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Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Arrependimento
Ironia climática: em meio a uma das maiores estiagens da nossa História, estreia no Brasil o filme “Noé”, sobre o Dilúvio.

Noé, filho de Lameque, é uma das figuras mais controvertidas da Bíblia. Na verdade, a Bíblia mal começa e já nos apresenta seus dois personagens mais intrigantes, Caim e Noé.
É evidente, pelo que se lê em Gênesis, que Deus tinha outros planos para Caim, não o de ser o primeiro vilão e o primeiro desterrado do mundo, mas um dos fundadores da aventura humana sobre a Terra.
Deus amaldiçoa Caim com uma marca que o identifica como assassino do seu irmão, mas também o protege dos vingadores de Abel (“Qualquer que matar a Caim”, avisa o Senhor, “sete vezes será castigado”) e permite que ele se case (até hoje nenhuma exegese da Bíblia conseguiu explicar de onde, de que criação paralela, saiu a mulher de Caim) e procrie, e construa uma cidade, a que dá o nome do seu primogênito Enoque, e inicie uma prole que incluirá Jabal, “pai dos que habitam em tendas e têm gado”, e Jubal, “pai de todos que tocam harpa e órgão”.
Nada mal para um fratricida: acabar como patriarca, construtor de cidades e precursor da pecuária e das artes. Abençoado por Deus, pode-se dizer, com a marca da maldade.



Se o Deus da Bíblia camuflou seu apoio a

Luis Fernando Veríssimo

Lugar ideal

Um homem resolve fugir da cidade grande em que vive e padece. Bota família e bagagem num carro e ruma para... Para onde? Ele não sabe. Vai para o interior do país. Depois para o interior do interior do país. A família se impacienta. Aonde ele quer chegar?
A cada cidadezinha que passam, a mulher pergunta “É aqui?” e o homem diz “Não”. A cada lugarejo que cruzam, as crianças, esperançosas, perguntam. “Aqui não serve?” e o homem diz “Não”. E continua a viagem, rumo ao interior do interior do interior do país. Até que entram numa cidade minúscula, uma cidade de um poste só. E o homem declara: “É aqui que nós vamos morar!”
A família não entende. O que aquela cidade tem de especial? Por que logo ali? E o homem responde:
— Vocês não notaram?
— O quê?
— Os cachorros correndo atrás do carro! Aqui cachorros ainda correm atrás de carros! É aqui que nós vamos ficar!
Em outra versão da mesma história, o homem à procura de um lugar perfeito para morar chega numa cidadezinha no interior do interior do interior do interior do país, entra no único bar da cidade e pede:
— Uma Coca-Cola, por favor.
E o dono do bar pergunta:
— Uma o quê?
— É AQUI! — grita o homem.
(Na verdade, como adepto da Coca diet, meu ideal não seria o mesmo do nosso hipotético buscador. Mas entendo a sua alegria.)
Numa lista recém-publicada de países ideais para se viver, o primeiro lugar foi para a Nova Zelândia, seguida da Suíça, da Islândia e da Holanda. Neozelandeses, suíços, islandeses e holandeses morariam nos melhores lugares do mundo, julgados, eu suponho, pelo parâmetro algo impreciso da “qualidade de vida”.
Imagino que não entre na cotação o grau de chateação cotidiana nesses paraísos, o que desclassificaria pelo menos três dos quatro. Só se salvaria a Holanda, onde a tolerância com o comportamento individual dos cidadãos em matéria de sexo e drogas é, no mínimo, uma garantia contra o tédio. Pois deveria contar pontos na avaliação dos lugares ideais para se viver o quesito “o que fazer nos sábados à noite”.

Luis Fernando Veríssimo é escritor.

Crônica dominigal de A. Capibaribe Neto

O homem que nunca chegava

Era como se as malas nunca fossem abertas. Mal chegava já estava de partida. Vivera uma vida de desencontros embora estivesse sempre em busca do porto definitivo. Queria chegar, ficar mais tempo, talvez a vida inteira, e precisava encontrar motivos, terreno fértil, plantar sementes, sentir as raízes procurando o fundo da terra para se agarrar, para se fincarem e não temer ventos, tempestades, raios, o que fosse. E chegava, e procurava até cansar. Depois, sentava e ficava ali, ao lado da mala surrada e da mochila onde carrega todos os retalhos da vida vivida e retalhada em mil partidas, em mil buscas e desencontros, na paz aparente de uma praça qualquer que se esvaziava quando a noite se espreguiçava para dentro da madrugada e via o dia raiar. E aí, escolhia uma rua qualquer que o levasse a uma avenida e a avenida se transformasse em estrada e desafiava um novo horizonte. Nunca olhava para trás. Aprendera isso com os indianos que se vestem apenas com um manto de cor laranja e caminham sempre para frente, sem jamais olhar para trás. 
O homem olhava, vez por outra, para ver se havia deixado rastros, pegadas, como se quisesse ser seguido, encontrado e aí, ter um motivo para parar, ficar mais tempo e, quem sabe, nunca mais se despedir de coisa nenhuma ou daquilo que encontrava, mas deixava para trás, como se nunca tivesse passado por ali, deixado o nome, um endereço... Podia ser chamado de andarilho, caminheiro errante, fugitivo, mas fugitivo de quê? 
Ninguém foge de lembranças, de saudades, de nomes de cheiros bons, de recordações marcantes. Ninguém foge da dor. Toda dor tem que doer até passar. Todo pranto tem de ser chorado até que sequem as lágrimas, até que acabe o motivo ou se descubra que também as dores, principalmente as das saudades, de uma benquerença que acabou de um lado, chegam a um fim. 
Ninguém determina que vai parar de sentir saudades ou de lembrar de um rosto ou de uma voz cheia de diminutivos carinhosos que se cansaram ou se esgotaram porque não tiveram eco ou, quando tiveram, já era tarde demais... Muitas vezes, negligenciamos e quando menos esperamos, pinga uma gota d'água que faz transbordar tudo. É a última, contra quem não existe força capaz de juntá-la, e fazer o tempo voltar. Não volta. Existe um homem assim dentro de cada um de nós. Estamos sempre fugindo, ou pelo menos tentando, até das verdades, das realidades, das consequências, mas a pior fuga é aquela que tentamos empreender para nos afastar dos arrependimentos. "O arrependimento quando chega, faz chorar, oi! Faz chorar... Os olhos ficam logo rasos d'água, e o coração parece até que vai parar..." - a música é velha, mas histórias assim são atuais, mesmo que a moda seja outra. 
O homem ficava sentado no banco da praça, olhando para um lado e para o outro, respirava fundo, segurava o rosto entre as mãos, vez por outra alguém via lágrimas cadenciadas se espatifarem no chão sujo e se misturavam a umidade do cimento ou logo eram absorvidas pela quentura de um dia escaldante. Depois, levantava-se, respirava fundo e ia embora. Não importava de onde tinha chegado e muito menos para onde estava indo. Só queria ir. Um dia chegaria ou ao lugar que já o esperava ou para as surpresas da vida que se escondem em cada novo amanhecer. 
O homem não sabia aonde haveria de chegar, mas nunca esquecia de onde havia partido e porque carregava sua história tão pesada em direção a nenhum lugar...

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Um dia você se olhará no espelho e terá uma revelação estarrecedora. Sua mulher está dormindo com outro homem! Depois descobrirá que o que vê no espelho não é outro, é você mesmo. Só que, por uma razão inexplicável, você está mais velho.
Os espelhos são de uma franqueza brutal. Na era das relações públicas, é inadmissível que a sua imagem trate você com tanta crueza. É inaceitável que o espelho lhe diga “Você está com 50 (ou 60 ou, meu Deus, 70) anos assim, na cara, mesmo que quem diga seja a sua própria cara. E de manhã, na hora em que, ainda amarrotado pelo sono e antes de botar o rosto que usará durante o dia, você está mais vulnerável.
Se a cena pudesse ser confiada a um profissional da comunicação, seria diferente. Infelizmente, as piores notícias são sempre dadas por amadores. Num mundo mais justo, sua imagem no espelho poderia ser apresentada por um especialista em marketing e, em vez da sua cara no espelho revelador, você veria, por exemplo, a Patrícia Poeta.
— Patrícia! Você por aqui?
— Vim para lhe dizer que você ficará muito bem, com cabelo grisalho. Aumentará sua credibilidade. Será ótimo para os negócios.
— Eu acho que estou perdendo cabelos.
— E daí? Cabelo demais é desperdício. Os fios que ficam são os melhores.
— Será?
— As rugas realçarão seu caráter. E se um queixo já enfatiza sua masculinidade, imagine dois.
— Patrícia. Cabelos grisalhos, rugas, queixo duplo... Você quer me dizer que eu estou ficando... Velho?
— Maduro.
Ou então você deveria poder mergulhar de ponta-cabeça no espelho para descobrir como seria sua vida do outro lado dos 50 (ou 60 ou, meu Deus, 70). E se consolar com o fato de que ela não será muito diferente da vida que você leva hoje — com alguns reajustes. Você terá que evitar carnes brancas, morenas e mulatas, principalmente depois das refeições. E deixar de frequentar motéis com escadaria. Fora isso... Que venham as rugas!

A executiva bem sucedida

Claudinha Claudia
Foi tudo muito rápido. A executiva bem-sucedida sentiu uma pontada no peito, vacilou, cambaleou. Deu um gemido e apagou. Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso Portal. Ainda meio zonza, atravessou-o e viu uma miríade de pessoas.Todas vestindo cândidos camisolões e caminhando despreocupadas. Sem entender bem o que estava acontecendo, a executiva bem-sucedida abordou um dos passantes: 
- Enfermeiro, eu preciso voltar urgente para o meu escritório, porque tenho um meeting importantíssimo. Aliás, acho que fui trazida para cá por engano, porque meu convênio médico é classe A, e isto aqui está me parecendo mais um pronto-socorro. Onde é que nós estamos? 
- No céu. 
- No céu?... 
- É. 
- Tipo assim... o céu, CÉU...! Aquele com querubins voando e coisas do gênero? 
- Certamente. Aqui todos vivemos em estado de gozo permanente. Apesar das óbvias evidências nenhuma poluição, todo mundo sorrindo, ninguém usando telefone celular), a executiva bem-sucedida custou um pouco a admitir que havia mesmo apitado na curva. Tentou então o plano B: convencer o interlocutor, por meio das infalíveis técnicas avançadas de negociação, de que aquela situação era inaceitável. Porque, ponderou, dali a uma semana ela iria receber o bônus anual, além de estar fortemente cotada para assumir a posição de presidente do conselho de administração da empresa. E foi aí que o interlocutor sugeriu: 
- Talvez seja melhor você conversar com Pedro, o síndico. 
- É? E como é que eu marco uma audiência? Ele tem secretária? 
- Não, não. Basta estalar os dedos e ele aparece. 
- Assim? (estalou os dedos) 
- Pois não? A executiva bem-sucedida quase desaba da nuvem. À sua frente, imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo, estava o próprio Pedro. Mas, a executiva havia feito um curso intensivo de approach para situações inesperadas e reagiu rapidinho: 
- Bom dia. Muito prazer. Belas sandálias. Eu sou uma executiva bem-sucedida e... 
- Executiva... Que palavra estranha. De que século você veio? 
- Do 21. O distinto vai me dizer que não conhece o termo 'executiva'? 
- Já ouvi falar. Mas não é do meu tempo. Foi então que a executiva bem-sucedida teve um insight. A máxima autoridade ali no paraíso aparentava ser um zero à esquerda em modernas técnicas de gestão empresarial. Logo, com seu brilhante currículo tecnocrático, a executiva poderia rapidamente assumir uma posição hierárquica, por assim dizer, celestial ali na organização. 
- Sabe, meu caro Pedro. Se você me permite, eu gostaria de lhe fazer uma proposta. Basta olhar para esse povo todo aí, só batendo papo e andando a toa, para perceber que aqui no Paraíso há enormes oportunidades para dar um upgrade na produtividade sistêmica. 
- É mesmo? 
- Pode acreditar, porque tenho PHD em reengenharia. Por exemplo, não vejo ninguém usando crachá. Como é que a gente sabe quem é quem aqui, e quem faz o quê? 
- Ah, não sabemos. 
- Entendeu o meu ponto? Sem controle, há dispersão. E dispersão gera desmotivação. Com o tempo isto aqui vai acabar virando uma anarquia. Mas nós dois podemos consertar tudo isso rapidinho implementando um simples programa de targets individuais e avaliação de performance. 
- Que interessante... 
- É claro que, antes de tudo, precisaríamos de uma hierarquização e um organograma funcional, nada que dinâmicas de grupo e avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver. 
- !!!...???...!!!...???...!!! 
- Aí, contrataríamos uma consultoria especializada para nos ajudar a definir as estratégias operacionais e estabeleceríamos algumas metas factíveis de leverage, maximizando, dessa forma, o retorno do investimento do Grande Acionista... Ele existe, certo? 
- Sobre todas as coisas. 
- Ótimo. O passo seguinte seria partir para um downsizing progressivo, encontrar sinergias high-tech, redigir manuais de procedimento, definir o marketing mix e investir no desenvolvimento de produtos alternativos de alto valor agregado. O mercado telestérico, por exemplo, me parece extremamente atrativo. 
- Incrível! 
- É óbvio que, para conseguir tudo isso, nós dois teremos que nomear um board de altíssimo nível. Com um pacote de remuneração atraente, é claro. Coisa assim de salário de seis dígitos e todos os fringe benefits e mordomias de praxe. Porque, agora falando de colega para colega, tenho certeza de que você vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela frente vai resultar em um Turnaround radical. 
- Impressionante! 
- Isso significa que podemos partir para a implementação? 
- Não. Significa que você terá um futuro brilhante... se for trabalhar com o nosso concorrente. Porque você acaba de descrever, exatamente, como funciona o Inferno... 
Max Gehringer (Revista Exame)

Você não é pior que os outros

Diversos são os momentos em que estamos mais sensíveis ou menos desligados do mundo. Ouvimos histórias escabrosas e não nos assustamos mais. Nos aparece um problema e achamos, primeiro, ser o maior de todos já surgidos para, logo a seguir, ver que alguém do nosso lado tem muito mais adversidades, todas bem maiores. Há pessoas que, de tantos contratempos, já nem liga mais para os infortúnios e estão melhores que nós que, ao compararmos, nos achamos mimados.
Comparamos situações boas e ruins. Olha que maluquice. Como se um problema alheio anulasse o seu, como se o contentamento de um terceiro botasse o seu no chinelo e, depois de ver a fortuna de verdade, a sua alegria de nada valesse.
Fazemos isso conosco o tempo todo. Basta ligar a televisão ou conversar dois minutos com o cobrador de ônibus ou com o cara que lava o teu carro. Passeando, ao passar em frente a banca de jornais e ver aquele mundaréu de revistas com famosos bonitos em castelos bonitos, modelos bonitas em carros caros ou lanchas igualmente bonitas em praias bonitas.
Seguimos oscilando nossos anseios, nossos sentimentos, até nossas angústias, jogando o tempo todo em um cassino de vontades em que a casa, claro, sempre vence. Deixamos lá nossa vontade de ser mais, nosso desejo de resolver o que está crispado, o nosso querer de bem querer mesmo.
Como é possível sermos tão dependentes de fatores externos para sermos e fazermos o melhor de nós? De que maneira seguimos a vida a chegar nesse ponto de submissão adoidada e intensa de deixar o mundo e o balançar bêbado do caos botarem o bedelho no que somos e no que sentimos e até como sentimos?
Banca de jornal no centro de São Paulo, c. 1953 (Imagem: Blog do MIS)
Banca de jornal no centro de São Paulo, c. 1953 (Imagem: Blog do MIS)
Entramos com mala e cuia nas falsetas. “Preciso comer tudo porque as crianças da África estão passando fome” ou “eu reclamando disso enquanto aquele cara não tem nem onde morar”. Não que compadecer seja errado, claro que não, mas botar uma dor em xeque contra qualquer outra é de uma pequenez, de uma servidão que todos nós nos deixamos afetar em algum momento, estamos mais sensíveis ou menos desligados do mundo.
Você não é pior que as outras pessoas. Suas atitudes e pensamentos e anseios nem dependem da ação delas.
por Jader Pires

Quem é esse povo?

Quem é esse povo, que se atreve a se transformar na terceira indústria naval do mundo , em tão pouco tempo? 

Quem é esse povo que já é a terceira industria aeronáutica do mundo ?

Quem é esse povo que se atreve a produzir e explorar petróleo em águas tão profundas ? 

Quem é esse povo que durante a maior crise econômica depois da grande depressão em 1929 ( segundo Paul Krugmam, prêmio Nobel de economia ), gerou milhões de empregos, abriu milhões de vagas nas universidades, construiu centenas de milhares de moradias e tirou milhões de pessoas da miséria?...

Esse povo, somos nós, BRASILEIROS, donos da empresa que eles querem depreciar, mais que teima em valorizar seus papéis na bolsa em 25% em apenas uma semana. 
Somos nós que agora atraímos os investimentos antes destinados a eles e junto atraímos também a cobiça, pelo petróleo que em breve será farto e irá produzir educação e empregos para os Brasileiros e não para multinacionais. 

Não pensem que essa maldita CPI não passa de um ardil , de parte de um plano para deter o progresso e se apropriar de nosso petróleo, assim como se apropriaram de nosso minério através da maracutaia do século que foi a venda da vale. 

Nós estaremos todos mortos

[...] em breve.
Foto por flickr.com/missmass
Foto por flickr.com/missmass
Lembretes diários assim ajudam a sustentar a perspectiva da morte e direcionar a vida ao essencial. Afinal, não é muito inteligente esperar por um câncer para nos lembrar do que vale a pena.
Do mesmo modo que destila a vida, o olho da morte pode melhorar os relacionamentos. Para abri-lo, vamos observar o que acontece em um velório caricato.
Todos começam a conversar sobre sua conexão com o falecido. O filho fala do pai para o sócio, que descreve o empresário que só ele via. A namorada surpreende a ex-mulher com histórias que não parecem vir de seu ex-marido. O amigo do judô dá risada com o amigo da dança de salão. A diretora de uma ONG revela como ele a ajudou secretamente por décadas. Só conhecemos uma pessoa quando ela morre. Mas talvez possamos antecipar o processo.
O que vemos quando olhamos para esposas, namorados, amigos, filhas, funcionários?
O outro surge 100% como a identidade que foi construída pela relação. Começamos a enxergá-lo de um jeito e, em pouco tempo, não mais desconfiamos de que ele seja muito mais do que nos aparece, de que outros o ativem de outro modo, de que ele encarne diferentes risadas, olhares, gestos. A cegueira se evidencia quando o flagramos em outro mundo, reencontrando um amigo de infância ou palestrando. É como se fosse outra pessoa!
Nunca abraçamos alguém por inteiro — e nem deveríamos tentar. Sua esposa não é sua esposa. Seu namorado nunca foi nem nunca será seu namorado: ele é um homem que está vivendo com você. Conectar-se com essa pessoa livre, não apenas com suas identidades, é o melhor jeito de aprofundar a relação.
Conhecer o outro muitas vezes significa congelar o outro. Se você acha que ela não gosta ou nunca faria tal coisa, espere pelo próximo namorado… Para realmente conhecer alguém, é precisodesconhecê-lo, relacionar-se com o espaço onde surgem suas faces e histórias. Liberar o outro de quem ele é.
Impedimos as pequenas mortes e renascimentos quando silenciosamente, sem saber, exigimos que o outro encarne de novo e de novo o personagem com o qual estamos acostumados. Desejamos surpresas ao mesmo tempo em que as dificultamos. Ao controlar, tentamos garantir que a relação dure, que não sejamos abandonados, que o outro não seja assim tão livre:
“Mude, mas somente dentro das mudanças que eu espero.”
Podemos deixar os outros morrerem mais antes da última morte. Conhecê-los é alimentar sua imprevisibilidade, descobrir não tanto quem a pessoa foi ou é, mas quem não é, quem pode ser.
* Texto publicado na revista Vida Simples em de setembro 2011.
** Estamos concentrando num só lugar pessoas, práticas sugeridas, projetos, artigos de aprofundamento, conversas e experimentos coletivos focados em transformar nossa vida (corpo, mente, trabalho, dinheiro, relacionamentos…). Você está convidado.
Este post é resultado de nossas práticas, diálogos e treinamentos na Cabana PdH. Quer entrar no Dojo?
Gustavo Gitti
Professor de TaKeTiNa, autor do Não2Não1, colunista da revista Vida Simples e coordenador do lugar (ex-Cabana). Interessado na transformação causada pelo ritmo e pelo silêncio. | www.gustavogitti.com

Outros artigos escritos por 

Papo de homem

Pequenos hábitos, grandes resultados

Assistindo uma palestra do Tim Ferris, lembro de abrir meu bloco de notas rapidamente para anotar uma citação. A frase foi simples e, aparentemente, não continha nada de novo, mas ressoou pra mim como a mais pura verdade, um fato que muitas vezes deixamos passar em branco.
“Mantenha as coisas simples, o complexo falha.”

Em geral, quando precisamos mudar algo em nossas vidas, miramos alto demais. Adicionamos camadas de complexidade, na esperança de que toda essa confusa estrutura nos forneça um caminho mais detalhado até nosso objetivo, mas tudo isso só complica. Quando observamos uma coleção de instruções muito extensa ou detalhada, desanimamos. São muitas peças para juntar, acabamos não fazendo nada.
É como ir à academia. Você chega lá no primeiro dia e só quer fazer seu exercício. Sua motivação foi suficiente para levá-lo até lá. Na cabeça, tudo está bem claro. É chegar, treinar e ir embora. Ao fazer a matricula você é questionado por taxas extras e avaliações físicas, a resistência começa a surgir. Um professor recebe a tarefa de mostrar os aparelhos e construir uma ficha de exercícios, apenas depois que fizer seus exames.
Quando vê, você já está encarando uma longa lista de exercícios, cada um com sua forma particular de execução. As máquinas possuem nomes, é preciso decorar o nome dos músculos, pessoas falam dos suplementos que precisam tomar. Quando vê, a simples vontade de perder a barriguinha se transforma num monstro difícil de interpretar.
frase-brandao-sem-texto (1)
Enquanto seu reservatório de motivação está cheio, você segue firme nos primeiros treinos, mas o dia em que acordar meio desmotivado, vai repassar tudo o que tem que fazer, cada exercício, aquecimento, alongamento, pré-treino, pós-treino, gente querendo aparecer, toda a atmosfera que envolve a academia, e quando vê, não sai nem da cama.
Muitas vezes nem renova o próximo mês.
Para alcançarmos mudanças substanciais em nossa vida, precisamos apostar na simplicidade e transformar essa pequena mudança num hábito, onde não precisamos gastar força de vontade para executar. A partir disso sim, podemos começar a entrar em camadas mais complexas.
Reuni um conjunto de atividades simples e de fácil execução, que por isso possuem grande potencial de sucesso.

Alex Castro - vou mudar. Mas, não hoje

Quem perpetrou os piores crimes & maiores massacres da história? Os obededientes ou os desobedientes? De qual lado queremos estar?
Se o meu filme ou livro preferido é sobre largar tudo & ir morar no mato, mas eu nunca larguei tudo & fui morar no mato… o que isso diz sobre mim?
Um gênero narrativo que deveria ter nome mas não tem:
“Obras protagonizadas por personagens pretensamente rebeldes & subversivas, feitas sob medida para se tornarem as obras favoritas de pessoas reprimidas & cooptadas que dizem amar a obra acima de tudo, mas nunca mexem a bunda da cadeira para fazer nada parecido com as personagens rebeldes & subversivas que tanto dizem admirar.”
Principais expoentes: na literatura, “O apanhador no campo de centeio”; no cinema, “Sociedade dos poetas mortos”, “Beleza americana”, “Na natureza selvagem”.
o que nunca fazer.
Se eu consumo uma obra sobre enfiar o dedo na tomada & levar choque, e digo adorar tudo, é minha obra preferida!!, mas depois disso nunca mais na vida eu enfio o dedo na tomada (pois já sei que vou fatalmente levar um choque!), então essa é uma obra profundamente conformista & conservadora.

Crônica dominigal de Luis Fernando Verissímo


Quando eu era garoto, louco por futebol, tinha time em vários lugares do mundo. Só os conhecia pelo noticiário nos jornais, muitas vezes nem sabia a cor das suas camisetas. Eu era River na Argentina, Tottenham Hotspur na Inglaterra, Racing (que depois virou Paris Saint-Germain) na França, Internazionale (claro) na Itália, e tinha time até, não duvido, na Cochinchina.

É engraçado isso, viver a realidade alheia como se fosse a nossa. No caso dos times de futebol, a escolha se baseava em simpatias fortuitas, nada racionais. Por que Tottenham Hotspur e não Arsenal? Que possível identificação eu poderia ter com meu time na Ucrânia?
Já as outras escolhas de lados para os quais torcer, que faríamos ao longo da vida, seriam mais lógicas, ou mais explicáveis. Viveríamos vicariamente as histórias dos outros porque projetaríamos nelas as nossas convicções, ou a nossa própria história irresolvida.
Exemplo prototípico disso é a Guerra Civil Espanhola, na qual muita gente foi lutar contra ou a favor da insurreição de Franco, mas que teve torcida calorosa em todo o mundo.
Você se definia com sua escolha de lado na Espanha. Nunca tinha sido tão fácil identificar o inimigo — ou o amigo, para quem via na Espanha insurrecta um bastião contra o bolchevismo.
De Mussolini ainda não se sabia se era um bufão inconsequente ou uma ameaça, Hitler estava recém-começando a fazer das suas. Franco era, portanto, a primeira personificação nítida do assomo fascista na Europa. “No pasarán!”, o grito de guerra dos legalistas espanhóis, foi, mesmo à distância, o grito de guerra de uma geração. Passaram, mas isso é outra história.
No Brasil vivemos vicariamente a história de outras países americanos como se fosse a nossa, ou como se decidisse a nossa. Cuba, por exemplo, está no centro do debate esquerda/direita no país há anos.
É um exemplo admirável de resistência à prepotência americana e de sociedade solidária em que saúde e educação públicas são prioritárias ou um exemplo lamentável de país totalitário que prende seus críticos e cujos benefícios sociais não compensam a falta de liberdade, dependendo do seu lado.
A polarização das opiniões não permite que se torça pelo meio-termo, também conhecido como a visão de cima do muro: admirar o admirável e lamentar o lamentável, sem esquecer que o que se vê de longe são as versões e não os fatos.
Muitos vibraram com a ascensão de Allende ao poder no Chile como se ele tivesse chegado ao Palácio do Planalto, e vê-se que, hoje, muitos acham que o que o Brasil precisa é de um bom pinochetaço. Também vivemos vicariamente na Venezuela, onde a história acontece em extremos tais que tornam difícil sequer identificar os lados em conflito, quanto mais escolher um para torcer.
Quando eu era garoto não havia essas hesitações. O River era o time da elite argentina? Aquilo não me interessava. Era o meu time e pronto.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Tem havido protestos de grupos religiosos contra a reencenação de “Jesus Cristo Superstar”, em São Paulo. Pensei que essa guerra já tivesse terminado, na ingênua suposição de que até as mentes mais obscuras, com o tempo, se iluminam — ou pelo menos se dão conta do seu ridículo.
A ópera-rock de Andrew Lloyd Webber e de Tim Rice já tem quase 50 anos. Deu um belo filme de Norman Jewison, e é um relato emocionante dos últimos dias de Jesus Cristo que deve ter motivado mais jovens a se interessar pela sua história do que qualquer catecismo da Igreja.
Quem se horroriza com a versão roqueira de Cristo ignora a tradição da arte renascentista de atualizar as cenas da Paixão, representando-as com roupas e interiores da época dos artistas, sem que isto fosse considerado blasfêmia e provocasse protestos. 
Há alguns anos a Igreja conseguiu que fosse proibida a exibição no Brasil do filme “Je vous salue, Marie”, do Jean-Luc Godard. Motivo: uma versão moderna da Virgem Maria aparecia com os seios nus. Ignorada pelos ignorantes, no caso, foi outra tradição da arte religiosa, a das virgens lactantes, que aparecem em várias pinturas com os seios à mostra amamentando o menino Jesus.
No seu filme, Godard humanizava a figura de Maria e trazia para atualidade, e para uma reflexão intelectual adulta, o mistério de dogmas como o da Anunciação e o da Concepção Imaculada. De novo, uma expressão da experiência religiosa muito mais consequente e inspiradora do que a retrógrada instrução das igrejas.
INJUSTIÇA

Vallodolid forever

por Luis Fernando Veríssimo

Valladolid é uma cidade de 300 mil habitantes no Noroeste da Espanha. Foi lá que se casaram e reinaram os monarcas católicos Isabel e Fernando, foi lá que viveu Miguel de Cervantes e morreu Cristóvão Colombo.
E foi lá que em 1550 e 1551, diante de uma junta de doutores e teólogos convocada pelo rei Carlos V, o historiador eclesiástico Juan Ginés de Sepúlveda e o frei Bartolomé de Las Casas se reuniram para debater a colonização espanhola do Novo Mundo e o que fazer com seus nativos, além de catequizá-los.
Las Casas voltara do Novo Mundo e tinha uma visão humanitária das suas populações subjugadas. Pregava a sua cristianização benévola. Sepúlveda era um escolástico sem experiência fora do mundo acadêmico e um seguidor da teoria aristotélica segundo a qual seres inferiores são naturalmente escravizáveis.
Assim, para Sepúlveda, os nativos poderiam ser ao mesmo tempo cristãos, para o caso de terem almas a serem salvas, e escravos, para ajudar na pilhagem da sua própria terra.
No famoso debate de Valladolid o Império espanhol pretendia fazer um exame de consciência depois dos excessos da conquista, uma espécie de faxina depois da chacina. O que Las Casas e Sepúlveda estavam realmente discutindo era se índio é gente ou não é gente e, portanto, qual era o tamanho da culpa dos conquistadores.

Frei Bartolomé de Las Casas

O fato de os nativos terem almas que respondiam à catequese não provava nada; na época também se discutia, com o mesmo ardor intelectual, se bicho tinha ou não tinha alma. Convencionou-se que Las Casas ganhou o debate, pois tinha os melhores sentimentos cristãos ao seu lado, mas Sepúlveda ficou com a razão.
A pilhagem do Novo Mundo continuou, com a cumplicidade involuntária dos nativos — e continua até hoje. O debate de Valladolid se eternizou. Afinal, os miseráveis do hemisfério são gente ou não são gente?
Os bons sentimentos cristãos de Las Casas impediram que a divisão entre saqueadores e saqueados no continente se aprofundasse ou só serviram para encobrir o abismo com o manto da caridade inútil, que só satisfaz o caridoso?
Por que será que todas as tentativas de romper esta maldição no hemisfério acabam em golpe ou farsa, com os eventuais insurgentes fazendo o mesmo papel de bichos exóticos que os nativos faziam diante dos colonizadores do século 16?
Conforme o adágio, não existe pecado abaixo da linha do Equador. Henry Kissinger, sem saber, fez uma adaptação geopolítica da frase quando disse que ninguém faz história no sul do mundo. O que é outra maneira de duvidar que aqui haja gente, ou pelo menos gente consequente. Talvez por modéstia, não se lembrou de dizer que quando aparece um decidido a não ser mais escravo, como Allende no Chile, é rapidamente abatido.

A felicidade é uma prisão

kandinsky
Quando a felicidade é presumida e compulsória, ela se torna uma prisão.
Em muitos países, o cumprimento inicial é uma pergunta neutra: “how are you?“, “¿que tal?“, “¿que pasa?“, “ça va“, etc.
No Brasil, a pergunta é bem mais agressiva:
“Tudo bem?”
Não existe espaço para não estar bem. A pergunta já presume que você não apenas está bem, mas completamente bem, e busca apenas uma confirmação. Afinal, o normal é tudo estar sempre bem. Se não está tudo bem com você, hmm, então você está fora da regra, desviante do esperado, incorreta & inadequada.
E, pior, vai ter que já começar sua resposta desmentindo sua interlocutora:
“Não… É que…”

Todo mundo tem uma história para contar

Quando a gente ainda é moleque, tem uma cadeia de acontecimentos que acabam fundamentando os critérios que vamos adotando durante a vida.
O acontecimento que vou contar se deu naquela fase em que nossos pais estão morrendo de medo de nos tornarmos vagabundos e nos empurram para o primeiro emprego que surgir pela frente.
Em uma dessas nada glamourosas vagas, acabei me deparando com essa figura que acabou representando pra mim a imagem clássica do chefe. Ele era uma espécie de J. J. Jameson, sempre irritado, pronto a fazer brincadeiras desconcertantes e, principalmente, para dar broncas. Praticamente todos os dias alguém entrava pela porta do seu escritório e ele ouvia as justificativas para quaisquer eventuais falhas ou atrasos.
Para ele, não importava se a mãe de alguém tinha morrido, se o ônibus quebrou, se houve um alagamento que engarrafou a cidade inteira ou se o prefeito resolveu começar uma obra em alguma importantíssima via. Ele sempre fazia o julgamento que achava necessário, dizia o que tinha que dizer e, depois, quando o tal funcionário saia pela porta, dizia: “todo mundo tem uma história pra contar.”
Fiquei com essa frase na cabeça um bom tempo. Eu tinha a nítida impressão de que ele falava aquilo com bastante desprezo, julgando todo mundo como preguiçoso.
Agora, anos depois, encontrei essa tirinha. O autor, Luke Pearson, tentou submetê-la em um concurso de quadrinhos do The Guardian. Porém, o destino não sorriu amigavelmente para ele e a história foi rejeitada.
De uma certa forma, ela me lembrou a frase do meu velho chefe, mas por um outro viés. A gente está por aí, andando pelo mundo, errando, mandando mal, cobrando, sendo cobrado, se apegando, travestindo isso de amor, recebendo foras, odiando, as coisas estão saindo dos nossos planos, insistimos, choramos, choramos, choramos… mas a gente está fazendo o nosso melhor. Mesmo que esse melhor às vezes seja bem ruim.
Se a gente parasse pra ouvir ao invés de ficar tão preocupado com nosso próprio ponto de vista, ia ver que, realmente, todo mundo tem uma história pra contar.
Luciano Ribeiro


Editor do PapodeHomem, ex-designer de produtos, apaixonado por ilustração, fotografia e música. Ex-vocalista da banda Tranze (rock’n roll). Volta e meia grava músicas pelo Na Casa de Ana. Escreve, canta, compõe e twitta pelo @lucianoandolini.

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