A moça estuprada, seu celular e a Testemunha de Acusação
O Extra faz um jornalismo surpreendente, diria até que o melhor jornalismo de reportagem da atualidade.
Mesmo sendo das Organizações Globo, coube a ele desmentir o tremendo factoide armado na época, sobre os boxeadores cubanos que teriam sido extraditado para Cuba pelo governo brasileiro, para impedi-los de conquistar a liberdade.
Colocou seus repórteres refazendo a pista dos cubanos, descobriu que foram enganados por um empresário de boxe alemão, ficaram na mão e pediram para retornar para Cuba.
Agora, levantam o caso da menina supostamente estuprada por trinta meliantes. E publica, hoje, uma boa matéria enfrentando todas as afirmações preconceituosas contra a menina, tipo "ela não é santa, teve o que procurou", "foi orgia, suruba, não estupro", "ela não presta, teve filho aos 13 anos".
Trata-se de uma postura digna e corajosa, ainda mais destinando-se a um público de baixa renda, bastante conservador e preconceituoso. E uma boa aula de como desmascarar argumentos machistas nos casos de estupro.
Ocorre que há duas discussões em pauta.
Uma, genérica, sobre o estupro, na qual se levantam todos os argumentos preconceituosas apresentados pelo Extra.
Outra, objetiva, jornalística, se atendo aos fatos.
O Extra dá uma boa resposta aos argumentos machistas. Mas se desbastar as dúvidas sobre o estupro de toda a dose de preconceitos existente, ainda assim a versão da menina não para de pé.
Essa história ainda vai se tornar um caso a ser estudado nas faculdades, nesses tempos de Internet e seus hoaxs e mídia alucinada por fabricar escândalos.
Não se indaga qual a razão de um aparato bélico contra uma jovem indefesa.
Jovens acusados afirmam que, dois dias após o suposto estupro coletivo ela voltou ao morro. À polícia, a jovem admitiu que procurou o dono do tráfico no morro para cobrar o seu celular que tinha desaparecido (http://goo.gl/C5JdNO).
Alguém que foi estuprado por trinta homens armados não volta ao local do crime dois dias depois, para cobrar o celular desaparecido.
O jornal alega que, em muitos casos de abusos contra a mulher, está demora a reagir e a se afastar do local dos abusos. Ora, essa regra vale para abusos que são cometidos no lar das vítimas, de mulheres, em geral com filhos, dependentes do marido, sem alternativas fora da casa. Não no caso de uma jovem classe média que apenas visitava a favela.
Ou seja, levantou uma explicação que cabe nas mulheres submissas aos maridos, mas não se aplica ao caso da jovem.
O Extra Justifica a jovem não ter dado parte à polícia imediatamente devido ao fato do aparato do Estado estar distante do povão. Opa! A jovem é de classe média, filha de pastor, provavelmente de uma família com plenas condições de acionar o aparato do Estado. Quem não tem acesso ao Estado são os jovens favelados acusados.
Ou seja, levantou uma situação que se aplica a jovens do subsolo da pirâmide social e aplicou a uma jovem de classe média.
Como é possível a alguém que supostamente sofreu violência tão grande, disfarçar da própria família, retornar ao local do crime dois dias depois para reclamar... o celular perdido?
Lembra a piada da avó judia (ou árabe, para não me acusarem de racismo), que passeava pela praia com o netinho com o boné na cabeça. Uma onda veio e carregou o netinho.
A avó, desesperada, levanta as mãos para os céus:
· Deus, ó Deus, eu sempre rezei, fiz o bem. Por que você levou meu netinho?
Tanto implora que uma onda arrebenta na praia e dela sai, ileso, o netinho. Mas sem o boné. É a avó:
· Deus, e o boné? É o boné?
Além disso, o Extra não explica a solidariedade do morro para com os acusados, nem o fato do tráfico - que tem no estupro um dos crimes capitais - não ter saído por aí executando suspeitos.
O que se tem de concreto:
1. Segundo notícias de hoje, o chefe do tráfico jurando a menina de morte por tê-lo colocado no centro de uma controvérsia nacional.
2. Uma delegada pressionada pela mídia, fazendo o que for necessário para dar satisfações ao público, ainda que à custa de violência contra jovens suspeitos.
3. O noticiário sendo relegado ao pé das homes ou às páginas internas dos jornais, pela óbvia dificuldade de admitir a barriga em que entraram.
O Extra encontrará uma saída para o episódio. E não afeta em nada sua qualidade jornalística.
Aliás, seria bom o diretor de redação assistir o clássico "Testemunha de acusação". O velho advogado Charles Laughton defende a ré Marlene Dietrich, consegue sua absolvição. E, depois, descobre que a versão contada era errada e que havia condenado um inocente, Tyrone Power.
Na última cena, veste seu jaquetão para voltar ao tribunal. Agora, para inocentar o réu que ele próprio condenou.
PS - Aliás, é curiosíssimo que, dentro dos grupos de mídia, Extra e Exame pratiquem um jornalismo menos comprometido que as publicações mães.
Desmentem o provérbio popular de que quem engorda o porco é o olhar do dono. No caso brasileiro, aparentemente o jornalismo só floresce onde o dono não bota seu olhar.
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