Memórias de minha janela: o morador de rua.


Início de tarde de um dia ensolarado em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Na semana antecedente ao carnaval, inúmeros despachos são depositados no local próximo de onde moro. Neste hábito comum entre religiões originárias da África, a via pública torna-se o altar de pedidos e orações cujas intenções desconheço. Para os moradores e transeuntes locais, resta apenas a visão e o odor das oferendas, feitas sempre no período noturno. Nos dias seguintes, a empresa responsável pela coleta de lixo recolhe tudo aquilo que, popularmente, também é chamado de macumba. Como de costume, esta coleta específica é realizada no período da tarde.

Em um destes dias, realizando alguns trabalhos profissionais em casa, numa pequena pausa feita para descanso, empunhei a câmera fotográfica e registrei a cena. Um morador de rua de descendência africana, primeiramente pára ao lado de tal despacho: olha atentamente para cada prato e garrafa ali depositado. Logo depois, sem fazer qualquer cerimônia, agacha-se e começa a comer e beber, numa refeição a céu aberto. Nem olhou para os lados antes de começar, visto que este deve lhe ser um hábito comum.

As oferendas ou despachos são feitas para santos ou entidades que também desconheço em sua maioria. Não sei dizer se o morador de rua tem religião ou acredita em Deus, mas sei que ele se alimenta literalmente de uma comida divina: ainda que esteja exposta ao sereno e ao sol por mais de doze horas, para ele, a comida é divina mesmo. Sem esta oferenda, não saberíamos como poderia se alimentar. Se ele tocasse meu interfone, não saberia dizer como eu reagiria. Talvez ficasse desconfiado e lhe negaria ajuda, ou quem sabe, nem atenderia ao interfone.

Penso também nos santos e entidades, aos quais foram oferecidos tais alimentos ao meio fio. Ficariam ofendidos com o morador de rua ou felizes ao partilhar o pão? Ao mesmo tempo penso nas pessoas que fizeram tal oferenda: ficariam tristes ou felizes ao verem seu altar em via pública sumir nas mãos de um esfomeado? De qualquer modo penso que nós, seres humanos em geral, adquirimos hábitos estranhos, realizando oferendas de cunho divino para receber graças para si próprio ao invés de dar graças aos homens mais próximos e desafortunados. Será que os santos e entidades sentem fome?
(Foto e texto por Marcelo A. D'Amico)

3 comentários:

  1. A fé não tem explicação. Cada que cuide da sua e respeita a dos outros. Vivo assim.

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  2. Fé demais ou fé de menos :) hehehehe Não importa o bom é que alguém se deu bem. Ab Yvy

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  3. Fé é como fantasma só existe na cabeça do alienado e covarde. Tem uns que FÉ demais, outros FÉ de menos. Portanto, é passar um bom desodorante que a FÉ demais ou a FÉ de menos da lugar ao cheiro suave e bom!

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