Como ocorre com grandes operações de natureza político-policial dos anos recentes, a Lava Jato não costuma ser justificada apenas por seus benefícios materiais, como a localização e punição de corruptos e as vezes de corruptores, nem só pela recuperação de ativos furtados de uma riqueza que pertence a maioria dos brasileiros.
Outra justificava seria a capacidade para contribuir para uma suposta "regeneração moral" dos brasileiros, este povo que, conforme um diagnóstico partilhado pela unanimidade de nosso pensamento conservador, em qualquer de suas ramificações, sobrevive e se reproduz a margem de bons princípios morais. É um ponto de vista tão difundido como duvidoso.
Um dos patronos do pensamento do século XX, o pensador Isaiah Berlim, produziu uma das mais conhecidas contribuições para o debate ético contemporâneo. Berlim ensinou que os bons princípios não podem ser aqueles que nos trazem vantagem. Pelo contrário: "são aqueles que contrariam nossos interesses."
Moral, desse ponto de vista, envolve uma noção de despreendimento e mesmo sacrifício -- e não admite vantagens do ponto de vista pessoal.
O desinteresse de que fala Berlim é obviamente incompatível com o caráter seletivo das investigações, que atende as conveniências políticas da oposição e ajuda a entender o caráter espetaculoso da operação. Mas um aspecto essencial envolve as delações premiadas, como se viu na surpreendente acareação promovida pela CPI em Curitiba, quarta-feira passada.
Chamado a responder às denuncias de Augusto Mendonça, da Toyo Setal, o diretor da Petrobras Renato Duque devolveu toda e cada uma das acusações com a frase: "ele é um grande mentiroso." Pelas contas de Duque, Mendonça mentiu 80 vezes, depois, 90 vezes e por fim mais de "cem vezes."
Falando baixo, evitando olhar Renato Duque, Mendonça confirmou a maior parte do que disse nas delações premiadas. Mas a acareação colocou uma dúvida importante sobre recursos repassados por Mendonça ao Partido dos Trabalhadores. Mendonça admitiu que, embora representassem o pagamento de propinas, jamais havia agido como se não fossem contribuições legítimas de campanha. Quando disse que não se recordava de determinado episódio, Mendonça foi atingido por Duque: "mentiroso esquecido." Perguntado se era verdade, como Mendonça dissera, que havia recorrido aos serviços dele para remeter dinheiro ao PT, Duque retrucou dizendo que, se quisesse mandar dinheiro ao PT, teria feito isso por sua própria conta.
A mesma questão ética apareceu dias antes, com outro personagem. O empreiteiro Marcelo Odebrecht disse que não pretendia "dedurar" ninguém. Explicou que em primeiro lugar não tinha o que "dedurar". Mas também deu um argumento moral. Citando a educação das filhas, revelou que o ato de dedurar alguém por uma falta cometida pode ser até mais grave do que a própria falta.
À frente de um grupo econômico que, conforme uma reportagem recente da revista britânica Economist, cultiva princípios e valores, Odebrechet chegou a ser criticado pelo exemplo. Mas é difícil negar que tenha colocado um elemento ético à mesa: o da lealdade que se justifica como um valor em si, e não se dobra às conveniências.
Na prática, a delação é tão favorável aos interesses do delator que parece ter mais apoio numa nova versão da lei de Gerson anunciada numa propaganda de cigarros ( "tirar vantagem em tudo, certo?") do que na formulação de Berlim.
Depois de desviar recursos durante anos criminosos apanhados em flagrante têm a oportunidade salvar a pele desde que apontem para colegas de trabalho, quem sabe auxiliares que eles trouxeram para o esquema, que tiveram o azar de não terem sido aprisionados com antecedência -- ou que, menos envolvidos na trama, têm segredos menos interessantes para contar.
Pelas regras da delação, os grandes corruptos, são os candidatos a grandes delatores.
É como se a mesma "organização criminosa" continuasse a funcionar, agora com o sinal trocado: quanto maior o grau de responsabilidade de um acusado pelos crimes cometidos, maior será o interesse por sua delação -- e maior o benefício recebido pelo desempenho. Quem explica é o professor Renato Mello Jorge Silveira, diretor-adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: " beneficia-se o criminoso de alta gama, aquele que teria mais informações. Pactua-se, portanto, com quem mais delinquiu. Pune-se, por outro lado, a menor criminalidade ou outros, que simplesmente ficaram aquietados."
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