A construção do Canal do Panamá começou em 1.881 e foi interrompida em 1.883, com a falência da empresa criada pelo diplomata francês Ferdinand de Lesseps, para promover e custear o empreendimento, tal como fizera com o Canal de Suez.
A obra ficou célebre na história dos grandes escândalos políticos e financeiros, a ponto de transformar a palavra “panamá” (entre aspas e com inicial minúscula) em sinônimo de negociata. Com a independência do Panamá, retomou-se o projeto e o canal foi aberto à navegação em 1.914; mas aí o pobre Visconde de Lesseps já tinha morrido, depois de ser fustigado pela Justiça francesa e desmoralizado pela imprensa.
Vejam como evoluem os costumes e padrões éticos, de país para país, de época para época. No Brasil, a partir do chamado Programa Nacional de Desestatizações (rebatizado de Programa de Parcerias de Investimentos), temos tido um rosário de “panamás”, cujos mentores, em vez de serem demitidos e ridicularizados como foi o Visconde de Lesseps, ocupam cargos importantes no governo e são homenageados nas colunas econômicas e noticiários de televisão. Quase todos, de simples professorezinhos de economia ou funcionários do BNDES e diretores da Eletrobrás e outras estatais, acabam transformados em empresários ou executivos de grupos poderosos.
Uma das primeiras contas de nosso rosário de “panamás” foi a desestatização da Light, que havia sido estatizada em 1.978, numa rumorosa operação em que a Eletrobrás assumiu uma dívida 1,2 bilhões de dólares e pagou 350 milhões cash ao grupo detentor da concessão, que aliás estava prestes a expirar. Para sanear as finanças e recuperar fisicamente a empresa, o Estado investiu de saída perto de US$ 2 bilhões e, depois, US$ 200 milhões por ano, em manutenção e reposição de equipamentos.
Já no governo FHC, com o Sr. José Serra no ministério do planejamento e seu amigo Mendonça de Barros na presidência do BNDES (a Sra. Landau cuidava das desestatizações), a Light foi desestatizada a favor da estatal francesa Électricité de France (EDF), associada à norte-americana AES e à Companhia Siderúrgica Nacional, então recém-comprada pelo grupo do Sr. Benjamin Steinbruch.
Curiosamente, os 2,2 bilhões de reais da época que o governo diz ter recebido, vieram em boa parte do próprio governo (BNDES, Eletrobrás e PREVI). Aliás, com a colaboração do genro de FHC, David Szilberstejn, que já o aconselhara no caso Light, o Sr. Steinbruch comprou (e depois revendeu) também a Vale do Rio Doce. Na época, a PGR não era como hoje, de modo que o Ministério Público não investigou esse “panamá”.
Mas voltemos à Light. A cada apagão que atormentava diversos bairros do Rio de Janeiro, a empresa prometia fazer tudo para corrigir falhas e evitar novos cortes de eletricidade, anunciando que investiria milhões, para substituir e manter equipamentos e sistemas.
Ocorre que, quando a empresa era estatal, os serviços eram melhores porque investia-se nisso cerca de 700 milhões de reais da época, por ano. Para que o leitor se situe diante desses números, convém assinalar que a Light vendia 31 milhões de megawattshora por ano, cobrando dos consumidores residenciais, comerciais e industriais uma tarifa média de 190 reais por megawatthora; portanto o faturamento anual estava em torno de R$ 5,9 bilhões da época. A eletricidade vendida era em grande parte comprada de Furnas a aproximadamente 44 reais por megawatthora (a pequena parte gerada nas hidroelétricas da empresa custava muito menos), portanto o lucro operacional da Light ia a mais de R$ 4,5 bilhões da época, por ano (cerca de R$ 15 bilhões de hoje). Ao ser privatizada, a empresa funcionava muito bem, com sua estrutura física completamente implantada. As dívidas tinham sido “engolidas” pelo Estado e o consórcio comprador contou com financiamento barato do BNDES, sendo, pois, muito baixas as despesas financeiras. Com a demissão de pessoal experiente e a terceirização de vários serviços técnicos, as despesas operacionais também caíram muito, podendo então o lucro líquido chegar a 7 bilhões de reais por ano, em valores atualizados, já descontados os impostos. Uma fatia desse lucro ia para a França, para custear as aposentadorias de nossos pobres colegas da EDF. Por diferentes motivos, a EDF, a AES e a CSN acabaram saindo do empreendimento e, hoje, a Light é controlada pela CEMIG.
O “panamá” das privatizações ficava ainda mais psicodélico à luz das promessas feitas por FHC e seu ministro da fazenda de que, com a receita obtida, reduziriam a dívida pública e que, livrando-se da responsabilidade de administrar empresas estatais, poderiam concentrar esforços em programas sociais como os de saneamento, habitação, saúde, segurança pública, etc. O resultado foi o oposto do prometido: a dívida multiplicou-se muitas vezes, os programas sociais estão emperrados, a insegurança é total e a violência é rotineira.
Apesar desse descalabro, a cobiça pelo que sobrou do sistema elétrico público (Eletrobrás, CEMIG, COPEL e o que resta da CESP) leva os promotores de negócios, apoiados por seus “simpatizantes” no governo, a desfechar autênticas operações de “lavagem cerebral”, para camuflar os prejuízos causados pelas privatizações já feitas e “vender a idéia” de que a vida ficará melhor se tudo no Brasil for – reparem a leviandade – desregulamentado e entregue à exploração privada.
Daí a avalanche de entrevistas de autoridades e de seminários, em que os palestrantes, com poucas exceções, são economistas e empresários jejunos em matéria de tecnologia e planejamento energético, porém direta ou indiretamente interessados na privatização das empresas de eletricidade. É fácil prever que, se suas propostas forem aceitas, os “apagões” ficarão mais frequentes e as tarifas muito mais caras. Além disso, caso as privatizações se façam em favor de grupos estrangeiros, as remessas de lucros sufocarão a economia e a concentração de renda ficará explosiva.
Para terminar este artigo, penso ser útil lembrar a diferença dentre os conceitos de Espaço Público e Espaço Privado, colocada por Norberto Bobbio entre outros cientistas políticos:
O espaço privado é ocupado por corporações e empresas industriais; estabelecimentos comerciais; instituições financeiras, e outras, cujo objetivo central é o de gerar lucros para os seus controladores.
O espaço público é ocupado por entidades dedicadas a atividades não lucrativas, tipicamente estatais, como a diplomacia, a segurança nacional e a polícia, além daquelas de caráter social, como a educação primária e a saúde pública. Neste espaço também estão alguns serviços públicos (utilities) vitais para as demais atividades e que, por isso, devem respeitar certos princípios éticos que os afastem dos embates por lucros, que caracterizam o espaço privado. Aí está, por exemplo, o suprimento de eletricidade, que, num país como o Brasil, entra na classe dos monopólios naturais.
Acresce que a eletricidade é indispensável para a produção industrial e para o comércio; comunicações; pesquisa científica; hospitais e laboratórios; lazer; conservação dos alimentos; abastecimento, enfim, para tudo. Os preços da eletricidade impactam todos os custos da economia, acabando por influir sobre a qualidade de vida das pessoas. Por conseguinte, tarifas elétricas não devem ser formadas no espaço privado, que é um espaço de corrida por lucros, no qual ética e qualidade de vida pouco importam.
Ou seja, os controladores das empresas de eletricidade procuram lucros em curto prazo, enquanto a qualidade de vida dos consumidores fica em segundo plano.
Quem citar os Estados Unidos como exemplo de país onde tudo é explorado pela iniciativa privada, deveria saber que lá o sistema é basicamente termelétrico, mas as grandes hidrelétricas pertencem e são exploradas por entidades públicas de âmbito regional, como a Tennessee Valley Authority, a NorthWestern Energy Company e a Bonneville Power Administration, ou até por inúmeras entidades de âmbito municipal (Counties).
A razão disto é a de que a geração de energia é apenas uma das utilidades dos reservatórios hidrelétricos, ao lado de outras, igualmente importantes, como a irrigação de terras agrícolas, a regulação das vazões dos rios, o controle de enchentes, o abastecimento de água para as cidades e a navegação interior, etc.
Fonte: http://ilumina.org.br/o-que-significa-privatizar-a-eletrobras-artigo/
* Joaquim Francisco de Carvalho - doutor em energia pela USP - Universidade de São Paulo -, foi pesquisador ao IEE/USP, coordenador do setor industrial do ministério do planejamento, diretor da NUCLEN e engenheiro da CESP - Companhia Elétrica de São Paulo.