Um brinde à vida real

Porque incomodo o leitor - por Eduardo Pinheiro

Já escrevi algumas vezes sobre meu processo de escrita. Curto esse ouroboros, como fica mais ou menos evidente em “Como e por que escrevo” , “O Cubo de Necker no Texto” e “Desconfie da Leitura Fácil”. No penúltimo texto publicado, alguns leitores pediram que eu escrevesse sobre exatamente como a coluna WTF vem a ser escrita.

Não guardo pretensões de ser um bom escritor, num sentido jornalístico ou de literatura popular. Tenho, sim, a pretensão de escrever com estilo próprio, impactar e poder chamar o que faço de craft, ou arte. Talvez, em outras palavras, só tenho a pretensão de ser um escritor excelente, extraordinário, original — não “bom”.

A tensão que ocasionalmente percebo em alguns leitores surge pela expectativa ligada ao meio — isto é, querem ler certo tipo de texto, e forneço outro tipo. Pouco me importa se uma quantidade vasta de pessoas reclama de meu texto, desde que haja pelo menos outro admirador além de mim mesmo, e que eu seja remunerado ou esteja envolvido em algum ativismo pro bono próximo do coração. Não tenho nenhum tipo de insegurança com relação ao que eu faço e entendo porque isso às vezes soa quase uma perspectiva psicopata para quem vive do pacto de mediocridade.

Mas estas são questões menores. Eu, como leitor, gosto do tipo de ensaio literário que mistura estudos culturais e meta-estilística. Vale tudo, desde que exploda mentes, seja bonito e peculiar. Quando falo em meta-estilistítica, quero dizer que semântica e estrutura convergem sobre o tema — ao falar sobre caráter, faço um texto cuja estrutura tenta representar moralidade; quando faço um texto sobre a base metafísica da ciência, brinco com a ontologia do texto; quando falo sobre estética pátina, uso palavras desgastadas.

Mas não ao ponto disso se tornar um mero truque, espero; tudo que faço, claro, carrega essa estrutura bizantina de expressão que a mim vem fácil — as pessoas gostando ou não, parece que desenvolvi estilo. A supersimetria e o loop estranho são adereços conceituais, dispostos sem afetação ou tentativa de completude.

Minhas preocupações ao começar um texto são estabelecer um tema e, ligadas a ele, duas ou mais perspectivas inusitadas ao milieu cultural que imagino o cidadão de relativa média-alta cultura, em termos de língua portuguesa, vivendo. Esses chutes algumas vezes erram a dose em escala galática, mas não importa muito.

Um amigo já me chamou de Ignatius Reilly portoalegrense, e parece que sou bem aquele tipo que conversa com o porteiro sobre o Madhyantavibhanga (no caso de Reilly, era Boécio e outros escolásticos medievais). Enfim, que figura. “Bah, você fala de um monte de coisa que eu nunca ouvi falar”, sim, exato, presta atenção na vastidão da cultura humana, reles terrestre, e me faça loas por enfim ler, num, pasmem, blo(rrrh)g, os nomes Longchenpa ou Olaudah Equiano.





Ou, melhor, fica quieto e vai atrás. Aproveite para pelo menos aprender algum vocabulário!


O tema, por exemplo esse de hoje, pode parecer totalmente fora de propósito. O que importa mais, ao meu ver, é fazer alguma coisa engasgar nas engrenagens funestas do pensamento habitual. O sujeito está ali, operando os hábitos mentais do que se espera de ler um texto em tal hora, em tal site, e chega em algum ponto, preferencialmente bem no início, já no título, e exclama internamente, “que porra é essa?”.

“Um homem-bomba conceitual”. Também já me chamaram assim.

E é verdade, muitas vezes eu já me vi brigando ironicamente para não relevar a tremendamente irritante ironia que deixei no texto, e em que algum incauto caiu literalmente (sem literalmente cair, mas que jogo de palavras imperdível esse, hein?). Minha tremenda arrogância, quase ingênua de tão inesperada, exposta como confissão pública de alguém que não se envolve em falsa humildade. E quem se incomoda com arrogância? Apenas outro arrogante.

É interessante ver alguém protestar arrogância, principalmente quando não entende ironia, nem mesmo a da própria circunstância.

Afinal, a coluna se chama WTF, essa é uma expressão de incredulidade, de mente explodindo, e de irritação também. E quando vem um bocó reclamar da complexidade, só resta o facepalm, né. O cara quer botar e chapéu e ir pro canto sozinho?

Vai. Ninguém objeta.

Mas quanto ao tema, eu faço listas. A qualquer momento, em contato com a cultura via texto, imagem, conversa — ou com minha própria mente, em banhos e caminhadas — vem “isso é algo que seria legar desenvolver”, e então eu anoto, juntamente com algumas ideias relacionadas a trabalhar.

Ao longo do tempo, vou acrescentando terminologia, links, citações. E quando chega a hora de escrever, eu simplesmente “descompacto” aquele conteúdo da sua forma “mântrica”, essencial: e aí é só lapidar.

Nada, nunca, fica 100%. Exatamente como as pessoas que constatam erros de português, mas em outros termos mais amplos, minha edição também nunca é final. Nunca faço a leitura do texto sem mudar alguma coisa. Até parar de olhar para ele. E depois de publicados, os textos seguem sendo trabalhados. Algumas vezes com novas anotações, ao estilo “no tal texto, incluir tal ideia”.

Quando efetivamente vou fazer isso, releio o texto já revampeando o que acho que pode ser melhorado, e tento encontrar a melhor posição para aquela inserção. Se encontro repetições (não apenas essas mais ligadas a palavras num mesmo parágrafo, mas de argumentação), faço correções estruturais.

Algumas pessoas acham que o resultado é semelhante ao trabalho acadêmico mais pós-moderno, e já me reclamaram disso. Embora eu tenha alguma afinidade estética com a pós-modernidade (afinal, sou alguém que viveu a adolescência nos anos 90), em geral a critico frontalmente. E o trabalho acadêmico é essencialmente distinto desse tipo de prosa, nesse sentido, desprentensiosa (num sentido global, evidente, muito mais pretensiosa do que qualquer outra, mas nesse sentido, o acadêmico, sem pretensão).

Pode parecer um processo solipsista. Que leitor perfeito existiria para tal composição? Apenas eu mesmo? Certo tipo de composição vem com a recomendação de escrever como que se para a vó. Acho ok para algo como jornalismo ou verbete de enciclopédia. Você quer passar informação.

Você não quer, necessariamente, enriquecer (ou apenas desafiar) a pessoa cognitivamente. E basta escrever um pouco mais complicado para se perceber que, quando se vai ler, e começamos a frase numa prosódia interna determinada – e em geral um escritor bom quer fazer com que essa prosódia seja, como essa agora, suave, indo na direção esperada; e então você mete um ponto e vírgula, começa a falar da mente que estava lendo como estando numa marcha própria se deparando com uma troca inesperada, enfim confusa com a mudança (de prosódia) –, e muda tudo, fudeu, vovó pensa “vou ter que começar essa frase de novo do início”.

E o merda do escritor ainda, digamos, coloca um ponto sem dar continuidade ao enriquecimento cognitivo de driblar o leitor, ou completar a ideia. Parece errado, mas serve a um propósito, e olhe bem se está errado: difícil determinar. Só um ponto, pouco depois uma vírgula, outra, e não termina por dizer que essa quebra cognitiva está justamente desafiando a estrutura convencional, o status quo que determina a simplicidade no texto: porque quer tratar a todos como leitores iniciantes – nesse país de eternos iniciantes na leitura?

Consciência simplória aquela que pede por um texto simples, a não ser que seja para explicar como instalar o reparo de uma válvula de descarga, ou algo do tipo.

Quanto aos parágrafos, eu já desisti. Cortam onde querem, pra deixar mais telegráfico. Disclaimer: as entradas de parágrafos, muitas vezes, não são de minha autoria. Quando vou guardar o texto para futuras edições juro que estudo qual eu quero: a versão telegráfica, deixada para a web, ou a versão densa-como-a-crítica-da-razão-pura. Dependendo do texto, aceito as quebras inseridas ou as rejeito. Sou temperamental assim.

E é claro, ao mesmo tempo o pessoal da revisão quer deixar a sentença clara. É o trabalho deles. Mas o texto não é só para ser entendido, às vezes ele pode bem ser uma mera montanha russa.

E por isso tudo, não é um processo solipsista. De certa forma o solipsismo está mais no texto insosso que diz as mesmas coisas, e que desafia as pessoas com os mesmos supostos desafios que ela já espera, e fala dos tantos clichês do momento, e se repete ad nauseam, e que se desculpa ao se esquivar de se autorreconhecer como autoajuda – porque sabe que é coisa de uma indústria de melhoramento pessoal, de olhar o outro como RH da imanentização do eschaton, como agregador de soldados pela humanidade, ou algo do tipo. Isto é, agremiar, convencer, crescer juntos.

Decifra-me ou devoro-te, só que aqui, decifra-me E devoro-te – e nem precisa decifrar nada, porque tudo é banalidade.

E aí vem aquele outro mané do “fala, fala e não diz nada”, porque claro, tudo que ele quer é um vendedor de ideias. A única relação que ele conhece é justamente a aglomerativa, coercitiva, convencitiva, com duas opções: gostei e não gostei, concordo/não concordo — no mais lindo “sem nem dizer por que” –, como se fossem os jogos romanos, e ele o imperador da área de comentários.

Isso quando não são preconceitos com que se está brincando e atacando ao mesmo tempo. E é bom pegar uns que não sejam nada óbvios. Num texto recente eu xinguei a ciência por ser religiosa demais, mas não como (ou não só como) alguns leitores entenderam, nesse sentido de anti-Richard Dawkins de segunda série “buhú, vocês cientistas também são uns crentes”, como se ateísmo fosse religião, coisa que não é — e como se a ciência fosse uma mera crença, coisa que não é.

Não, alguma ciência é religiosa porque não assume que certas noções de ontologia e epistemologia de que se utiliza não são meras crenças. Foi o que eu disse. Mas, né, não se pode exigir interpretação — ainda mais quando se escreve justamente para revelar vieses interpretativos!

Mas vai que mexe alguma coisa, ou pelo menos lembramos alguns nomes e conceitos empoeirados.

Nos casos mais argumentativos eu basicamente faço um trabalho de imaginar as várias objeções possíveis, e uso tanto lógica quanto retórica para refutá-las antes que sejam levantadas. Em alguns casos a retórica inclui ironia, em que as objeções mais comuns, além de serem refutadas abertamente, são ridicularizadas. Um ponto importante é que no estabelecimento de uma refutação pode haver elementos argumentativos assumidos apenas pelo bem da refutação.

Eu gostaria de sempre ser capaz de dizer mais exatamente pelo que não estou dizendo, mas isso nem sempre se consegue. (“Mais exatamente” e “exatamente mais”, a ambiguidade também tento fazer funcionar a meu favor. Ok, esse é o tipo de interpretação cabalística do texto que nem convém, mas que é bom deixar ali, só pro caso de.)

Quanto a “benefício”, questionamentos quanto a motivação são sempre os que me deixam mais pasmo. Ora, se vão me aplicar uma régua utilitarista, não vão conseguir medir os raios x de pulsares de minhas aspirações. Esqueçam, deixem disso.

Tudo que eu tento é deixar bem claro o quanto você está perdendo do mundo e de sua própria mente, ou pelo menos a diversão que pode ter com as palavras.

EDUARDO PINHEIRO
Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.

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