Às 5 horas da manhã, enquanto boa parte dos moradores do Rio de Janeiro ainda não deu por encerrada a noite anterior, a vida de José Queiroz já está a pleno vapor. Hoje um senhor de 66 anos e pai orgulhoso de 9 filhos, Queiroz começa seu expediente antes do sol raiar desde que trocou, aos 13 anos, os laranjais de Nova Iguaçu pelo Hipodrómo da Gávea – área de 650 mil metros quadrados à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas e entre cartões postais como o Cristo Redentor e o Morro Dois Irmãos.
Com 46 kg distribuídos por uma altura de 1,62 metro, o inquieto senhor é um retrato vivo da história do turfe no Brasil. Parou de estudar na quarta série e foi ajudante, jóquei, dono de cavalos e, como morador da cocheira número 5 da Vila Hípica da Lagoa, hoje ocupa a função de treinador. Outra maneira de descrevê-lo é dizer que Queiroz é, extra oficialmente, o maior contador de histórias do Jockey Clube Brasileiro. Com fala rápida e olhar sagaz, distribui, a cada 5 ou 10 minutos, causos e pérolas de sabedoria.
Para além das 1600 vitórias que a memória insiste em não registrar com números exatos, Queiroz coleciona as lembranças de um passado que mistura as próprias histórias, as do turfe e aquelas de um Brasil do qual muita gente só ouviu falar.
Passar uma manhã com o ex-jóquei é um convite a saber como ele conquistou sua primeira vitória, em janeiro de 1967, mas também ouvi-lo falar sobre as cinco esposas e outros amores que teve. Enquanto descobria que ele sofreu 15 ou 16 fraturas em seus dias de competição, soube também detalhes sobre a época em que o jóquei morava na Zona Sul, desfilava de carrão e fazia ginástica na mesma academia em que o eventual companheiro de bar Tom Jobim. Assim como não se esquece dos finais de semana em que era convidado para a fazenda do General Figueiredo – um notório admirador de cavalos –, Queiroz também faz questão de contar que sua última vitória em corrida longa, de 3500 metros, foi conquistada em cima de Jorge Ricardo – brasileiro que se tornou recordista mundial do esporte ao alcançar a marca de 12 mil vitórias (link para post anterior). Foi de tudo, menos tímido. Como figurante, fez pontas nos filmes a Hora Marcada, com Gracindo Júnior, e na pornochanchada Giselle – homenagem brasileira ao clássico Emanuelle gravada em parte no Hipódromo da Gávea.
“Me aposentei das pistas por que fui enjoando. Eu semprei fui gastador, investi nos meus filhos e nas minhas vontades. Assim vivi minha vida inteira. O homem tenta fazer grandiosas coisas da vida, mas não se dá conta que a vida é feita de pequenas coisas”.
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Quando falamos de carnaval, é comum pensar nos barracões abarrotados e milhares de pessoas trabalhando para aprontar as fantasias e a farra do próximo ano. Quando pensamos em futebol, estamos cansados de saber dos sonhos de milhares de garotos que tentam, todos os anos, se profissionalizar. Mas quando falamos em turfe, é comum que o dinheiro das apostas ou o glamour dos chapéus esvoaçantes dos Grandes Prêmios nos façam esquecer que aquela também é só a pontinha de algo bem maior: existe uma multidão de anônimos, de carne e osso e muitas vezes invisíveis, que constrói os alicerces de qualquer indústria.
É interessante perceber que, por trás de cifras astrônomicas como o 1 bilhão de reais que o turfe movimenta todos os anos no Brasil ou o R$ 1 milhão de premiação que o GP Brasil de entregou em 2013, milhares de pessoas vivem e acordam todos os dias para, por exemplo, tratar e treinar os animais que brilham nas pistas aos finais de semana. Foram essas as pessoas que tentei captar em fotos e conversas durante um final de semana de incursão do PapodeHomem pelo Jockey Club do Rio.
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O cavalariço Telmo da Silva Peçanha foi quem me deu a primeira barbada no meu final de semana de turfe. No primeiro páreo daquele sábado, o castanho Avante Solo, cria sua e do irmão que faz as vezes de treinador no Haras Bela Vista, de Teresópolis, era um dos favoritos: vinha da segunda colocação na última prova que disputara.
Aos 49 anos, Telmo trabalha com cavalos desde que se entende por gente – entrou nessa por conta de um cunhado que trouxe a paixão do Sul do País. “O cavalariço é quem tem menos valor, mas é quem vive mais com o cavalo: no final de semana de prova, a gente fica 48 horas com o bicho. Isso aqui é uma responsabilidade danada. Se o cavalo tossir, o patrão tem que saber – acho que por menos de R$ 15 mil ele não vende esse aqui. O jóquei mesmo só vem para montar e pronto”.
Para a sorte das minhas economias, naquele final de semana o Avante Solo não tossiu: faturou o primeiro lugar.
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Dos 45 anos que já viveu, o ferrador Falcão passou 22 orbitando em torno do Jockey Club do Rio. Baiano de nascimento, fez do ofício que aprendeu com um chileno chamado Miguel o negócio da família. Três dos seus irmãos já trabalharam como ferreiros nas cocheiras que circundam o Jockey, e agora é a vez da próxima geração: seis sobrinhos e seu filho, de 20 anos, aderiram à profissão. “É um serviço pesado, mas é um bom emprego. A gente só leva uma mordidinhas e uns puxões de vez em quando”. Quando chega a hora do descanso, os cavalos também têm vez. “Sempre que estou em casa ligo a televisão no canal turfe”.
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Aos 19 anos de idade e com apenas seis meses de Rio de Janeiro, o alagoano Josivaldo Alves Clemente conta os dias para voltar para a cidade que deixou para trás – Delmiro Gouvêa, município que faz fronteira com Bahia, Pernambuco e Sergipe ao mesmo tempo. A mulher, três anos mais velha, mandou avisar que os empregos com carteira assinada voltaram a aparecer naquele canto do sertão. É hora de matar a saudade, juntar os panos e pensar em filhos.
Acostumado a quebrar pedras na cidade natal, veio para o Sudeste a convite do primo Clécio – que também trabalha e dorme em uma das cocheiras do Jockey Club Brasileiro. “Tinha medo de cavalo, vim por que estava precisando. Se eles fossem brabos eu voltava no mesmo dia, mas o Queiroz quem me ensinou tudinho”.
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Aos 37 anos e com alguns quilos a mais, Marquinhos passa pela transição que há entre deixar de ser jóquei – começou em 1993 – e assumir o papel de treinador. Divide as cocheiras com Queiroz, e aparece pontualmente antes do sol nascer.
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Assim como Queiroz, José Machado começou no turfe em 1963 – com um empate no número de vitórias, os dois chegaram até a dividir o posto de campeão de estatísticas do Jockey Clube Brasileiro em 1968. Embora tenha parado de competir apenas em 1994, Machado é instrutor da Escola de Profissionais do Turfe, instituição sediada no Hipódromo da Gávea, desde 1986.
Todos os dias pela manhã, ensina meninos e meninas entre 16 e 18 anos – a maioria mora na escola – a alinhar o passo do cavalo, trotar e galopar. As aulas são gratuitas, a primeira parte do processo leva entre 6 meses e 1 ano e um novato só deixa de envergar a farda amarela de aprendiz depois de conquistar 70 vitórias nas raias. “Ensinar depende muito do garoto. É igual andar de bicicleta, uns vão mais rápido, outros não. São uns cinco anos montando para ter uma boa base, mas só o tempo é que mostra se um jóquei é bom: depende da qualidade da montaria, da aceitação do público e de ter estrela também”.
Um dos seus alunos mais recentes tem sobrenome de campeão, e mostra que a paixão por cavalos é mesmo coisa de família. Felipe Galvão de Queiroz, penúltimo filho homem de Queiroz, conquistou 12 vitórias nos dois meses em que competiu antes de se machucar – está com 18 anos, tem 1,64 e faz regime para ficar com 49 quilos. Começou “tarde”, mas deve ser o único a levar o legado do pai para as pistas. O mais novo, Rafael, sabe tudo de turfe, mas já encerrou a carreira antes mesmo de começar: com 12 anos já calça 41, sinal de que vem gente grande por aí.
No lombo do cavalo, o turfe é implacável. Ali em cima, só é permitido crescer como pessoa.
Mecenas: Jockey Rio
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por Ismael dos Anjos