O último da classe
Recém-chegado da Polônia, em 1958, com nove anos, eu estranhei algumas coisas aqui do Brasil. Não entrava na minha cabeça, por exemplo, o fato de "pois não" significar "sim" e "pois sim"!, "não". Não fazia sentido para mim. Certa vez vi uma aglomeração em volta de um bonde parado numa esquina. Todos olhavam para debaixo dele. "O que aconteceu"? perguntei a um rapaz. "Morreu o boi" ele respondeu.
Me agachei e enfiei minha cabeça o mais que pude próximo aos trilhos para ver o boi atropelado. Não tinha boi algum. Nem caberia, é claro, nesse espaço. Fui embora sem entender nada.
Muito mais tarde me contaram que "morreu o boi" queria dizer mais ou menos "até aqui morreu o Neves", ou seja, "não aconteceu nada tão importante assim".
Eu estudava, aos 11, na terceira série do Grupo Escolar Pereira Barreto. Ficava na esquina da Clélia com a Pio XI, na Lapa. Minha mãe me matriculou ali porque ficava a poucas quadras da nossa casa. E era uma escola pública.
Eu detestava o uniforme – um avental branco. Tinha vergonha. Dizia pra minha mãe que era uniforme de menina. Detestava principalmente andar com esse avental na rua. Dentro da escola, vá lá, mas na rua?
A professora gostava de mim. Eu não atrapalhava a aula, fazia as lições direitinho, sabia as matérias de cor, não zoava com meus coleguinhas, respeitava a professora. Muitas vezes ela pedia que eu fosse ao quadro negro ensinar aos meus colegas problemas que eles não conseguiam resolver. Ou deixava que eu corrigisse as provas deles. Eu tirava ótimas notas. Quase sempre as melhores.
No dia em que ganhei a medalha Carvalho Pinto, que premiava os melhores alunos do curso primário do estado de São Paulo, minha mãe ficou tão orgulhosa que me levou para tirar uma fotografia especial, num estúdio, com aquele avental que eu detestava e a medalha pendurada na altura da lapela. Gastou o que não podia para registrar aquele momento inesquecível.
Mas o que me intrigava era que com meus colegas eu não fazia o mesmo sucesso que com a minha professora e a minha mãe. Ao contrário. Me chamavam de "CDF", o pior xingamento que havia entre nós.
O aluno mais popular, aquele de quem todos queriam ser amigos, não era eu – o primeiro da classe – mas aquele que sentava na última fileira, chegava atrasado, copiava a lição de alguém na última hora, colava na prova, falava alto, fazia piadinhas sem graça nas horas mais impróprias, jogava giz nas costas da professora, rasgava o boletim para não mostrar aos pais, mentia para faltar à aula, bagunçava para não deixar os outros aprender, toda hora ia pra diretoria, dedurava quem não ia com a cara dele, tirava as piores notas. O mau caráter. O sem-vergonha. Aquele que a professora sempre punha de castigo. Aquele que não aprende e não deixa os outros aprenderem. Aquele que despreza os livros.
O mais popular não era o primeiro, mas o último da classe.
Com meu filho maior aconteceu a mesma coisa, mais ou menos cinquenta anos depois: "para ter amigos não posso tirar 10", se queixava. Viajou à Noruega, onde se formou em norueguês. E onde era admirado por tirar 10. Depois mudou-se para a Alemanha. Também por lá gostam de bons alunos.
Não sei se nas escolas brasileiras os melhores alunos continuam sendo chamados pelos colegas de "CDF", mas os piores, pelo visto, continuam em alta.
Entre um ótimo professor e o último aluno da classe, os brasileiros escolheram a segunda opção para presidente da República nas últimas eleições.
Alex Solnik - jornalista. Trabalho no Jornal da Tarde, IstoÉ, Senhor, Interview e Manchete. Escreveu 13 livros, dentre os quais: O cofre da Adhemar, Porque não deu certo, A guerra do apagão e O domador de sonhos.
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