A crônica da campanha de 2014 já registra um momento patético em que se procura impedir que a população possa debater com liberdade a mais polêmica e, do ponto de vista de muitas pessoas, a mais nociva proposta surgida na campanha presidencial. Estou falando da independência do Banco Central, que se tornou a principal bandeira de política de Marina Silva, segunda colocada nas pesquisas. Com apoio de uma lei do regime militar, assinada pelo general Humberto Castello Branco, Marina pede que a propaganda adversária seja censurada. Quer retirar o anúncio do ar e quer direito de resposta. O motivo oculto para advogados de Marina tentarem tirar do ar o site Muda Mais era o mesmo anuncio sobre o Banco Central. Vitoriosa numa ação liminar, Marina foi derrotada no mérito. O site voltou a funcionar 24 horas depois.
O debate no TSE começou ontem e prossegue na semana que vem. Três ministros já votaram contra o direito de resposta. Dois, contra a censura. Gilmar Mendes assumiu a postura contrária. Apoiou Marina nas duas causas. Em sua colocação, Gilmar mostrou-se alinhado não só com os pedidos da candidata do PSB, mas deixou claro que é favorável a independência do Banco Central e acusou o PT de manipular o debate.
Num país onde é comum ouvir a queixa de que as campanhas não fazem discussões sérias nem profundas, essa iniciativa está longe de ser inédita mas é um recorde contra os interesses do eleitor. Procura-se transformar um esforço para debater ideias — na linguagem adequada de uma campanha política pela TV num país com 200 milhões de habitantes — numa espécie de crime. O fato de preferir a censura em vez de prestar esclarecimentos adequados diz muito sobre a natureza da proposta, não é mesmo?
Nós já vimos que vale até chorar para conseguir votos.
Em 1989, Fernando Collor levou até uma antiga namorada para denunciar Lula no horário político.
Não vale debater — em particular, ideias que dizem respeito a toda da população e ao destino de um país.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, acendeu duas velas. É contra o direito de resposta mas favorável a proibição.
Pelo caráter político, vale a pena registrar alguns trechos da colocação de Gilmar. O ministro tem uma postura definida quando examina denúncias contra o PT. Quando o PSDB decidiu denunciar Dilma Rousseff pelo seu pronunciamento no 1 de maio, Gilmar deu um voto contra a presidente, onde chegou a comparar a propaganda do PT às campanhas do Partido Nazista. Falando do conflito entre “nós” e “eles”, Gilmar disse que ele “foi materializado e patenteado de forma trágica por ninguém menos, ninguém mais do que Goebbels. Então não é um marqueteiro da Bahia que inventou isso não, isto remonta a essa trágica história do nazismo.”
Ontem, quando faltavam duas semanas para as eleições, Gilmar assumiu a defesa da proposta de Marina. Disse que ideia da candidata do PSB é deixar o BC longe da influência dos “políticos” — exatamente aqueles cidadãos que, em 5 de outubro, serão escolhidos como representantes da soberania popular.
Em outra passagem, referindo-se a independência do Banco Central num tom sempre positivo, Gilmar tentou justificar a proibição com um argumento curioso. Sustentou que a propaganda do PT atingia os eleitores “analfabetos e semi alfabetizados”, aqueles que, conforme o ministro, que não tem capacidade de compreender o Marina propõe. Essa condição, explicou, justificava a proibição do programa, pois estas pessoas ficariam expostos a “informação claramente enganosa” e seriam capazes de acreditar no que viam.
A intervenção do ministro, na verdade, serve para lembrar que mesmo autoridades de formação erudita e curso de pós-graduação fora do país, como ele, também podem se iludir e se enganar.
Para sustentar seu ponto de vista, Gilmar fez várias referências a crise do Velho Mundo, um dos centros da crise econômica mundial de 2014. Falando daquele momento em que os países europeus procuravam uma saída após a falência de grandes bancos de investimento, chegou a pronunciar referencias em tom positivo às visitas da Troika que, formada por executivos financeiros do Banco Central Europeu, pelo FMI e pela União Europeia, a partir de 2011 passou a ditar regras econômicas a Grécia, Portugal, e outros países — num típico comportamento de vice-reis do período colonial, em particular nos séculos XVIII e XIX. Num episódio marcante, o primeiro ministro George Papamdreau foi deposto quando tentou submeter o programa de austeridade da Troika — elaborado pelo Banco Central Europeu — a um plebiscito popular. Papamdreau apoiava o programa mas queria que o povo grego pudesse se manifestar. Perdeu o posto e um pacote já acertado foi cancelado.
Gilmar chegou a atribuir à existência de um Banco Central na Alemanha o período de estabilidade que o país viveu após a Segunda Guerra Mundial, o que expressa uma visão particularmente germânica da história. A prosperidade alemã do pós-Guerra só foi possível quando, quebrando qualquer paradigma econômico conservador, o governo dos Estados Unidos despejou bilhões de dólares na reconstrução do país para evitar o risco do país cair sob domínio soviético. A partir de 2008, dirigido por fanáticos do Estado Mínimo que pretendiam preservar as receitas dos bancos privados a qualquer custo, inclusive os bônus vergonhosos de seus executivos, o Banco Central Europeu derrubou absolutamente todos os governos do Continente — com exceção da Alemanha — com programas de austeridade que geraram desemprego e pobreza.
Embora Gilmar tenha apresentado a existência de um Banco Central independente na Alemanha como um instrumento que impediu o retorno do nazismo, o alinhamento implacável do BCE com os bancos alemães possibilitou o crescimento do fascismo e de partidos de extrema direita na maioria dos países da Europa. É uma presença que não se via desde a Segunda Guerra Mundial. Na França, o Front National conseguiu 25% dos votos para o Parlamento Europeu. Na Holanda, os fascistas conseguiram 24% em 2010. Na Austria, 27%. Na Finlandia, 19% e na Suíça, 20%.
Anunciando seu voto em seguida, o ministro Luiz Fux, que votou ao lado de Gilmar em tantos momentos da AP 470, desta vez ficou do outro lado. Lembrando corretamente o princípio da liberdade de expressão, Fux rejeitou os dois pedidos de Marina. O debate é este, na verdade.
Em 2002, quando o PSDB exibiu o célebre vídeo do medo de Regina Duarte como parte da propaganda anti-Lula, a campanha petista bateu as portas do TSE para tentar tirar o depoimento do ar. O PT foi derrotada por unanimidade. Em seu voto, o ministro Gerardo Grossi, que relatou o pedido dos petistas, lembrou os direitos do eleitor, dizendo que caberá a ele “concordar ou não com tais previsões e análises” feitas através dos anúncios de campanha. Numa lição de democracia, evitando definir direitos de cidadania pelo grau de estudo formal, Grossi disse ainda que “é preciso confiar no seu discernimento (do eleitor), nas suas razões para optar por este ou aquele candidato, sob pena de não se estar acreditando na própria substância do processo democrático.”
É curioso que, doze anos depois, o mesmo tribunal retorne ao assunto. Mas é sintomático que, em 2002, quando se tratava de atender um pedido que, mesmo errado, poderia trazer benefícios ao PT, o TSE tenha agido de outra forma.Doze anos depois, quando debate-se uma decisão em que o mesmo partido pode ser prejudicado, as belíssimas palavras de Grossi podem ser esquecidas.
Deve ser coincidência, né?
Assinado em julho de 1965 — um ano e três meses depois da deposição de João Goulart — pelo general Castelo Branco, primeiro presidente do ciclo militar, o Código Eleitoral foi um dos instrumentos importantes de construção de uma ditadura apoiada pelas forças que não conseguiam garantir seus interesses pelo voto popular e encaravam eleições como um momento de risco e medo. O contexto é conhecido. Três meses depois do Código Eleitoral, o regime baixou Ato Institucional que dissolvia os 29 partidos políticos, permitindo apenas a formação de Arena e MDB. O mandato do próprio Castelo Branco foi prorrogado na mesma época. Ele deveria, em tese, apenas terminar o mandato em janeiro de 1966 mas ganhou um ano a mais a frente do governo — sem um único voto popular.
O Código Eleitoral tem centenas de artigos. Um deles, de número 243, diz que não se pode “instigar a desobediência coletiva” nem “perturbar o sossego publico com instrumentos sonoros ou sinais acústicos.” Dá bem uma ideia da visão da eleição que animou o texto e enxergar a quem se dirige.
Mas o pedido de Marina se apoia em outro artigo, o 242. Empregando uma linguagem típica de ditadura, de guerra psicológica e outros conceito produzidos nos setores de informação do governo norte-americano, ali se diz que a propaganda política não deve “empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais.” Foi com base neste argumento que Rodrigo Janot sustentou o pedido de proibição.
É uma noção que não faz sentido, depois que o mesmo tribunal, composto por magistrados como Nelson Jobim, Ellen Gracie, Sepúlveda Pertence, entre outros, considerou que não havia nada de errado quando a Namoradinha do Brasil (capaz de gerar “estados emocionais ou passionais” em milhões de espectadores, não é mesmo?) resolveu falar que tinha medo de Lula. (Gilmar Mendes não participou da decisão de 2002).
O argumento de quem defende a proibição em 2014 é dizer a propaganda não é verdadeira. Exagera no tom, no drama. Lembrando a cena do anúncio em que a comida vai desaparecendo do prato de uma família de cidadãos pobres na medida em que homens de gravata tomam decisões em ambientes fechados e sombrios, um procurador alega que “não dá para acreditar que as coisas aconteçam assim. Não é instantâneo: aprova-se um plano e em seguida acaba a comida na casa das pessoas.” Por essa razão, a publicidade gerava “estados emocionais ou mentais,” argumenta.
É uma contestação frágil, vamos combinar. Os bastidores de medidas que envolvem o sacrifício de milhões de pessoas costumam ser reservados e mantidos em segredo. Mas é possível saber algumas coisas. Na Grécia, passaram-se 72 horas entre o anúncio do referendo sobre o programa de austeridade e o corte de um pacote de 8 bilhões de euros. O piso das aposentadorias subiu de 60 para 65 anos antes de se aprovar um outro plano, de 14 bilhões, que exigiu um corte de 20% nas aposentadorias de maior valor. Nas escolas publicas gregas, o corte da merende provocava desmaios de crianças em salas de aula.
A simples hipótese de que se cogite uma proibição por razões políticas deveria ser escandaloso quando se recorda que a liberdade de expressão é um valor absoluto da Constituição. Há alguns anos, muito ciosos dessa liberdade, os ministros do Supremo Tribunal Federal chegaram a declarar extinta uma Lei de Imprensa — também criada pelo regime militar — porque se considerou que era um “entulho autoritário.”
O debate no TSE é ainda mais estranho porque estamos falando da liberdade de representantes do povo, dos porta-vozes de sua soberania, enquanto jornalistas, são cidadãos privados, que respondem a empresas privadas. A Constituição diz que é proibido proibir no parágrafo IX do artigo 5: “é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença.”
Sempre soube que uma lei ordinária está subordinada a lei maior e deve adequar-se a ela. Não há o que discutir. Ou não deveria haver. A liberdade não pode ser dirigida nem tutelada.
Ao tentar censurar aquela que foi até agora a discussão mais importante da campanha, Marina Silva deu ao TSE a chance de reafirmar seu compromisso com a democracia e a liberdade.