O governo, os cartões e o 'bom ladrão' de Vieira


Deu-se há 11 dias. O ministro Paulo Bernardo (Planejamento) concedia uma entrevista coletiva. A alturas tantas, lhe perguntaram o que achava da idéia de instalar uma CPI no Congresso para investigar os cartões do governo.

"Com toda a sinceridade, acho que não é o caso. Vai fazer o quê? Convocar um ministro de Estado para explicar o gasto de R$ 8,30 com uma tapioca? Vai virar a CPI da Tapioca?"

Em tempos de Carnaval, poder-se-ia levar o comentário do ministro na base da galhofa. Mas não seria educado fazê-lo. Não em respeito a Paulo Bernardo, mas em consideração ao contribuinte, o financiador da tapioca.

Assim, pode-se deduzir que o ministro deve ter desejado dizer algo assim: ainda que seja verdadeira, a acusação é uma honra para o governo do companheiro Lula, que, ao praticar desvios, é comedido. Ou, por outra: Sob Lula, se há roubo, rouba-se pouco.

A pilhéria de Paulo Bernardo ganha ossatura antropológica quando vista sob a ótica de um clássico: o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Deus pôs Adão no paraíso, anotou Vieira, com poder sobre todos os viventes, como senhor absoluto de todas as coisas criadas. Exceção feita a uma árvore. Eis que, com a cumplicidade da mulher, Adão provou do único fruto que não lhe pertencia.

"E quem foi que pagou o furto?", pergunta Vieira. Ninguém menos que Deus, materializado na pele de Jesus. Condenado à cruz, pregado entre ladrões, ofereceu um exemplo aos príncipes. Um sinal de que são, também eles, responsáveis pelo roubo praticado por seus seguidores.
Ao sobrepor a imagem da "tapioca" de um reles ministro à farra global dos cartões, Paulo Bernardo como que contrapôs a periférica pasta dos Esportes ao poderoso Palácio do Planalto, onde os gastos, além de mais portentosos, são secretos. Sem querer, o titular do Planejamento evocou outro trecho do "Sermão do Bom Ladrão".

Conta o padre Antônio Vieira que, navegando em poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata dado a roubar os pescadores. Alexandre repreendeu-o. Atrevido, o pirata replicou: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?".
Citando Lucius Annaeus Seneca, um austero filósofo e dramaturgo de origem espanhola, Vieira lapidou o seu raciocínio: se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, todos -rei, ladrão e pirata- merecem o mesmo nome.

Assim, a malversação de uma “tapioca” ou o desvio de grandes somas são irrupções de um mesmo fenômeno. O tamanho do desvio importa pouco. De troco em troco também se chega ao milhão. E quem se lambuza na tapioca mais facilmente o fará no grande pote de mel em que se transformaram os cartões corporativos, tão úteis e indispensáveis quanto perigosos.

Curiosamente, nas pegadas da entrevista de Paulo Bernardo, o ministro Orlando Silva (Esportes) restituiu à bolsa da viúva R$ 30.870,38. Referem-se à tapioca e a otras cositas más. A ministra Matilde “R$ 171 mil” Ribeiro (Integração Racial) foi levada pelo governo ao microondas. E, não resistindo ao calor, pediu para sair. E o caso dos cartões continua pendurado nas manchetes.

A “tapioca” revelou-se mais indigesta do que Paulo Bernardo poderia supor. Tornou-se símbolo de um Éden conspurcado. Em meio ao paraíso dos cartões, os agentes do governo deixam-se seduzir, com inaudita facilidade, pelo fruto proibido. Ou pela "tapioca" alheia.
Escrito por Josias de Souza às 19h45

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