Memória de Caymmi - Jõao Ubaldo Ribeiro


...Encontro na casa dele, onde eu não tinha aparecido nem dado notícias havia semanas. Que tinha acontecido? Respondi que andava me virando. Mercado sempre difícil para jornalistas, escritores e afins, dureza mesmo...

Mas que ele não se preocupasse, eu me virava... E ele, apesar de algumas palavras encorajadoras, pareceu não se preocupar mesmo...

Dias mais tarde, me procura, num dos bicos em que eu batalhava contra a penúria, o representante de uma agência de propaganda...

Um banco, cliente dessa agência, ia inaugurar sua primeira filial em Belo Horizonte e haviam escolhido Caymmi para estrelar um comercial dirigido aos mineiros...

Ele só tinha que aparecer vestido de Dorival Caymmi mesmo e dizer uma frase de duas linhas...

Tudo acertado, foram a ele e mostraram a frase...

Não precisava nem decorá-la, podia ler de um cartaz posto à sua frente, fora de cena...

Ele a examinou com gravidade, fez a beiçola de dúvida que era também marca sua e perguntou quem tinha escrito aquele negócio...

- Um redator lá da agência, é só isso mesmo que o cliente quer que o senhor diga, é só dizer essas palavrinhas...

- Não digo... Só digo textos de alta qualidade literária...

- Mas qualidade literária aqui, o senhor...

- Não adianta...

- Procurem João Ubaldo Ribeiro...

- Só leio se ele escrever...

E vocês pagarem a ele decentemente, para eu não passar vergonha...

Pronto, ali estava o compreensivelmente indignado representante da agência para que eu escrevesse a frase que Caymmi leria...

O cheque era régio, dava de sobra para me safar do que na época se chamava pindaíba total... Mas escrever o quê? Pois é, disse o emissário, não tem nada o que escrever, é só ´eu sou Dorival Caymmi e estou aqui em Belo Horizonte etc...´, só isso...

Vi que era verdade e, morto de vergonha, pedi pelo menos para copiar as palavras na minha máquina, para Caymmi realmente receber um papel saído de minhas mãos...

Voltaram lá, ele nem olhou o texto, só perguntou se era meu mesmo...

- Então eu leio -disse ele...

- Se é do João Ubaldo, eu leio...

E leu...

Dias mais tarde, apareci de novo na casa dele, trocamos umas abobrinhas e ele, antes de recomeçar a história como sempre, me perguntou se as coisas tinham melhorado, eu disse que sim, ele bloqueou meu agradecimento, voltou logo à história e nunca me falou no assunto...

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