Psicodália

Cultura, contracultura e o retorno a realidade objetiva
Cada ano que começa, atropelado pelas pendências do anterior e inspirado por promessas de um novo começo, encontra em janeiro e fevereiro um respiro, uma coxia para entrar de fininho. Não é à toa que o brasileiro ostenta entre seus lemas o clássico “o ano só começa depois do Carnaval” e alinha suas expectativas pra só encarar o calendário de jeito depois das festividades da carne.
Pelo visto abrir os trabalhos em plena ressaca é o banho de água fria que nos ajuda a pegar no tranco. Mesmo entupido de trabalho nos primeiros meses do ano e não ligando muito pra esse quase-que-feriado tupiniquim, às vezes me pego dividindo o ano em antes e depois dele.
Longe dos blocos sujos, das ruas mijadas e fantasias recicladas, é no meio do mato e serra acima que encontro meu refúgio maior.
Falar sobre dias paradisíacos num festival onde a vida cotidiana se dissolve como identidade secundária é tarefa complicada, mas nada nos impede de tentar.
Idealizado, produzido e em constante crescimento desde o começo do século, o festival Psicodália chegou neste Carnaval de 2014 à sua 17ª edição. Teve início como projeto piloto em Angra dos Reis, e se consolidou com caráter itinerante ao realizar edições na Lapa paranaense, passando então para Santa Catarina, sediado inicialmente no município de São Martinho e, de 2009 até hoje, em Rio Negrinho.
A vivência no Psicodália transcende o habitual, tanto no sentido cotidiano da palavra quanto se comparado a outros festivais. Ao longo de cinco dias (seis, nessa edição) a programação é recheada de shows, oficinas, intervenções artísticas, arranjos musicais mutantes e todo tipo de gente que se possa imaginar.
Todo tipo mesmo; de todas as idades, cidades, estados, estilos, gêneros, preferências sexuais, profissões e religiões, donas e reprodutoras de ideias tão variadas quanto o próprio universo, mas que convergem num grande mosaico ideológico respeitado por todos.

O amigo e diretor de fotografia em cinema Guilherme Meneghelli, que acompanhou movimentos sociais pelo Brasil, comenta que o festival está mais perto do slogan do Fórum Social Mundial do que o próprio Fórum:
“O Psicodália é o revival mais forte da contracultura de que tenho notícia. Tem essa história de que um outro mundo é possível, mas na prática e sem demagogia.”
Mais do que shows, a proposta do Psicodália promove uma vivência social integrada e harmônica. Lá todos viram, por alguns dias, cidadãos de uma comunidade com moeda, regras e tempo próprios, regidos apenas pelo bom senso e tendo como base um itinerário com atividades quase de sol a sol.
As oficinas vão de Tai Chi Chuan e meditação a pipas recicláveis e roteiro cinematográfico, passando por teatro, desenho do nu artístico, slackline, fanzine e poesia surrealista. A estrutura conta com praça de alimentação, saloon, cozinha comunitária, mercearia, bares, um convidativo lago e muitas placas surreais.
Os pagamentos no festival não são feitos em reais, mas em dálias, moeda corrente que circula em cartões de crédito exclusivos.
A todo momento pode-se ouvir, por vezes acompanhado de gritos entusiásticos, o tilintar dos cabos de aço da tirolesa em seus mais de 500m de extensão.
Ao fundo, a Rádio Kombi apresenta em sua frequência própria um repertório que mistura bandas que já passaram pelo festival a clássicos que vão de Led Zeppelin e Blind Melon a Novos Baianos e Mutantes, além de recados, chamadas para os shows e ocasionais dedicatórias.

Cores Fantásticas

A vista da tirolesa que cruza o festival é de uma grande colcha de retalhos formada por grama verde, roupas coloridas, lonas pretas, azuis e amarelas. Uma vez despidos das amarras sociais e vendo-se entre semelhantes, numa catarse coletiva guiada por sorrisos, os viventes adotam códigos estéticos próprios.
A beleza das pessoas, em sua maioria exóticas e em sua totalidade únicas, é coroada pela troca da maquiagem por tinta, pelo improviso nas roupas visando mais conforto do que aparências e as cores que a realidade ganha por lá. O resultado é nudez completa ou parcial, turbantes pra fugir do sol, pés no chão e uma infinidade de rostos singulares em pinturas de guerra.
Permeando toda a vida enquanto ser psicodálico, o movimento está sempre em alta. Com shows agitados como o da Confraria da Costa, os piratas que absolutamente conquistaram o festival há anos, da Traditional Jazz Band no auge de seus 50 anos de carreira, KlezmorimTrombone de Frutas e Pife na Manga, cabelos dançantes viraram tendência.
A vanguarda nas vestes se estende a intervenções artísticas, caso do palhaço da perna-de-pau Maçarico Bêbado, das Ninfas do Amanhecer e dos Corsários Inversos, além das composições vintage do público em geral, com figuras que cairiam nas graças de Scorsese para seu Woodstock.
Já passaram pelo festival artistas como Tom Zé, Blues Etílicos, Alceu Valença, Casa das Máquinas e O Terço, além dos hors concours Hermeto Pascoal e Mutantes. A escalação para 2014 não deixou por menos, com 44 shows entre Palco do Sol, para atividades à tarde; Palco Psicodália, onde a maioria dos headliners tocou à noite; e o Palco dos Guerreiros, localizado dentro do Saloon, destinado aos guerreiros do after analógico que segue madrugada adentro. A novidade desse ano foi o Palco Livre, que como o nome indica, servia para bandas fora da programação que quisessem se apresentar.
Falando só em nomes lendários e suas ocasiões, a edição de 2014 foi marcada pelos shows de Tom Zé tocando seu álbum Tropicália Lixo Lógico, Yamandu Costa, Moraes Moreira apresentando a íntegra do clássico dos Novos Baianos, Acabou Chorare, a franco-inglesa Gong, Di Melo e Almir Sater.

As mais de 40 bandas escaladas para esse Carnaval conseguiram abranger várias épocas, nuances e estéticas da psicodelia – principalmente – brasileira, não se limitando ao rock ou barreiras linguísticas. Nas primeiras edições que pude presenciar do festival, quatro delas na missão de fazer alguma cobertura, havia uma predominância de bandas mais perto do hard rock/progressivo brasileiro setentista. De lá pra cá pudemos ver a reinvenção de um festival que se apresenta em 2014 com lineup ousado, ainda que sem perder sua essência.
O festival ficou mais popular, admite Alexandre Osiecki, um dos organizadores do festival, em entrevista à Gazeta do Povo:
“O Psicodália já trocou de geração, estamos há mais de uma década nessa onda. Sentimos diferença com essa turma nova, mas essa geração é muito esclarecida e antenada. É também livre e sem preconceito. Não tenho medo porque eles buscam o que o Psicodália pode oferecer”.
Independente do motivo, vale reconhecer a maturidade na quebra de barreiras promovida pela escalação de bandas como Metá Metá, Pedra Branca, Satanique Samba Trio, Fukai e até Wander Wildner, além da promoção de Dingo Bells e Quarto Sensorial para o palco principal.

A primeira vez que uma banda de fora do Brasil foi escalada para o Psicodália data de não muito tempo atrás, quando a australiana Jarrah Thompson Band integrou a programação de 2012 do festival.
Além do retorno deles em 2014, a organização convocou ninguém menos que o GONG. A lendária e pioneira banda de 1967 apresentou muito do que definiria o space rock, vertente frita do rock progressivo que no começo dos anos 70 foi abraçada por Tangerine Dream, o Hawkwind de Lemmy Kilmister e ocasionalmente até o Pink Floyd.
O show foi uma longa e emocionante viagem ao centro da psicodelia imortalizada na época, com o frontman e único remanescente da formação original Daevid Allen trocando de figurino várias vezes. Aos 76 anos e com o carisma de um simpático duende, sua disposição foi uma das marcas desse show histórico e viajante.
Na verdade, seria injusto terminar sem dizer com todas as letras que foi um show altamente foda.

E assim como este relato, que eventualmente precisa acabar, chegava ao final o Psicodália 2014. Enquanto se erguiam os acampamentos e os primeiros carros começavam a deixar a fazenda Evaristo, o sentimento era de que a realidade podia demorar um pouco mais a nos convocar de volta, uma vontade inesgotável de ficar um pouco mais vivendo aquele momento.

O penúltimo headliner do festival tocou cedinho, cedinho na terça-feira. Mais ou menos naquela hora que no mundo real estaria reservada à lombra pós-almoço, Di Melo tomava o palco Psicodália.
O Imorrível, elo perdido e ícone na história do soul e da música negra no Brasil, subiu ao palco se sentindo em casa, e a julgar pela receptividade do público ele não só estava em casa, como se via na varanda, tomando um café de pantufas. O pernambucano cantou com uma energia incrível vários clássicos de seu disco homônimo, de 1975. Acompanhando o jovem senhor, uma excelente banda formada por músicos de quilometragem no festival e que ensaiou uma única vez, por meia hora, durante a passagem de som.
Ovacionado, Di Melo deu lugar a outro músico de quilate, Almir Sater, e depois dele a programação ainda seguiria até a tarde de quarta-feira.

A cena desacortina com uma chuva inesperada, encerrando a trégua que os céus resolveram dar aos viventes ao longo dos primeiros dias. Com ela, gotejam forte junto à calha do palco principal e escorrem para dentro do saloon novas ideias, preciosas lembranças, olhares trocados e a certeza da colaboração para uma consciência cada vez mais expandida, mais compreensiva e igualitária.
Os trinta milhões de baldes de água fria por minuto vieram não só lembrar o poder da natureza e a tal condição humana, mas propor o contraste necessário para voltarmos à realidade.
Como numa última passagem que precede o epílogo, a água lavou tudo até que nos restassem, do melhor Psicodália até hoje, apenas memórias e trocados de dália. Estrada abaixo, vida acima, voltamos livres para começar de vez o ano.
Léo Telles Motta


Paulista de berço, santista de coração e catarinense de alma. Produtor de coisas e eventos, redator publicitário, marinheiro-só da Agência Subversividade e supervisor musical nas horas não-tão-vagas.

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