Presente de Natal

Carta Capital publicou

Segunda-feira 15 de dezembro. Vivemos o sexto ano da ditadura do "Estado policial". As liberdades individuais, como se vê diariamente nas ruas, foram suprimidas. Pobres banqueiros e desprotegidos empresários vivem acuados por policiais e juízes, gente esquisita que decidiu cumprir as funções que a sociedade deles exige: investigar e julgar.

Sorte que existe um paladino. Ele atende pelo nome de Gilmar Mendes, preside o Supremo Tribunal Federal (STF) e, às 10h30 da noite, está sentado no centro do Roda Viva, programa de entrevistas da TV Cultura no ar há mais de vinte anos.

Mendes é um democrata, como sabemos, e não foge a nenhuma batalha em nome de sua cruzada pela defesa do Estado de Direito e das garantias individuais. Será sua milionésima entrevista, mas não importa que, dia sim, dia não, ele valha-se dos microfones e holofotes para atropelar uma regra básica da magistratura, a de que um juiz, ainda mais um ministro do Supremo, não pode se pronunciar sobre causas que vai julgar. Mendes oferece opiniões a granel. Quer uma frase contra a demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol? Chame o Mendes. Uma resposta a respeito dos "terroristas" que insistam na reinterpretação da Lei de Anistia? Liga pro Mendes. Ou melhor, espere-o na saída do STF. Precisa de umas aspas que se adéqüe à tese de que juízes de primeira instância e policiais conspiram para instalar um Estado totalitário no Brasil? Cadê o Mendes. Ronaldo, o Fenômeno, no Corinthians?

Não importa que ele banalize a função. Ignora-se, na porção dos defensores da democracia, o fato de que em nenhum país desenvolvido, ou mesmo entre os aspirantes, um presidente da mais alta Corte mercadeje suas opiniões em troca de espaço na mídia. No caso brasileiro, trata-se (como alguém pode duvidar) de um bem-vindo ativismo judicial. Além do mais, informa Mendes lá pelas tantas do programa, ele não participa de um concurso de popularidade com ninguém. Por que então a extensa agenda em São Paulo, iniciada com uma homenagem na Fiesp na sexta-feira 12 e concluída no Roda Vida, salpicada de visitas a empresas de comunicação?

Pena que Mendes, como boa parte dos que se dizem democratas no Brasil, carregue dentro de si um pequeno déspota. Isso lhe tira a chance de ser santificado. E ele, inegavelmente, agiu como um tiranete ante as perguntas da jornalistas Eliana Cantanhêde, da Folha de S. Paulo. É presumível -- e bastante natural -- que o ministro tenha sido informado da lista de entrevistadores. Provavelmente, enganou-se quanto à passividade de Cantanhêde. Havia um turista acidental, Carlos Marchi, do Estadão, alheio ao redor. E o elenco de apoio, do qual se falará em breve.

Em pleno horário nobre, ao vivo, o supremo presidente quase perdeu as estribeiras com Cantanhêde. Também, pudera, ela teve a pachorra de fazer perguntas que não serviriam apenas para o ministro desfiar sua decantada erudição e saber jurídico.

Cantanhêde não quis saber, por exemplo, o que Mendes achava da percepção geral de que o STF é dado a privilegiar réus endinheirados. E também sobre as razões do segundo habeas corpus que libertou o banqueiro Daniel Dantas em menos de 48 horas, apesar de o juiz De Sanctis, que autorizou a nova prisão após o próprio Mendes ter libertado o banqueiro da primeira vez, ter acrescentado provas adicionais no pedido.

Mais cedo, durante evento na seção paulista da Ordem dos Advogados, o ministro havia dito que o habeas corpus é "essencial como o ar". As perguntas de Cantanhêde parecem ter lhe afetado a respiração por instantes. Tentou conter a exaltação cofiando uma inexistente barba. Alvejado por outra pergunta, não se conteve. Em tom áspero, desferiu, primeiro sobre o privilégio a ricos: "Fui eu, não foi você, que denunciou o amontoado de presos". Palmas. Depois, sobre o HC de Dantas propriamente dito. De acordo com ele, o segundo pedido de prisão de Dantas expedido por De Sanctis era "um desafio" lançado com o objetivo de desmoralizar o STF.

Parênteses: Mendes tem cometido outro pecadilho grave para quem empunha a bandeira da democracia com dedicação sebastiana. Confunde o indivíduo, no caso ele, com a instituição, o STF. Criticá-lo é afrontar a mais alta Corte do país. É uma maneira bem republicana de encarar os fatos.

Por causa das perguntas iniciais (será a jornalista da Folha mais uma fascista a atentar contra as liberdades?), o Roda Viva até parece seguir sua dinâmica mais ou menos usual.

Não durou muito, a sensação. Agastado, Mendes foi socorrido pelos cavalariços. Na vanguarda, um chapéu de onde, subitamente, começam a sair palavras. Eis a versão brasileira do "talentoso" Ripley. Sempre com a sua inamovível condição de figurante, sempre tentando ser o que não é, o pobre chapéu, mimetizando trejeitos e tiques de seus objetos de desejo, enquanto tenta manter seus demônios em armários ou em sufocantes cabines de navios. Ripley falava, teorizava, tecia, bordava, cacarejava. Cansado, o câmera mira no entrevistado. Mendes surge então meio enfadado, meio perplexo, cofiando a barba imaginária. Nem o presidente do STF, pós-graduado na Alemanha, consegue acompanhar as diatribes. É dura a vida de um intelectual nos trópicos.

A respeito do chapéu falante, vale acrescentar o texto em que o ombudsman da TV Cultura, Ernesto Rodrigues, trata do Roda Vida (www.tvcultura.com.br): "Passou todo o programa usando Gilmar Mendes -- e às vezes até dispensando a participação do entrevistado -- para expor suas 'teses' e fazer ataques". Desnecessário informar ao distinto público que Rodrigues, após publicar o texto, virou alvo de vendetas no blog do "talentoso" Ripley. O blog, para quem não sabe, abriga-se no site da revista que adotou o slogan "essencial para o Brasil que queremos ser", é freqüentá-lo é como acompanhar uma conversa em um salão de beleza. O chapéu é uma espécie de cabeleireiro-chefe. Ou coiffeur, se preferir.

Sozinho, Ripley, o coiffeur, não daria conta do trabalho. E então entra em campo o seu companheiro de zaga no Mendes Futebol Clube, Dublê, o eterno assessor. A respeito da atuação do dublê de jornalista anotou o ombudsman: "Além de encarnar um velho problema do Roda Viva -- o dos entrevistadores que desenvolvem teses, em vez de perguntar --, deixou claro, com sua participação, de que queria mais usar a bancada para mandar recados e insinuações relacionadas à guerra de blogs políticos em que está mergulhado. Chegou a sugerir ao ministro o enquadramento de colegas de profissão que não identificou por formação de quadrilha". O Dublê entende desses assuntos: mandar recados e formação de quadrilha.

A zaga cumpriu sua função a contento, para a glória do Estado Democrático de Direito. Nem nos intervalos do programa a dupla baixou a guarda, anjos na porta do céu prontos a enviar os infiéis ao inferno. Houve, aliás, um outro Roda Vida, instigante, transmitido exclusivamente pela internet nos intervalos. Nele, a repórter Lia Rangel (será outra fascista?), da TV Cultura, fazia a Mendes as perguntas encaminhadas por internautas. Enquanto Lia tentava fazer o seu trabalho, os jagunços lhe apontavam as armas, na tentativa de intimidá-la. A repórter assistiu às chacotas e cumpriu o seu trabalho, a despeito das maledicências das comadres.

Mendes, outra vez visivelmente incomodado com perguntas impertinentes, preferiu tergiversar, amparado por sua claque. Sobre a declaração de Hugo Chicaroni, ouvida em rede nacional de televisão, de que Dantas contava com facilidades nas "instâncias superiores" do Judiciário, fez-se de desentendido. "Não acredito que se tenha dito isso. É uma forma de coagir os tribunais superiores a não concederem habeas corpus". No mais, o ministro nem sequer precisou se esforçar. Coube ao chapéu falante a ao eterno assessor o trabalho de atacar os desafetos do entrevistado: o juiz De Sanctis, o delegado Protógenes Queiroz, o diretor da Abin Paulo Lacerda. Mendes, vez ou outra, só checava se os alvos estavam realmente mortos.

A partir do terceiro bloco, partiram, todos, para as banalidades. No fim, os espectadores do Roda Viva foram dormir com a firme convicção de que a defesa da democracia brasileira está em boas mãos.

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