Carta para o Futuro #11: As cúpulas climáticas se transformaram em cúpulas do petróleo

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14 de dezembro de 2023

Enquanto faz de conta continua, o tempo possível para promover mudanças necessárias e manter o planeta em temperatura mais segura já está, inexoravelmente, se esgotando Foto: Haider/EPA-EFE/Shutterstock

A COP29 na rota faz de conta do petróleo

A ciência pede ações urgentes diante de um futuro preocupante, mas o poder econômico oferece migalhas e cria cada vez mais barreiras


por Carlos Bocuhy

É Baku, no Azerbaijão, o destino da COP29 a ser realizada em 2024. 


Quando o comerciante genovês Marco Polo cruzou a cidade, em 1271, a região já apresentava produção de petróleo relevante para os padrões da época. Funções como iluminação, aquecimento, pavimentação, calafetação e lubrificação eram usos comuns para o betume.


O Azerbaijão representa a terceira edição da conferência a ser realizada em países ligados aos Países Produtores de Petróleo (Opep), em sequência ao Egito (COP27) e Emirados Árabes Unidos (COP28). 


Do ponto de vista progressista, da democracia e da economia sustentável, o quadro tornou-se crítico, evidenciando uma sequência de países-sede marcados por economia petrolífera, autocracia e lacuna de direitos humanos. 


As cúpulas climáticas se transformaram em cúpulas do petróleo de países autocráticos. 


Ao final da COP28, em Dubai, a Opep, que funciona como cartel do petróleo, orientou seus países-membros para que não fizessem concessões com relação à redução ou eliminação dos combustíveis fósseis. Sob forte pressão, acabaram permitindo que o documento final inserisse a frase "transição dos combustíveis fósseis", porém sem prazos nem metas intermediárias, sem atender a urgência climática para adequação das emissões nos próximos anos. Condicionou-se, de forma paradoxal, o que pretende ser, quiçá até 2050, uma transição "justa, ordenada e equitativa". 


Para os iniciados em planejamento e políticas públicas, o resultado soa como uma carta de intenções que retrata o óbvio, porém, sem nenhuma eficácia, principalmente porque não enfrenta o estado de urgência que se abate sobre populações mais vulneráveis no atual cenário da emergência climática. 


O Guardian denunciou: "O cartel petrolífero da Opep alertou os seus países-membros com a máxima urgência de que a pressão contra os combustíveis fósseis pode atingir um ponto de inflexão com consequências irreversíveis". Orientou seus membros e lobistas a "rejeitar proativamente qualquer texto ou fórmula que vise energia, ou seja, combustíveis fósseis, em vez de emissões". A Opep vai além: afirma que medidas propostas na COP "colocam a prosperidade e o futuro de nosso povo em risco". Depois da decisão da COP28, irão dormir tranquilos.


Ao ser perguntado se seu país apoiaria um acordo que exigia a redução ou eliminação gradual dos combustíveis fósseis, o ministro saudita da Energia, o príncipe Abdulaziz bin Salman, disse: "absolutamente não". 


De outro lado, a ciência clama por estabilidade climática. O Relatório Síntese do Sexto Ciclo de Avaliação do IPCC, lançado em março de 2023, foi exposto na COP28. Matéria veiculada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em conjunto com o Pacto Global da ONU no Brasil, afirma: "O relatório apresenta com alta confiança que reduções profundas, rápidas e sustentadas nas emissões de gases de efeito estufa levariam a uma desaceleração perceptível no aquecimento global dentro de cerca de duas décadas".


Apesar das comprovações científicas de que os combustíveis fósseis são os maiores responsáveis pelo aquecimento global, o petróleo não só resiste, mas também passa a coordenar os trabalhos da COPs, revelando um conflito de interesses inequívoco, explícito. 


O coordenador da COP28 foi o sultão Ahmed Al-Jaber, que é CEO da ADNOC, empresa estatal de petróleo dos Emirados Árabes. Al-Jaber fez dois discursos diferentes: como executivo da ADNOC, afirmou que a empresa irá ampliar a extração de petróleo até 2035; como coordenador da COP28, afirmou, só no discurso e não no papel, que o mundo precisa reduzir os combustíveis fósseis. 


No dia 21 de novembro Al-Jaber escreveu em correspondência que veio a público: "Nenhum estudo científico, nenhum cenário, diz que a saída dos combustíveis fósseis nos permitirá chegar a 1,5°C... Já em 5 de dezembro, durante entrevista coletiva na COP28, afirmou: "Tenho dito várias vezes que a redução e a saída dos combustíveis fósseis são inevitáveis".


De outro lado, o secretário geral da ONU, Antonio Guterrez, abriu a COP28 abriu com um chamado às empresas e Estados ligados aos combustíveis fósseis: "O caminho antigo está envelhecendo rapidamente... não insistam em um modelo de negócios obsoleto... não cometam o equívoco de ignorar o caminho para a sustentabilidade climática - o único caminho viável para a sustentabilidade econômica de suas empresas no futuro..." 


Ao lado dos cientistas, ativistas, climatologistas e representantes das áreas de saúde, os apelos por justiça climática proliferam"A COP28 não concretizará a ação ambiciosa necessária para evitar uma catástrofe climática se as leis do Estado anfitrião restringirem a liberdade de expressão e de reunião pacífica e estrangularem a sociedade civil", afirma Heba Morayef, diretora regional da Anistia Internacional para o Oriente Médio e Norte de África. Em Sharm-el-Sheikh, na COP27 do Egito, que segue sob ditadura militar, repressão e detenções precederam os protestos. 


Mitzi Jonelle Tan, ativista climática das Filipinas, afirmou que na COP28 as autorizações para protestar têm de ser solicitadas com antecedência, "e se você não obtiver as autorizações, você pode ser descredenciado, você pode ser expulso".


A influência do lobby e a falta de consideração pelos direitos humanos estão ligados ao cenário de intensa contradição presente nas discussões sobre combustíveis fósseis. Dados da Global Oil and Gas Exit List demonstram que, desde 2021, quando o Acordo de Paris aconselhava "nenhum poço a mais" para manter 1,5ºC até o final do século, o setor de petróleo investiu US$ 170 bilhões na exploração de novas fontes, 96% das empresas continuam a explorar novos campos de petróleo e mais de 1.000 estão planejando novos gasodutos ou terminais de gás de petróleo. 


Um dos maiores crescimentos é o pretendido pela ADNOC. Além disso, a empresa de El-Jaber estava adiando uma licitação para arrendamentos de perfuração até depois da COP28, de acordo com um documento interno vazado.


O Brasil também protagoniza o faz de conta da transição. Aguardou o término da COP28 para leiloar, em 13 de dezembro, a exploração de novos blocos de petróleo. 


Lobby x ciência


O enfrentamento que vem ocorrendo nas sucessivas COPs do petróleo, em linhas gerais, está divido entre a ciência e os interesses econômicos do petróleo


Pela primeira vez, as Nações Unidas exigiram que os participantes divulgassem suas afiliações. Aproximadamente 1.300 participantes declararam estar trabalhando em nome dos interesses do petróleo, gás e carvão. Isso é três vezes o número oficial de lobistas de combustíveis fósseis que teriam participado da cúpula do clima do ano passado, informou a Associated Press. 


A miscelânea de dúvidas que os lobistas do petróleo tentaram inicialmente plantar na conferência COP28 surtiu efeito político limitado. Foi esmagada pela manifestação de 100 conceituados cientistas climáticos liderados por Johan Rockstrom, diretor do Instituto Potsdam de Pesquisa de Impacto Climático, da Alemanha. "Queríamos fornecer um resumo muito sólido das evidências esmagadoras que temos", afirmou Rockstron. 


O que esperar da COP29


As expectativas para a COP29 do Azerbaijão não são nada animadoras: os produtores de petróleo continuarão esperneando para não sucumbir diante de fatos inegáveis. 


Também preocupam, nesta edição, possíveis violações aos direitos humanos. O professor Gudab Ibadogihlu, representante da sociedade civil na Transparência da Indústria Extrativa , organização que defende a gestão aberta e responsável de petróleo, gás e recursos minerais, foi detido durante visita ao Azerbaijão, acusado de extremismo. Sua filha, Zala Bayaramova, ficou chocada com a escolha do Azerbaijão para sediar a próxima cúpula climática, afirmando que o evento só servirá para acobertar a política petrolífera e pouco democrática do país – o que contraria o trabalho de seu pai, que vem arriscando a vida para denunciar esse cenário. 


Lamentavelmente, enquanto o faz de conta continua, o tempo possível para promover mudanças necessárias e manter o planeta em temperatura mais segura já está, inexoravelmente, se esgotando. 


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