A mentira é o elo entre Edir Macedo, Malafaia e Bolsonaro, dizem evangélicos, por Marcelo Santos, para a RBA


Bolsonaro com Malafaya e Edir Macedo


Para o pastor Ariovaldo Ramos, a Bíblia chama isso de ‘filhos de Belial’: 'Gente que lança mão da desfaçatez e da hipocrisia para desviar os fiéis da vontade de Deus' 

São Paulo – Depois de ter se recusado participar do debate entre os presidenciáveis promovido pela Rede Globo, na noite desta quinta-feria (4), o candidato Jair Bolsonaro (PSL) recebeu privilegiado palanque eleitoral na emissora concorrente, a Rede Record. De propriedade do bispo evangélico Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, que nos últimos dias manifestou-se favorável à candidatura do militar extremista, a emissora realizou uma cordeira entrevista de 30 minutos exibida na hora do debate.
A conversa conduzida pelo jornalista Eduardo Ribeiro teve a presença do vice-presidente de jornalismo da Record, Douglas Tavolaro, e selou de vez a aliança Edir Macedo e Bolsonaro. Com mais de 40% de intenções de voto entre evangélicos, o presidenciável também realizou uma transmissão ontem na companhia o pastor Silas Malafaia. Foi um dia especialmente agitado para quem, segundo seus médicos, convalescia.
Um dos coordenadores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, o pastor Ariovaldo Ramos, considera a campanha promovida pelos midiáticos pastores “uma distorção, um desrespeito a liberdade de consciência do fiel. Um desrespeito aos limites da autoridade espiritual”.
Ariovaldo explica que é papel da autoridade espiritual fomentar a liberdade de consciência, expressão e decisão. “O que esses irmãos estão fazendo não está condizente com o papel do sacerdote e conselheiro espiritual. Usar o poder mais intenso que existe, que é o poder da fé, para chantagear ou manipular é escabroso”, condenou.
O líder religioso lamentou também o uso de mentiras, especialmente espalhadas por alguns setores evangélicos. Recentemente, o pastor Silas Malafaia espalhou fake news dizendo que o ataque sofrido por Bolsonaro, em Juiz de Fora, foi obra de um “militante do PT” que “assessora a campanha de Dilma ao senado”. Questionado, usou do seu costumeiro cinismo para dizer que "assessora" era uma palavra "dúbia" e não significava que ele teria afirmado que o homem fosse funcionário ou recebesse algum tipo de salário.
“Estamos assistindo evangélicos envolvidos nisso. Isso é assustador porque uma das advertências que as Escrituras fazem é a de que a mentira é filha do diabo. Portanto, servir a mentira ou lançar mão da mentira é fazer um pacto com o diabo. É servir ao diabo. É ser um anticristo. É colocar-se contra Deus e contra tudo o que nossa fé proclama”, ressalta Ariovaldo.
Para ele, a promoção deliberada da mentira é lamentável. “Nós estamos diante do que Bíblia chama de ‘filhos de Belial’. De gente que lança mão da mentira, da desfaçatez e da hipocrisia para desviar os fiéis da vontade de Deus”.

O que aconteceu com os evangélicos?

O ativista comunitário Francisco Silva (o nome é fictício porque o entrevistado tem sido alvo de ameaças), lembra de como a fé evangélica o fisgou. “Foi uma experiência de alumbramento diante do amor de Cristo. Nunca havia sentido nada parecido, nunca havia experimentado algo tão real, tão próximo e arrebatador”. Passou os últimos 13 anos numa relação religiosa intensa. Dirigiu o grupo de ação social de sua igreja, tornou-se obreiro voluntário e liderança entre os jovens.
Via as mensagens sobre redenção, canções que tratavam sobre comunhão e amizade, o bem querer, a esperança de que a “cana quebrada ou o pavio que fumega” como combustíveis para sua militância no movimento estudantil e no apoio a pautas progressistas e humanitárias.
Mas o que era exemplo claro de compromisso social e fidelidade aos preceitos cristãos tornou-se motivo para perseguições e ameaças dentro de sua própria comunidade de fé. Bastou se opor ao discurso de ódio do candidato Jair Bolsonaro para ser ofendido por bolsonaristas de alcunhas nada elogiosas como "comunista de merda", "lixo dos infernos", "servo do diabo", "vagabundo”, "terrorista criminoso", "militantezinho extremista", além de passar a ser monitorado virtualmente.
A gota d’água foi quando apoiou um ato contra as reformas trabalhistas realizadas pelo governo Temer. “Num grupo de WhatsApp dos obreiros da igreja, um irmão,  policial militar, ironizou o movimento. Dizia que as atividades girariam entre ‘comer pão com mortadela e apanhar da polícia’".
Francisco reagiu e pediu que fosse respeitado o direito à manifestação. O homem aumentou o tom das ofensas e passou a postar xingamentos e ameaças. “Ele escreveu que lamentava não estar com o fuzil dele nas mãos naquele momento para me dar ‘um tiro nos miolos para ver se aprende alguma coisa’".
A ameaça vinda do obreiro e militar o deixou perplexo. A liderança não repudiou a violência. Francisco e sua família deixarem a comunidade onde começou seus passos na fé evangélica. “Foi muito triste. Alguns amigos saíram em solidariedade ao que ocorreu comigo e outros também indignados com os discursos de ódio que foram disseminados, com um moralismo excludente e com um tradicionalismo que colocou para fora todos os que pensam de forma diferente do que a cúpula da igreja deseja.”
Casos assim não são raros. Defender a justiça, verdade e a solidariedade, nos últimos anos, tornou-se motivo de forte perseguição dentro de boa parte de denominações evangélicas. “Os evangélicos estão trazendo à tona um ser imenso e terrível que estava sendo gestado há décadas em seu interior. Isso não acontece de uma hora para outra”, explica o professor de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Orivaldo Lopes Junior.
Segundo ele, por volta de 1960 o protestantismo, como era chamado na época, vivia uma primavera de liberdade e de esperança. “Havia uma unidade entre as igrejas tradicionais, mas uma suspeita para com as pentecostais. As organizações de união, como a Confederação Evangélica Brasileira tinham uma atuação social intensa. Por exemplo, realizou no Recife, em 1962, a conferência Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, com a participação de teólogos, pastores e intelectuais”, lembra Lopes Junior.
Tudo isso, entretanto, foi reprimido e esmagado com o golpe de 1964. “Os seres pequenos que jamais conseguiriam espaço no mundo religioso de então, aproveitaram para expelir líderes que tinham postura de unidade e diálogo com a sociedade, e ocupar seus lugares, beijando em seguida as botas dos militares. De uma hora para outra, as igrejas saíram do quintal e vieram para a sala de visitas do poder”, relata.
O "monstro" criado há cinco décadas, segundo o professor, voltou a se apresentar com os movimentos de 2013. “A carta de protesto contra o governo federal que propunha aumento de consultas populares, gravações de ameaça aos candidatos do PT, silenciamento quanto ao golpe de 2016, e agora, com plena força, apoio a um candidato que é tudo o que há de contrário aos princípios mais elementares da fé evangélica, como fidelidade, respeito à vida, tolerância e amor aos excluídos”, observa o professor.
Para ele, é como se parte da Igreja brasileira entregasse todos “seus anéis de respeito, dignidade, responsabilidade histórica e coerência” em troca de sentir que estejam salvando “o moralismo, a heteronormatividade, o neoliberalismo, o fim do Estado laico e seu crescimento desenfreado como um fim em si mesmo”, conclui ele, que também é pastor batista.

'O medo mobiliza'

Vitima também do "fogo amigo", o teólogo Caio Marçal conta ter sofrido ameaças após denunciar o chamado "voto de cajado", nome dado à prática ilegal de constrangimento, por parte dos pastores, para que seu rebanho vote em seus candidatos.
“Recentemente fui alvo de um conhecido teólogo fundamentalista dizendo que eu era defensor de bandidos e coisas do tipo”, conta ele, que é também pedagogo, mestrando em sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, articulador da Rede Fale e missionário evangélico na Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte, que abriga mais de mil famílias na luta por moradia digna.
Ele avalia que esse movimento seja fruto do neofundamentalismo crescente e seus discursos cheios de teses conspiratórias e de pânico moral. “O medo mobiliza as pessoas”. O neofundamentalismo e sua lógica de guerra cultural é a volta do velho fundamentalismo americano surgido nas décadas de 1960 e 1970, através de movimentos como a Maioria Moral, com o televangelista Jerry Falwell e o teólogo Francis Schaeffer.
O movimento representou a ação mais destacada da chamada nova direita religiosa e atuou na tentativa de implementar uma agenda teológica-política articulada em torno de valores religiosos e morais. Na busca de viabilizarem uma agenda político partidária, os ativistas da Maioria Moralapregoavam que a sociedade americana se encontrava sob a ameaça de ‘grandes males’, algo muito semelhante aos momentos atuais no Brasil.
“Não é à toa que o fenômeno desse pânico moral chegou em diversos outros países. Curiosamente, sempre atrelados com a direita conservadora e com o ultraliberalismo econômico”, denuncia.

Jesus socialista

Há 18 anos, quando tinha apenas 22, o escritor e professor Jefferson Ramalho era um aspirante a pastor em sua igreja. Porém, foi expulso por ter declarado que votaria num candidato de esquerda, oposto ao recomendado por sua denominação.
“O pastor me disse que, por ter optado pela esquerda, lá não teria mais espaço para mim, nem como um simples membro. Decidi estudar e saber porque a igreja odeia tanto a esquerda. Descobri que a mensagem de Jesus nada tem a ver com o que muitas igrejas pregam e ensinam hoje. A igreja prega a riqueza e a prosperidade, Jesus prega a simplicidade. A igreja prega a meritocracia, Jesus prega o compartilhamento”, enumera ele, que escreveu, em 2017, o livro Jesus, o Maior Socialista que já Existiu.
“Se os cristãos se abrissem para outros olhares e pudessem ter acesso a outras literaturas de escritores também cristãos (além da norte-americana), veriam que a mensagem de Jesus de Nazaré é plenamente compatível com as propostas socialistas de inclusão plena, igualdade econômica e social, solidariedade e, claro, de denúncia e de combate aos privilégios dos mais poderosos”, defende ele, cientista da religião e doutorando em História pela Unicamp.

Destituído da igreja

Apesar de estar há pouco mais de dois anos na Igreja Presbiteriana Independente de Cohab I, zona leste de São Paulo, o pastor Nilton Lima foi informado, em agosto, que será destituído. “Um dos fatores alegados pela liderança é de que eu seria ‘petista’, em razão de meus posicionamentos no Facebook sobre política”.
Nilton explica que jamais utilizou o púlpito para manifestar suas predileções políticas e partidárias e que seu pastorado baseia-se no “trabalho social, presença, aconselhamento, visitação permanente, treinamento e capacitação das lideranças, ensino e pregação”.
Apesar da tristeza, ele entende que o evangélico, assim como o brasileiro médio, é muito sensível ao discurso anti-esquerdista presente na política e na cultura brasileira. “Eu diria que é um anti-esquerdismo de senso comum. Não se sabe muito bem o que é comunismo, socialismo ou esquerda, e quando esses termos aparecem causam repulsa. Inclusive com a ideia de que vai haver fechamento de igrejas, pessoas forçadas a negar sua fé, perseguição religiosa etc.”
Ideia totalmente infundada, lembra o escritor e pastor Hermes Fernandes, bispo primaz das Igrejas Reina, na cidade do Rio de Janeiro. “O Brasil foi governado pelo PT por quase 14 anos consecutivos. Nesse período, as igrejas evangélicas experimentaram o maior crescimento da sua história no país, obtendo inclusive isenções fiscais. Nenhuma denominação foi perseguida ou fechada. Mesmo assim, ensinam aos crentes que um governo de esquerda vai perseguir os evangélicos”, lembra. “Um dos primeiros atos do Lula, assim que assumiu a Presidência, foi convocar pastores para uma reunião no Planalto para discutir políticas sociais. Eu fui um deles. Silas Malafaia, também. René Terra Nova, idem. Havia representantes de igrejas históricas como a Presbiteriana e a Batista.”
Mesmo não sendo eleitor do PT, o pastor não escapa da saraivada de intolerância e ódio. “Já sofri constrangimentos, ameaças e boicotes. Fui cortado de uma emissora de rádio, a mais popular do Rio de Janeiro porque eu não quis aderir à campanha para eleger o deputado ligado à emissora, que era o Eduardo Cunha (preso por corrupção).”
Em outra situação, o bispo Hermes Fernandes participou de uma entrevista, para um canal evangélico de TV, com o deputado paulista Marco Feliciano. “Eu o coloquei numa saia justa ao falar sobre o racismo. O vídeo até viralizou na internet. Isso me custou muito caro. Muitos convites deixaram de vir. Portas se fecharam. Sobretudo após lançar meu livro Intolerância Zero, onde exponho todo o preconceito pregado nos púlpitos das igrejas evangélicas.”
O bispo avalia que os candidatos descobriram que “o terror” é a melhor maneira de conseguir o voto dos crentes. E revela que ele mesmo já foi assediado por diversas vezes. “Já me fizeram ofertas de fazendas com bois, de custearem a abertura da igreja em outros estados do Brasil, com aluguel garantido. E, nessa eleição, um candidato me ofereceu um quarto de milhão de reais só para apresentá-lo e orar por ele. Eu estou cansado e enojado disso tudo.” Para ele “está na hora da Igreja acordar e voltar às raízes do Evangelho” porque, se isso não ocorrer, “nesse próximo domingo a gente pode eleger um fascista para presidente do país”.
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