Autodeterminação

Frenesi inútil

 Há um debate sobre o Egito pós-revolucionário: se o país dos faraós vai transitar ou não para uma república islâmica. É um temor de quem apoia o movimento democrático mas teme que o desfecho derive para o fundamentalismo.

O debate é legítimo, porém inútil. O Egito será o que os egípcios desejarem que seja. É a beleza da autodeterminação. O Irã tem todo o
direito de ser uma república islâmica, assim como Israel é livre para declarar-se um estado judeu. E assim por diante.

A autodeterminação é um conceito radical. Uma nação define-se segundo a vontade de seu povo, mesmo que o desejo venha mediado pelo sistema político. E cada povo/nação responde pelas escolhas que faz ao configurar o Estado.

Em Kosovo e na Bósnia, por exemplo, a assim chamada comunidade internacional reconheceu plenamente legítimos os impulsos de
autodeterminação baseados na origem étnico-religiosa. Aliás, foi assim em toda a antiga Iugoslávia.

E o conceito tampouco se prende a critérios de anterioridade. Os brasileiros, maciçamente brancos ou negros, ou resultado da mistura desses dois vetores, autodeterminam-se num território que até há pouco era propriedade de povos indígenas.

O leitor aqui pode questionar o "pouco", mas daí aparece um problema insolúvel. Quem tem legitimidade para definir quão antiga
deve ser uma remoção populacional para adquirir plena legitimidade?

Aliás, para usar um expediente retórico do ex-presidente recém saído, "que moral" temos os brasileiros para dar lições a quem quer que seja se nossa nacionalidade está erguida sobre a expulsão e o extermínio da população nativa?

É um debate sempre complexo, que só encontra saída quando se respeita radicalmente o princípio da autodeterminação. Cujo corolário também é óbvio: cada povo deve cuidar de ter força suficiente para garantir a permanência de seus direitos nacionais.

Portanto, o Egito será o que seu povo desejar que seja, e o país responderá pelas escolhas. Há um frenesi para circunscrever de fora o processo político ali e em todo o mundo árabe, mas, de novo, será inútil.

O desenho institucional final da revolução egípcia vai ser dado pelas forças políticas com capacidade de estabilizar o país e gerar alguma paz e algum bem estar para o povo. É o óbvio, mas não custa repisar.

O Egito foi uma das nações árabes a experimentar em meados do século passado a descolonização. Ela veio impulsionada por militares nacionalistas e vagamente socialistas, em áreas entregues a famílias reais pelos vencedores britânicos e franceses da Primeira Guerra Mundial onde antes havia prevalecido o derrotado Império Otomano (hoje Turquia).

A receita nacionalista, socialista e terceiro-mundista teve o apogeu nos anos 60 e 70 do século passado, e depois caminhou para a
esclerose. Nessa degeneração os líderes, em vez de conduzirem os povos para a democracia, reinventaram-se como caricaturas das monarquias que haviam derrubado.

E quando vieram agora as dificuldades econômicas e o esgotamento político, encontraram sistemas sem elasticidade suficiente para dar vazão ao desejo de mudança.

O Ocidente está preocupado com os rumos da revolução árabe. Certo faz Barack Obama ao não opor a força dos Estados Unidos ao movimento. Nada está garantido, mas abre-se a possibilidade de diálogo com a nova ordem.

Esta onda revolucionária árabe pode igualmente degenerar, sem alcançar a democracia? É uma possibilidade. Sempre há a hipótese
de os regimes nascentes, espremidos pela realidade da vida e pela frustração das massas, recorrerem ao escapismo da guerra. E aí haverá guerra.

É como caminha a História. O que não tem condição é o Ocidente imaginar que o progresso e a estabilidade globais podem ficar na
dependência de milhões e milhões de árabes aceitarem indefinida e passivamente a desesperança econômica e a opressão política.


Nenhum comentário:

Postar um comentário