De tempos em tempos, os animais da floresta escolhem um bicho para governá-los, intervir nos conflitos entre as espécies e promover a integração da fauna local. No momento, o que reina entre os animais é um sagui. Antes dele, foi um marreco.
Ao que parece, o sagui tem feito um bom governo e os animais estão contentes. Há ainda muitas desavenças entre eles — o que é natural —, mas nada comparado ao reinado do tucano.
Pois o governo do tucano foi desastroso! E para entender o motivo é preciso contar a história de sua eleição.
Nos primeiros tempos, os reis eram unicamente os grandes carnívoros: nas savanas, os leões; e nas florestas tropicais, devido à ausência de uma fera imbatível, compartilhavam o trono as onças, os tigres e as panteras.
O poder estava sempre na mão dos grandes. Aos seres inferiores do reino animal apenas cabia viver aquilo que a natureza e seu destino permitisse.
Mas isso foi há muito tempo. Ao longo dos séculos, os grandes felinos foram ficando em número cada vez menor e viram-se obrigados a ceder poder a outras feras, a começar pelos jacarés, que frequentemente os ameaçavam com mordidas. Entretanto, apesar de vagarem o trono, os grandes felinos não admitiram largar o poder. Apenas o estenderam a um clube seleto de predadores.
Isso não durou muito sem provocar novas crises. Pouco a pouco, por todos os cantos da floresta, bichos dos mais diferentes tipos conspiravam unir-se, reclamando os mesmos direitos dados àqueles carnívoros. Quando não mais podiam fazer frente aos pelotões de pulgas, ao barulho infernal dos grilos durante à noite e às esquadrilhas de vespas camicases, as feras aceitaram instituir eleições gerais para o cargo mais cobiçado do reino animal.
Assim, os animais passaram a eleger diretamente seu rei, embora nem sempre escolhessem o mais preparado para o cargo. Na verdade, geralmente se iludiam, escolhendo o mais elegante ou o mais agressivo. Buscavam neles atributos que desejavam ter, pois ao menos se confortavam em encontrá-los em seus líderes. E as feras sabiam disso... Exploravam com maestria a ingenuidade dos bichos menores. Graças a isso, mantiveram-se aferradas ao trono, ou bem próximas dele, mesmo após a eleição ser instituída.
Assim, por ironia, após tantas revoltas bem-sucedidas, os animais passaram a eleger os opressores de sempre.
Pois enquanto tinham inimigos em comum, todos os bichos se uniram. Mas, logo que julgaram ter conseguido o que queriam, as diferenças dividiram-nos completamente. Os peixes não mais confiavam nas ariranhas, que não se cruzavam com os guaxinins, os quais detestavam as cobras, que se escondiam de algumas aves, as quais, por sua vez, acusavam os roedores de devorar seus ovos.
Cada animal tinha uma queixa contra algum outro. Logo que essas rixas recomeçaram a fazer parte de suas preocupações cotidianas, eles esqueceram o quanto fizeram juntos e voltaram sua admiração para a sedosa pele dos felinos.
Ser um grande felino era o sonho de muitos animais... Invariavelmente, acabavam votando neles ou nos seres por eles apoiados. Todavia, depois do reinado de terror imposto por uma tropa de urutus e da lamentável aventura duma perdiz colorida que quase levou o reino à perdição, havia consenso, em toda a fauna, sobre ter chegado a hora da mudança.
Seguindo essa nova tendência, à revelia das feras se apresentaram dois animais como candidatos a rei: o sapo e a siriema. Destes, o sapo era uma opção totalmente inovadora. Representava principalmente as classes menos favorecidas. Orgulhava-se de ter vindo do charco, conhecendo a vida dos pequenos animais, os quais, apesar de constituir maioria absoluta, eram sempre esquecidos pelos mandatários do governo. Era o grande favorito para o cargo de rei, contando com o voto de legiões de formigas e abelhas operárias. Porém, um outro bicho pretendia candidatar-se: o tucano.
As feras estavam irritadas e já conformadas em ter de engolir o sapo, se este fosse eleito. Mas agitavam-se pensando em alguém para derrotá-lo. E o tucano se apresentou a elas.
Ele sempre sonhava em ser rei; porém, sabia que se estivesse sozinho ninguém o perceberia. Não tinha o porte altaneiro de uma ave como a siriema nem o discurso atrevido do sapo. Contudo, se fosse visto junto dos tigres e das onças, todos lhe dariam atenção. E foi esta a proposta que ele fez aos felinos: dar-lhes-ia boa parcela do poder se o apoiassem como haviam feito a inúmeros reis no passado. Os felinos deleitaram-se com a proposta, mas impuseram-lhe uma condição: em se tornando rei, deveria governar sempre de dentro da boca de uma onça.
Sabemos que nada neste mundo compensa o risco de estar dentro da boca de uma onça... Mas o tucano pensou o oposto. No fundo, ele acreditou que a onça se cansaria e que poderia enganá-la, pois se julgava muito esperto.
A reputação dos felinos estava um tanto em baixa. Sozinhos tampouco chegariam ao poder, mas seu apoio ainda tinha grande peso. No entanto, agora o tucano possuía muito mais prestígio e todos o notaram. Não eram poucas as qualidades que afirmava ter. Além de sua plumagem exótica e cores chamativas, o tucano apresentava-se como profundo conhecedor doutras florestas distantes para as quais costumava migrar, tendo lá relações das mais amigáveis com sábios mochos e vetustas corujas. Isso foi o bastante para granjear-lhe muitos votos, principalmente entre os pavões. Sua aliança com os felinos passava a impressão de até as feras mais tinhosas se terem rendido a sua vasta erudição. Sendo um animal de porte médio, o tucano insistia em ser o único capaz de conciliar o bom diálogo entre os bichos grandes e os pequenos, entre presas e predadores. Para ajudá-lo, os felinos até fingiram terem-se tornado mais mansos. Quantos não ficaram enfeitiçados com tal encenação!...
Ainda assim, o sapo continuava à frente das intenções de voto e só deixou de estar porque o tucano e seus aliados usaram de capciosas artimanhas. De início, discutiam somente em torno da aparência dos adversários, e não acerca de suas propostas. Chamavam a siriema de ave esdrúxula, louca e estabanada; o sapo era desprezado como repugnante e escorregadio.
Não satisfeitos com isso, partiram para um golpe ainda mais vil. Colocaram no cerne dos debates os hábitos alimentares de cada um: a siriema devorava cobras e pequenos mamíferos, enquanto o sapo, para surpresa geral, engolia vários dentre os que o apoiavam! Qual era seu respaldo, questionava à viva-voz o tucano, para pretenderem um posto de suma importância para toda a fauna da região? Desse ponto de vista, o tucano tinha de sair como vencedor, em afirmando ser o único postulante vegetariano: só comia frutinhas e castanhas... E foi assim a virada na eleição a seu favor e sua vitória.
E chegou enfim o momento de cumprir sua parte do acordo. A onça abriu bem as mandíbulas para que ele se acomodasse. O tucano nem se importou, pois estava muito feliz por ser o novo rei da floresta. Logo ordenou a outros tucanos, colegas seus, voarem para perto dele, compondo sua corte emplumada. Em estando tudo pronto, no momento de seu primeiro discurso aos súditos, a onça rugiu levemente, sem ser ouvida pelos outros, mas forte o bastante para fazê-lo estremecer de terror. Em seguida, ela ditou pausadamente tudo o que o tucano deveria dizer, e ele descobriu não ter outra escolha senão repetir o que ela dizia.
Se fosse um tanto mais corajoso, agora que já estava eleito, talvez pudesse simplesmente voar dali, contar a chantagem da qual era vítima e pedir apoio a seus eleitores. Mas, era vaidoso demais para isso... Pois se escapasse, possivelmente seu acordo secreto com os felinos seria revelado ao resto da floresta, e todos, inclusive seus outros amigos tucanos, saberiam ser ele um animal sem caráter.
Ao contrário, na medida em que se submetia às ameaças da onça, tornou-se um rei refém. Mesmo que alguma vez tenha tido ideias próprias para melhorar a vida na floresta, ninguém jamais o soube, pois era somente um fantoche de penas lambidas pela fera que o abocava...
Não é de admirar terem sido tão disparatadas todas suas ordens e decretos. Logo de uma tacada, ele nomeou como auxiliares imediatos uma preguiça e uma anta, bichos reconhecidamente pouco competentes para um trabalho sério. Depois, a título de melhorar a segurança da floresta, dividiu-a em lotes, dando o controle de cada um destes a um grande felino. Dentro desses espaços, os carnívoros tinham poder quase irrestrito. Sem concorrência, eles depredaram impiedosamente fauna e flora, como nunca antes tinham podido fazer, nem mesmo quando eram eles os governantes. Foram revogados direitos adquiridos pelos outros animais, que não tinham mais como defender-se. No final, havia somente a lei da selva.
Quando viajava pela floresta, conseguindo ficar um pouco longe da bocarra, o tucano demonstrava indignação a todo instante. Sob as luzes, nas clareiras, improvisava discursos eloquentes e furibundos, pedindo o esforço e a colaboração de todos para o sucesso de seus planos irreais e rocambolescos, arrancando lágrimas até dos crocodilos mais insensíveis. Entretanto, ao voltar ao seu palácio, aninhava-se servilmente entre os dentes da onça e adormecia, sonhando com os apupos recebidos, prontamente esquecendo tudo o que dissera ou escrevera... Assim, passou a recorrer à mentira para acalmar a opinião dos outros animais, cada vez mais impacientes. Tornou-se tão mentiroso, que, dizem, seu grande bico, na verdade, é um nariz supercrescido.
Mas um dia a farsa do tucano chegou ao fim. Foi quando os animais, cansados de tanta injustiça, se rebelaram todos juntos. Dessa vez foi um movimento maior do que todos os já vistos na floresta. Uniram-se a eles até mesmo outras feras, deixadas de lado pelo pacto entre o tucano e os felinos. Queriam destituir o rei e promover novas eleições.
O tucano foi avisado do ocorrido pelos colegas de espécie e apavorou-se. Não sabendo como agir, apresentou à onça a situação. Não lhe restava mais ninguém; todos o tinham abandonado. Julgava-a como a única amiga e precisava de sua proteção e aconselhamento, pois tinha atuado segundo ela lhe ordenara e, agora, acusavam-no por tudo de ruim que acontecia na floresta. Respeitosamente, tentou fazê-la ver serem os felinos os responsáveis por aquilo. A onça concordou sem ressalvas, para alívio da ave agitada. Porém, adiantou ser apenas ele quem disso sabia, e que, perante todos os outros seres, ela e os de sua espécie não respondiam por coisa alguma; que, por mais que ele contasse a verdade, ninguém acreditaria nele.
O tucano desesperou-se e cogitou fugir, mas não se sentia seguro em parte alguma, senão dentro da boca de sua portadora. A onça sorriu animada com isso e instigou-o a adentrar um pouco mais sua boca, onde poderia ficar escondido, até que o descontentamento acabasse. E assim o tucano fez. Estando ele já bem oculto, a onça cerrou as presas e comeu-o.
Finalmente, quando os animais rebelados chegaram ao palácio, a onça disse-lhes que acompanhara consternada o clamor da revolução e devorara o rei incompetente.
E todos a aclamaram: “Viva a onça!”...
<<< Adaptação de um conto do livro O Rei Adulto. Este conto particular foi escrito em 1998. >>>
Nenhum comentário:
Postar um comentário