Tão citada há tantos meses, a crise ainda não começou. O que parece estar às avessas e de pernas para o alto, os problemas entre os Poderes, a inversão de Dilma, os desarranjos do governo, e tudo o mais, são pedaços desarticulados do que pode vir a ser a crise. Depende de que essas partes, ou as principais, se associem na mesma direção em que configurem uma afronta à ordem institucional. Antes disso, crise é uma força de expressão usada sem cerimônia --como tudo mais no Brasil atual.
O quanto se está distante do ponto de fervura, não dá para estimar. Certa é a geração continuada de fatores próprios da elaboração de crise. Os quais se apresentam, a meu ver, de forma sem precedente entre nós. Ou ao menos desde muitas décadas.
O governo Dilma tem sua própria situação crítica, feita da combinação desequilibrada de dificuldades administrativas e dificuldades com sua desleal base parlamentar. A luta partidária/ideológica, em que só um lado tem tido voz, difundiu a interpretação de que a realidade perturbada do governo é "a crise". Não é, no entanto, sequer o causador das mais retumbantes confrontações no âmbito do Congresso. Com o Judiciário, apesar do desagrado no Supremo pela demora na indicação do novo ministro, o relacionamento do governo não tem e não teve embate algum.
No Congresso, Senado e Câmara vivem condições muito diferentes, embora conduzidos pelo mesmo partido, o PMDB. Afora Aécio Neves e mais dois ou três oposicionistas excitados, a quietude do Senado lembra uma sala de cinema durante filme romântico. Renan Calheiros faz uma hábil fusão de pronunciamentos próprios de presidente com os pessoais, espicaçando Dilma e o governo, reagindo ao presidente da Câmara ou atacando o procurador-geral da República, mas sem suscitar problemas de fato.
Ainda que Renan Calheiros recebesse expressões de solidariedade ao aparecer entre os processados na Lava Jato, sua exaltação não deu em hostilidade entre o Senado e a Procuradoria Geral da República, nem houve ataques ao Supremo por aceitar o processo. É mais ou menos isso que se passa também na relação de Renan e do Senado com Dilma e com o governo. O problema real de Renan e dos senadores é com Eduardo Cunha. E não foi provocado por eles.
A Câmara está em uma espécie de rebelião branca. Iniciada a ideia de Eduardo Cunha, tão repetida quanto equivocada, de que a Câmara é um poder independente, quando é parte do Congresso. Na prática, a independência revelou ser uma desconexão geral.
A chamada base aliada desintegrou-se. A bancada do PMDB abandonou a linha do partido e passou a orientar-se por Eduardo Cunha. Os pequenos partidos, integrassem ou não a base governista, quase todos servem a Cunha. A pauta de votações não tem conexão com o governo: segue, declarada e estritamente, o decidido por Eduardo Cunha. O colégio de líderes, como a Mesa Diretora, apenas endossa as decisões do presidente. As comissões se criam e são compostas por decisão de Eduardo Cunha.
Ao findar a semana, duas novas demonstrações de que a desconexão é mesmo geral. Uma, a atitude superior de Eduardo Cunha de avisar ao presidente do Senado e do Congresso que, se o projeto da terceirização não for submetido com presteza à votação dos senadores, todos os projetos originários do Senado irão para o freezer na Câmara.
A outra demonstração: a bancada do PSDB aderiu à linha Cunha e, por seu líder Carlos Sampaio, fez saber que até quarta-feira apresenta o pedido formal de impeachment de Dilma, contra a posição da cúpula peessedebista. O rebelado Sampaio adotou também a ideia de independência: "O pedido de impeachment é da Câmara e a bancada tem independência para decidir". Como no PMDB, fim da direção partidária.
A reação de Eduardo Cunha à sua inclusão nos processados da Lava Jato foi, e continua, muito mais forte que a de Renan Calheiros. No final da semana ele divulgou mais uma ideia de alteração dos poderes judiciais: no caso, um projeto de retirada, do Supremo para a primeira instância, dos processos contra parlamentares. Solução, em causa própria, para encaminhar os processos à prescrição e invalidar a ação da Procuradoria Geral da República.
Eduardo Cunha, sem dúvida, vai se mostrando um fenômeno político. E a sua Câmara, a Casa que gera e dissemina os fatores capazes de levar à crise verdadeira.
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