Para quem olha de fora, pode parecer novidade, mas os sigilos especiais decretados pelo Governo do Estado de São Paulo acontecem há um bom tempo – embora, só agora que parte da imprensa resolveu testar os limites da Lei de Acesso à Informação de dados relacionados à administração do Estado, todos estejam embasbacados com uma prática tão espalhada e aprofundada junto aos órgãos mais sensíveis relacionados a recentes escândalos (Sabesp, metrô, polícia) que isso parece até fruto de teoria da conspiração.
Tudo começou quando a Folha de S. Paulo descobriu que havia um sigilo de 25 anos imposto sobre diversos dados relacionados às obras do metrô e dos trens em São Paulo.
Um dos assuntos mais sensíveis politicamente para o Governo do Estado, o metrô sofre com atrasos constantes nas obras já em andamento, com uma média pífia de alguns quilômetros sendo construídos por ano. Os dados colocados em sigilo ultrassecreto em 2014, no meio das investigações sobre um cartel formado pelas empresas que realizam obras nas linhas de metrô e trens, incluem estudos de viabilidade e relatórios de obras e projetos – ou seja, exatamente os dados que poderiam indicar a origem dos tais atrasos e suspensões.
A revelação acabou gerando uma corrida na imprensa em busca de mais decretos de sigilos realizados pelo Governo do Estado, e acabou-se descobrindo uma série de pedidos realizados nos últimos anos para restringir o acesso público a informações de inúmeros órgãos estaduais. Em 2013, a Polícia Militar publicou 26 decretos, tornando ultrassecretos 87 documentos que incluem manuais de conduta, treinamento, dados financeiros e administrativos, além da distribuição dos efetivos. Outro pacote de sigilos, relacionados à administração penitenciária, restringe por 100 anos dados como processos de internação no regime disciplinar diferenciado, ações contra o crime organizado e também dados pessoais do secretário de segurança e de outros funcionários da pasta.
Além disso, a Sabesp, outro órgão sob severo escrutínio graças à aparentemente inesgotável crise hídrica da região metropolitana da capital, fechou em maio deste ano o acesso a documentos que mostravam a gestão administrativa e a distribuição de saneamento pelo Estado.
Cada um desses decretos veio acompanhado de um número assustador de anos em que tais dados ficariam sob sigilo – os dados penitenciários deveriam, em tese, ficar inacessíveis por 100 anos, por exemplo. Nem os dados sobre o envolvimento de criminosos nazistas com a CIA após a Segunda Guerra ficaram restritos por tanto tempo.
De acordo com o jurista e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Flávio de Leão Bastos, o acesso à informação é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, enquanto a regra a ser aplicada é sempre a transparência e o sigilo, exceção.
"São três casos que validam a não concessão de informações: informações pessoais da vida privada, que envolvem a privacidade e a intimidade de uma pessoa. Nesse caso, só ela ou terceiros em casos especiais podem solicitar informações. O segundo caso vem de restrições impostas já por outras leis: [por] exemplo, sigilo bancário e sigilo fiscal. A terceira são aquelas informações consideradas sigilosas pelo Estado", explica o jurista.
Quanto às informações consideradas sigilosas pelo Estado, é aí que se encontra a justificativa da gestão Alckmin para restringir o acesso a qualquer cidadão de informações de instituições que possam colocar em xeque sua administração em São Paulo. Bastos elenca que a restrição só poderá ser concedida se as informações colocassem em risco a segurança da sociedade (risco à vida e à saúde das pessoas) e as informações que possam prejudicar a soberania, os serviços de inteligência e a segurança do próprio Estado.
"O critério é ter uma informação constante de documento público que, se revelada, colocará a sociedade e o Estado em risco. Por exemplo, sair uma lista de quais são as armas compradas pelas Forças Armadas, o local de armazenamento de artefatos bélicos."
Os critérios de sigilo estão elencados na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527): 5 anos para documentos reservados, 15 anos para documentos secretos, 25 anos para documentos ultrassecretos e 100 anos para informações pessoais que dizem respeito à vida privada e à intimidade da pessoa. E a aplicação se dá a todos os entes federativos (União, Estado, Municípios e Distrito Federal), os Três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), assim como as autarquias, os órgãos públicos e até instituições sem fins lucrativos que recebam subsídios estatais.
No caso da gestão Alckmin, os sigilos, que foram revogados após a repercussão na imprensa, representam uma afronta grave aos direitos constitucionais. Inclusive no tocante à questão do sigilo de 100 anos para documentos dos presídios, "um prazo proibido pela Constituição", de acordo com o jurista. "Esse tipo de informação não pode ser sigilosa, porque ela envolve a aplicação do princípio republicano da transparência. República, nesse conceito, significa 'coisa de todos'."
O que levou o governo Alckmin a decretar esses amplos sigilos? Segundo o sociólogo e professor da Escola de Sociologia e Política Marcos Florindo, a intenção é "blindar as instituições do Estado que provavelmente podem causar mais fissuras à sua candidatura [à Presidência da República]". "Tenho a impressão de que isso parece uma postura típica de outro período histórico, no qual o sigilo era fundamental à segurança do Estado. Isso parece uma ditadura", complementa o sociólogo.
Para Florindo, esse surto de sigilos recém-descobertos, que remonta a 2013, foi uma "aposta" do governo, que "contava que isso não ia ser muito divulgado ou comentado pela imprensa. O que pegar, pegou". A questão é que a manobra parece ter encontrado um entrave na própria imprensa, normalmente acusada de leniência para com o governador, criando um forte eco na opinião pública.
A pressão social, aliada às ações do Ministério Público Estadual, fez Alckmin recuar no processo de classificação indiscriminada de documentos. Mesmo com a revogação dos sigilos, o Ministério Público já se posicionou dizendo que os atos da gestão ainda são passíveis de punição por violarem o acesso à informação.
O novo decreto publicado na sexta-feira (16) estabelece a proibição da delegação de subordinados da cúpula para estabelecer os sigilos de informações públicas. Agora, os secretários estaduais, assim como o procurador geral, irão reavaliar todos os pedidos de acesso a documentos que foram negados anteriormente.
"A democracia exige transparência, e me parece que o governo revisitou um passado sombrio nesses atos. Tudo depende agora da pressão social em torno da exigência da transparência", frisa Florindo.
Vale lembrar que qualquer questionamento de informações sigilosas pode ser realizado por qualquer cidadão, inclusive pessoas jurídicas. O cidadão, de acordo com Bastos, pode até mesmo questionar a classificação de uma informação sigilosa.
"Se você pensar no tocante às disponibilizações de informações dos municípios e estados, ninguém fornece nada e ninguém cobra isso também. Isso explica, em parte, as questões dos desvios e da corrupção", afirma.
por Marie Declercq - revista Vice
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