Não há a menor hipótese dessas "divergências" em torno do novo salário mínimo serem resultantes de compreensões diferentes sobre a justeza política ou técnica de qualquer um dos valores conhecidos.
Para variar, o reajuste virou peça de manobra na corrida desembalada por uma fatia rendosa desses podres poderes. Ou mesmo para definir quem é o gostoso nesse time de pernas de pau que a presidente Dilma Rousseff sacramentou em nome do pai, do filho e do espírito santo. O salário mínimo entra nessa rusga como Pilatos entrou no Credo. Mas ainda vai dar muitos panos pras mangas. E servir de trunfo para a turma do deixa disso, sempre à espreita de um entrevero para exibir suas receitas de como engolir sapos ensandecidos.
Lupi fala grosso
Que eu saiba, esta foi a primeira vez que o ministro Carlos Roberto Lupi falou grosso e se expôs em público num confronto com Guido Mantega, o ministro da Fazenda que sempre criou dificuldades para ele, numa espécie de represália por ter o Ministério do Trabalho escapado ao controle do Partido dos Trabalhadores.
Nascido em Gênova, na Itália, Mantega é uma figura sem carisma, que começou a ocupar cargos públicos como assessor de Paul Singer, quando este era secretário municipal de Planejamento da prefeita Luiza Erundina, no início da década de 90.
Quando Lula assumiu a presidência, pôs Mantega no Planejamento e Paul Singer, um dos mais importantes revisionistas do sistema econômico socialista, no terceiro escalão do Ministério do Trabalho.
Lupi o encontrou lá, escondido na penumbra, cuidando de formação de empresas auto-geridas, e o prestigiou. Aliás, com seu jeito de ser, o ministro pedetista assimilou praticamente todo a equipe que encontrou, inclusive Luiz Orlando Medeiros, ex-presidente da Força Sindical, que havia sido desbancado por Paulo Pereira da Silva, seu ex-pupilo, com quem Lupi estabeleceu uma aliança de conveniências mútuas, hoje meio barro, meio tijolo.
Mantega, o que quer ser o tal
Como não é segredo, Mantega foi o primeiro ministro indicado por Lula para continuar no cargo, sob o comando de Dilma Rousseff. Medíocre, mas oportunista por convicção, ele sempre foi muito discreto e cumpriu sem pestanejar todas as tarefas confiadas pelo chefe, ao qual passou a assessorar, em 1993, depois de passar alguns anos no CEBRAP, tendo FHC como seu amado mestre.
Mas ele não se manteve no cargo sob os aplausos gerais. Pelo contrário: Dilma o nomeou sem pestanejar, mas colocou na chefia de sua Casa Civil o sanitarista Antônio Palocci, a quem Mantega substituiu no Ministério da Fazenda, depois que Lula o demitiu em 26 de março de 2006, como consequência do escândalo da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa.
Ao assumir o ministério que tem poderes excepcionais sobre a vida econômica das empresas e das pessoas, Guido Mantega tratou de montar seu próprio "staff" e definir suas próprias cartadas, livrando-se de quem tinha amores pelo antecessor. Aliás, ele já guardava uma certa mágoa, por achar que Palocci teria tido alguma influência na sua demissão do Ministério do Planejamento, em novembro de 2004.
O ministro que não criava caso
Durante todo o governo Lula, Carlos Roberto Lupi aceitou o confinamento do Ministério do trabalho nos limites do FAT - o Fundo de Amparo ao Trabalhador que tem ajudado também aos empresários - e do CAGED - cadastro que registra admissões e demissões no Ministério do trabalho.
Com o FAT, pôde dar alguma mãozinha a prefeituras e entidades não governamentais que prometiam treinar a mão de obra. Como os delegados regionais do Trabalho são indicados por seu partido - o PDT - ele incentivou seus partidários a assumirem secretarias do Trabalho nos âmbitos dos Estados e municípios, independente da filiação dos chefes dos Executivos. E aí costurou um "trabalho conjunto".
Já com relação ao CAGED, ele passou a ser o divulgador de suas estatísticas mensais, criando uma imagem de que o seu ministério tinha alguma coisa a ver com o aumento dos empregos no país.
Fora disso, havia admitido sem espernear a desfiguração de sua Pasta, criada por Getúlio Vargas em 26 de novembro de 1930, no bojo da revolução que se propunha modernizadora das relações de trabalho. Até então, apesar da criação do Departamento Nacional do Trabalho, em 1918, pouco depois de uma rebelião que mobilizou tecelões e metalúrgicos no antigo Distrito Federal, sob a liderança do anarquista José Oiticica, as reivindicações dos trabalhadores eram tratadas como casos de polícia.
Abriu mão da principal função do Ministério, mediar os conflitos trabalhistas. Ficou fora das investigações sobre trabalho escravo nas plantações de cana em São Paulo, da greve dos correios e da ameaça de greve nos aeroportos.
Pior: ficou sozinho, sem nenhum apoio do governo, diante de uma greve dos funcionários do seu Ministério, que durou de abril a novembro de 2009, e terminou sem ganhos, deixando-o mal na fita.
Nenhuma semelhança com João Goulart
Pisando em ovos, sem mandato e sem padrinhos influentes, Lupi não se assemelhou nem de longe a João Goulart, que partiu para o confronto ao lado dos trabalhadores, defendendo e obtendo de Getúlio Vargas o aumento de 100% do salário mínimo, em 1954 (durante todo o governo do general Dutra o mínimo havia sido congelado). O reajuste lhe custou o cargo, com sua demissão em fevereiro do mesmo ano, mas a partir daí Jango se tornou a grande referência dos assalariados.
Lupi preferiu aceitar as regras de um jogo adverso, no qual foi ignorado até na montagem da "reforma trabalhista" concebida por Mangabeira Unger, em estreita colaboração com a equipe do ministro Mantega, mais uma rasteira que ele aguentou calado.
PDT a reboque de olho no amanhã pessoal
Para construir seu "direito a permanecer no cargo", Lupi colocou o PDT a reboque da candidatura Dilma, interferindo para que nos Estados o partido criado por Brizola também fosse caudatário do PT, e operando com dedicação os interesses da candidata. Foi por seu intermédio que o senador Osmar Dias concordou em ser candidato governador do Paraná, mesmo sabendo da força de Beto Richa, do PSDB, a quem poderia ter se aliado para garantir sua reeleição. Nessa negociação, Lupi foi portador de uma garantia do presidente Lula de que Osmar não ficaria no sereno se perdesse a eleição. O pedetista perdeu e já está em maus lençóis com as ofertas de prêmios de consolação humilhantes.
O salário mínimo passou a ser agora uma espada afiada nas mãos de alguns. O PMDB, que se sente mal servido pelas prebendas do novo governo, ameaça virar a mesa e ajudar a votar um mínimo maior do que o concebido pelo governo, a partir do diagnóstico de Mantega.
Paulinho da Força Sindical, defensor de um mínimo de R$ 580,00 por que quer ser mais ele, resolveu ignorar Lupi e pediu ao deputado Marco Maia, candidato petista à Presidência da Câmara, que o leve à presença da presidente Dilma Rousseff para tratar do assunto, juntamente com dirigentes de outras centrais sindicais.
Entre a cruz e a espada, Lupi, que não é de dar murro em ponta de faca, foi pedir a cobertura de Palocci e surpreendeu ao desautorizar Mantega, que, se achando o rei da cocada preta, avisou ao Congresso que vetará (ele?) qualquer aumento acima dos R$ 540,00 previsto na medida provisória assinada ainda por Lula.
Temos aí mais uma crônica típica do mundo encantado dos podres poderes. É uma queda de braço sobre um assunto do interesse de milhões de trabalhadores. Que pareciam até ontem divididos entre a audiência da novela "Passione" e o desfecho da novela de Ronaldinho Gaucho, agora semideus da nação rubro-negra.
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