Os povos indígenas reunidos em torno do Supremo Tribunal Federal respiraram aliviados, na tarde de ontem, quando o ministro Cristiano Zanin, recém-empossado e indicado por Lula, terminou de ler o seu voto contra o marco temporal, exótica tese inventada pelos ruralistas para inviabilizar as demarcações de terras indígenas.
Os malabaristas da bancada BBB – do Boi, da Bala e da Bíblia – há tempos tentam emplacar no Congresso um projeto de lei que reconheça o direito dos povos originários somente pelos territórios efetivamente ocupados ou reivindicados até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Todo esbulho anterior seria perdoado.
Até ocupar sua cadeira na Suprema Corte, o voto de Zanin contra o marco temporal era tido como favas contadas, dado o perfil garantista do advogado que persistiu na denúncia dos abusos da Lava Jato e conseguiu a anulação de todas as condenações de Lula.
As primeiras decisões do ministro com a vetusta toga preta deixaram, porém, os eleitores progressistas de cabelo em pé.
Zanin votou contra a descriminalização da maconha para consumo pessoal e a equiparação da homotransfobia ao crime de injúria racial, além de ter afastado o princípio da insignificância para dois homens condenados pelo furto de um macaco de carro, dois galões para combustível e uma garrafa com óleo diesel, avaliados em míseros 100 reais.
Desta vez, Zanin deu uma bola dentro. Não apenas votou contra o marco temporal, como fez um importante reparo em uma tese defendida por um colega.
Alexandre de Moraes também votou contra a proposição dos ruralistas, mas condicionou as demarcações ao pagamento de uma indenização aos fazendeiros que adquiriram de "boa-fé" terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. Para o magistrado, a União falhou na proteção desses territórios e, portanto, deveria pagar uma reparação não apenas pelas benfeitorias feitas pelos atuais proprietários, mas também pela terra nua, aquela que fora usurpada dos indígenas anteriormente.
Numa tarde inspirada, Zanin observou que o pagamento de indenizações deveria ser analisado caso a caso. Não é possível tratar de igual modo pequenos proprietários que compraram lotes do próprio governo e latifundiários que se beneficiaram da grilagem de terras públicas. Ademais, pontuou o ministro, a União não deve ser obrigada a reparar erros cometidos por outros entes federativos.
Se, no passado, alguns estados venderam ilegalmente terras indígenas a pessoas de boa-fé, cabe aos governos estaduais pagar as indenizações. Da mesma forma, o processo de demarcação não deveria ser condicionado ao pagamento de tal reparação. Qual é o sentido de negar um direito a um grupo porque outro foi lesado pelo Estado?
Pode parecer uma filigrana jurídica, mas não é. Em parecer enviado aos ministros do Supremo, a Advocacia-Geral da União alertou que a indenização prévia a quem ocupa terras indígenas geraria um "gasto incalculável" e poderia atrasar o processo de destinação do território aos seus verdadeiros donos, segundo o artigo 231 da Constituição.
Na quarta-feira 30, com a retomada do julgamento, o chefe do escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos na América do Sul, Jan Jarab, reiterou a posição contrária a qualquer iniciativa que possa enfraquecer ou relativizar os direitos dos povos originários. "A eventual legitimação da tese do marco temporal seria um grave retrocesso para os direitos dos povos indígenas no Brasil, e contraria as normas internacionais de direitos humanos", observou.
Para a Articulação dos Povos Indígenas, conhecida pela sigla Apib, a tese de Moraes ignora a história da grilagem no Brasil e fomenta a violência nos territórios em disputa.
"Se esse voto for acatado pela maioria dos ministros do Supremo, vai premiar o invasor que recebeu o título lá atrás do Estado brasileiro e vai dificultar ainda mais o processo de demarcação. Hoje, um dos principais gargalos para a demarcação é o pagamento dessas indenizações, uma vez que a União não tem recursos suficientes para pagá-las", explicou Kleber Karipuna, da Coordenação Executiva da Apib, durante um ato em Brasília, poucas horas antes do início do julgamento.
Na edição semanal de CartaCapital, a repórter Fabíola Mendonça aprofunda esse debate com representantes de povos indígenas e especialistas, que alertam para o risco de inviabilização de novas demarcações, caso a proposição de Moraes seja seguida pelos demais ministros. Se o STF entender que a União terá de indenizar previamente todos os que detêm títulos de propriedade sobre territórios tradicionalmente ocupados por indígenas, e tornará o processo de demarcação dispendioso demais para sair do papel. Em vez de trazer segurança jurídica, como alega o ministro Moraes, a iniciativa pode agudizar os conflitos no campo.
Por ora, o placar está 4 a 2 para invalidar a tese do marco temporal, e o debate sobre as indenizações aos ruralistas segue aberto. |
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