A necessidade de aprovar uma reforma para o Judiciário foi o pretexto empregado pelo general Ernesto Geisel para justificar o fechamento do Congresso em 1977. Com base em atos institucionais que haviam sido escritos pela própria ditadura, editou-se, no entanto, o Pacote de Abril que, entre outras atrocidades, desfigurou a representação parlamentar para aumentar o suporte congressual ao regime.
A grotesca declaração de vacância do presidente João Goulart, lida numa tétrica noite do Congresso Nacional, aliás, já havia aberto caminho para a institucionalização da ditadura, treze anos antes.
Não faltam na história brasileira soluções hipoteticamente jurídicas para mascarar golpes e rupturas institucionais sempre que os setores empoderados se viram distantes do poder político.
A própria trama que levou Getúlio ao suicídio se fundou em um inquérito policial, cujos resultados, que antecediam às investigações, eram diuturnamente amplificados na imprensa, criando, com base em ilações jamais demonstradas, um clima propício à renúncia ou destituição.
A grande mídia, como se sabe, deu suporte a praticamente todas essas manobras na questionável qualidade de representante do interesse público – leia-se aqui do mercado financeiro, de líderes industriais e da classe média urbana. Afinal, se o poder não está no poder, alguma coisa definitivamente deveria estar fora da ordem.
Por tudo isso, pelas tristes e cruéis lições da história e a amplitude dos poderosos insatisfeitos, nem é de se estranhar que imediatamente ao resultado das últimas eleições tenha-se iniciado uma campanha de negacionismo: pedido de recontagem das urnas, chamados por intervenção militar, mobilização pelo impeachment.
A última delas chegou a ser revestida de uma plumagem jurídica, mesmo na ausência de qualquer crime de responsabilidade que esteja à disposição do anseio golpista cada vez menos disfarçado de seus proponentes.
Mas também aí nada de novo.
Sempre houve, entre nós, juristas que se dispuseram a ceder, às vezes até alugar, seu conhecimento jurídico para institucionalizar soluções autoritárias. Muitos deles perseveram mandando às favas os escrúpulos da consciência.
Verdade seja dita: isso não é um privilégio nacional. Hitler também não teve qualquer dificuldade de sedimentar, com apoio de juristas de plantão e de renome, seu caminho legal para a barbárie.
A ânsia de buscar fundamentação jurídica para atrocidades não passa de um subterfúgio publicitário e um eufemismo para apaziguar consciências que se apregoam ilustradas. E porque, como ensinou Goebbels, até mesmo o autoritarismo precisa de propaganda.
Mas o que sai de suas entranhas nunca será direito.
Nossa ditadura jamais deixou de ser ditadura apenas porque houve um rodízio de generais, nem porque preservou algumas eleições e certos mandatos. Sempre que o poder esteve em risco vozes foram silenciadas, Congresso desprezado e eleições manipuladas. Aqueles que mais se diziam defensores da lei e da ordem foram, ao final, os maiores violadores do estado de direito.
No estado democrático, todavia, o direito não pode existir como forma de sepultar a vontade das urnas. Por mais incômoda que ela se apresente. Sempre haverá um novo pleito para que os derrotados possam submeter suas teses e seus nomes, suas agendas e seus projetos aos eleitores.
Alimentar as especulações pelo impeachment, porque a vitória do oponente desagrada; surfar no golpismo, pelo oportunismo das alianças; levar a interpretação da lei às sombras do direito para tornar a política irrelevante. Tudo isto fragiliza o processo mais que o resultado; o Estado mais que o governo; a democracia mais que o partido.
Espera-se, enfim, que aquela conversa toda sobre alternância de poder, insistentemente repetida antes das eleições, não tenha sido pensada na sucessão entre democracia e estado de exceção.
Marcelo Semer - Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felipe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.
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