Flávio Tavares *
O que teria ocorrido no mundo se Deus houvesse disposto o contrário do que dispôs e, no evolucionismo das espécies, os ratos é que caçassem os gatos? Prever o que não houve é brincar com o impossível, mas nada seria como é. A mixórdia seria tanta com os ratos mandando (como hoje mandam os gatos), que a humanidade não teria chegado aonde chegou.
Tudo seria invertido. As sensações de prazer e pavor seriam outras. Seriam as da pele fria do rato, não as do gato. Bichos com fedor a esgoto estariam na almofada do sofá, oferecendo o focinho ao carinho humano.
A inversão de papéis nos arrepia? Por quê? Ou com o crime, hoje, não começa uma perigosa inversão do papel de quem caça e de quem é caçado?
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O crime foi poderoso em todos os tempos. Matou, roubou, ameaçou, pressionou – ganhou ou perdeu, mas sempre com as próprias armas. Nos Estados Unidos, os “gangsters” de Al Capone eliminavam quem os perseguisse. Na Itália, até bem pouco, a “maffia” matava juízes e policiais para burlar a lei. Sujava ainda mais as próprias mãos para tentar escapar.
No Brasil, isso não é preciso, e o crime, às vezes, salva-se pelas mãos do poder público. Ou não há casos em que a punição se inverte e os ratos passam a caçar e punir os gatos?
Aqui, a lei é elástica, serve para uns, nunca para outros, se retesa ou se expande, é dura ou branda em função de quem seja o criminoso. Para o pequeno delito, o do velho “ladrão de galinha” (que hoje só encontraria frango congelado) ou da mocinha que surrupiou um pote de manteiga no armazém, a Justiça tem penas severas. Mas tudo é brando e se permite tudo ao “grande crime”, o do poderoso político, rico empresário ou alto funcionário.
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Agora, no inquérito que redundou na prisão do banqueiro Daniel Dantas, do macroagiota Naji Nahas e do ex-prefeito paulistano Celso Pitta, a permissividade foi além de si mesma.
Os procedimentos dos altos escalões do governo federal e da Justiça quase significam a antecipada defesa dos implicados. Primeiro, o presidente do Supremo Tribunal apavorou-se porque o milionário Dantas fora algemado e mandou soltá-lo com inusitada pressa. Nunca, antes, um tribunal se sentira ofendido com o uso de algemas pela polícia. Logo, o STF proibiu o uso de algemas no país!
Proteger a dignidade humana do preso é ato de justiça. Mas será a algema humilhante em si? Ou é, tão-só, uma forma de materializar o mandado de prisão expedido pela Justiça?
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Humilhante mesmo, para a dignidade da Justiça como instituição e poder do Estado, é a reviravolta na investigação sobre os atos de corrupção e suborno do banqueiro Dantas e seus sequazes laterais. Agora, o “réu principal” passou a ser o delegado Protógenes Queiroz, que levou adiante as investigações da Polícia Federal ordenadas pelo juiz federal paulista Fausto De Sanctis.
A imprensa noticiou os detalhes nauseabundos dessa pirueta e não repetirei o que se sabe sobre esse horror. Absurdamente, o delegado Protógenes é quem está, agora, sob ameaça de prisão e condenação em juízo, depois de ter sua casa vasculhada pela Corregedoria da própria Polícia Federal. O inquérito prosseguirá, mas sob nova direção!
Dias atrás, o plenário do Supremo manteve a liberdade de Dantas (e asseclas) e censurou o juiz De Sanctis, classificando-o de “insolente”. Antes, o presidente do STF pedira que o Conselho Nacional de Justiça (que ele próprio chefia) investigasse a conduta do juiz.
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Em recente artigo sobre o conluio entre política e grupos de poder, Noam Chomsky (o mais lúcido pensador da esquerda norte-americana) citou uma frase do seu conterrâneo, o filósofo John Dewey, que talvez defina tudo: “A política é a sombra da grande empresa sobre a sociedade”.
Aqui, vivemos à sombra dos ratos. E, na sombra, são eles que, agora, caçam os gatos.
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