 
meio casmurra. 
Trabalhadeira. 
Madrugadeira. 
Analfabeta. 
De pé no chão. 
Bem parideira. 
Bem chiadeira. 
Seus doze filhos, 
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim 
a mulher da vida. 
Minha irmãzinha... 
tão desprezada, 
tão murmurada... 
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim: 
Na minha vida - 
a vida mera das obscuras.


Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas ou Cora Coralina(Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 — Goiânia, 10 de abril de 1985) foi poeta e contista brasileira. Produziu uma obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás. Começou a escrever poemas aos 14 anos, porém, Publicou seu primeiro livro em 1965, aos 76 anos.