Por Ion de Andrade

Fui um dos primeiros a sinalizar a improbabilidade do golpe ou do impeachment no artigo "Uma direita fraca a caminho de uma derrota histórica". E muitos estão intuindo o mesmo. Vejamos o cenário:
A crise política por que atravessamos, que tem no palco principal um conflito dos setores conservadores e da mídia contra um projeto democrático e popular nucleado pelo PT, inclui também uma luta encarniçada entre diferentes setores da burguesia pela hegemonia política do campo burguês. Em outras palavras há uma briga de brancos ao tempo que o projeto petista é também posto em cheque.
Ora, quais são os setores que se engalfinham por essa hegemonia do campo burguês?
De um lado claramente está a velha mídia golpista aliada a setores do capital financeiro, rentistas e a segmentos do capital internacional interessado em reduzir o Brasil ao velho papel colonial, de fornecedor de matérias primas e agora de petróleo... esse desenho é inviável, e não por acaso, desde 1822. Até a ditadura aspirava a um Brasil potência... Não será agora que nos curvaremos. Não nos enganemos essas manchetes do Estadão de que os EUA investigam a Odebrecht pegam mal, só eles não percebem. Aliás acham o máximo.
Há dois dias no editorial do Estadão intitulado "A vez de Lula", todos os empresários presos na Operação Lava Jato foram classificados como amigões do presidente petista, uma condição suficiente, no artigo, para provar a sua culpabilidade clara e inelutável.
É óbvio que esses empresários, por dever de ofício, têm que manter bons relacionamentos com todas as lideranças da alta política nacional, gente com quem estabelecem relações contratuais e compartilham ideias sobre a economia, as finanças e os grandes projetos nacionais ou estaduais. Nada mais natural do que esperar que um Marcelo Odebrecht possa ter trato e relações cordiais com José Serra ou com Lula.
Surpreendente mesmo é o tom do editorial do Estadão pelo total e ostensivo desprezo e desrespeito por esses personagens que, à semelhança dos seus proprietários, fazem parte da mais alta burguesia brasileira, personagens com quem provavelmente desfrutaram momentos de convívio e de negócios. O editorial, portanto, atira no projeto petista e atira no segmento da burguesia que pretende subordinar e punir. A leitura do editorial evoca muito mais uma linguagem de um futebolismo triunfalista do que a da análise fria e inteligente do conservadorismo dos "bons" tempos. Tais excessos exalam o odor rançoso da ansiedade e do medo de que talvez a realidade venha a ser outra. O editorial foi uma espécie de oração macabra.
O outro polo da disputa da hegemonia nesse campo burguês é o que prosperou (oh sumo pecado!) no ciclo petista através de megacontratos com o Estado brasileiro, emprestando à esquerda uma credibilidade imperdoável.
O cálculo errado que a mídia e seus aliados fazem vem de que esses setores não desaparecerão. Talvez até fiquem enfraquecidos momentaneamente, mas sobreviverão com uma identidade política nova, tendo aprendido a nova geografia política na melhor e mais indelével escola possível, a do sofrimento físico e psicológico produzido por esses tempos de agruras. Cedo ou tarde darão o devido troco e se só pensavam em negócios, agora pensarão obsessivamente e vingativamente em política.
A luta sem quartel e sem limites que a mídia e seus aliados desenvolvem contra o projeto petista tampouco poderá produzir o desaparecimento do proletariado do cenário da política. Se há algo de positivo nas recentes pesquisas de intenção de voto para presidente é o fato de que Lula reina soberano no segmento estratégico para o Partido dos Trabalhadores: os assalariados que ganham até um salário mínimo. Esse é o fato novo da política nacional, que nos assimila à outras democracias onde o trabalhador conhece o seu lado. Antigamente os mais pobres votavam na direita.
O PT aliás está sucumbindo bem mais por sua incapacidade de conceber a continuação do processo histórico que iniciou do que pelos golpes da mídia reacionária. Também sobreviverá. Reconheçamos que, talvez, como resultado da crise e da sua incapacidade de superar-se, venha a ter que compartilhar o protagonismo na esquerda com algum outro partido, tal como o Podemos na Espanha vem obrigando por lá o PSOE.
Então, na pior hipótese para o PT, o proletariado e seus aliados duplicam a sua representação partidária, agregando algum "partido movimento" ao cenário brasileiro. Se essa hipótese não é desejável para o PT é ainda muito pior para as forças conservadoras lideradas pela mídia... A esquerda na presente quadra da história poderia funcionar como uma Hidra cuja cabeça eventualmente cortada duplicaria e continuaria o combate, acrescentada de uma credibilidade e de um furor juvenis.
Ciro Gomes, Requião, Roberto Amaral, Jean Wyllys, Luiza Erundina, Paulo Paim, Luciana Genro dentre outros encarnam essa possibilidade muito viva, aliás, de recortes à esquerda tão ou mais danosos ao projeto conservador do que o que pode mover o PT...
Concentremo-nos agora no que caracteriza esse campo conservador na política: a) o seu projeto de sociedade é inexistente, b) a teia de "alianças" políticas que o sustenta é instável e explosiva, pois regrupa desde setores neopentecostais até dondocas peladas pelas ruas e c) a sanha entreguista que nucleia os seus espasmos políticos é capaz de produzir feitos de uma burrice colossal.
Sem querer ser exaustivo vamos lembrar de algumas lambanças como a de querer subordinar a Petrobrás às multinacionais do Petróleo no pré-sal, a de querer acusar o presidente Lula de ter ajudado empresas brasileiras a obter mercado estrangeiro, ou a inenarrável vontade de leiloar o Banco do Brasil e a Caixa... O processo atual movido contra o presidente Lula é, aliás, o maior presente que as forças conservadoras poderiam dar a ele. Será lembrado no programa eleitoral de 2016 e 2018 com pompa e circunstância. E acentua a aliança do proletariado ao segmento em claro conflito com os setores conservadores liderados pela mídia, tornando claro que é uma luta em duas frentes.
Essa inacreditável sucessão de burrices demonstra que essa direita não é mais concorrencial no Brasil. Não morreu politicamente, mas morreu historicamente. Não é mais germinal de nada. Trata-se de um monstro que está vivo, mas está acuado e não suporta a luz do dia. O exemplo mais claro disto é o DEM, cuja trajetória declinante o converteu num cadáver insepulto. Nem no Nordeste tem mais relevância, nem dorme em paz.
O recuo da Veja do impeachment decorre, claramente, dessa percepção de que o seu principal beneficiário seria... Lula. Eles têm razão, mas por que? Muito simples, a direita não tem projeto a apresentar à sociedade capaz de produzir consenso. O arrocho que preconizam seria pior do que o de Dilma... Na verdade, não haverá hora boa para mostrar o rosto frankensteiniano ao grande público.
Suponhamos, no pior cenário, que consigam efetivamente derrubar a presidenta honesta para entregar o poder a Eduardo Cunha por três meses e que consigam eleger na sequência, o ínclito Aécio Neves. O que vão fazer? Entregar o pré-sal? Leiloar o Banco do Brasil? Estabelecer leis draconianas contra as religiões de matriz africana? Arrochar o Salário Mínimo? Estabelecer um setor para pardos nos aviões? E se fizerem isto tudo, durarão quanto tempo?
Lembremo-nos da revolução francesa e de Napoleão. A Restauração veio, mas não conseguiu fazer retroceder a revolução burguesa... A história não dá marcha a ré.
A mídia e seus aliados precisam manter o tônus do ataque contínuo pelo mesmo fenômeno que apenas o movimento põe uma bicicleta em pé. Se pararem caem.
A burguesia produtiva e o proletariado aguardam apenas que essa novela chata termine. Precisamos, sem pompa, virar de uma vez essa chatérrima página da nossa história.
Vamos sedimentar uma coisa: a supremacia na sociedade brasileira de hoje é das forças nacionais, democráticas e populares e quanto a isto, nada pode ser feito.
Seria bom, para deixar de atormentar as almas mais sensíveis do nosso lado, pararmos de falar dessa besteira de impeachment, até porque, se ele vier, num par de anos as forças democráticas estarão no comando de novo.
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