Desde a eleição, nota-se um desconforto no ambiente. O incômodo é pela emergência de certa pauta conservadora, cujo aríete foi o debate ano passado sobre o aborto, na campanha presidencial.
O tema veio à rinha por iniciativa político-eleitoral do governo, quando assinou o decreto com a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3). Havia também uma entrevista pretérita da candidata Dilma Rousseff defendendo a descriminalização.
As coisas juntaram-se, como era previsível, e tiveram um efeito. A ação de igrejas potencializou a insatisfação (ou a dúvida), levou no primeiro turno votos principalmente para Marina Silva e ajudou um pouco a carregar José Serra para o segundo turno.
Aí veio o recuo. E Dilma comprometeu-se a não impulsionar no Congresso a revisão da lei. Estancado o vazamento, o assunto deixou de ter valor.
Mas deixou também cicatrizes sensíveis. E a valentia que faltou aos valentes para encampar militantemente a tese durante a campanha eleitoral reapareceu depois da eleição.
Tipo o sujeito cujo time perde o jogo e fica resmungando diante do videoteipe, na esperança de mudar o resultado.
Existe na política brasileira uma esperteza manjada. Antes do voto na urna, adular o eleitor comum. Depois, bater continência para uma certa opinião pública. Afinal, outra eleição só daqui a quatro anos, não é?
A presença da agenda conservadora soa também como o visitante não convidado que incomoda na festa.
De duas décadas para cá, petistas e tucanos decidiram que têm o monopólio não apenas da política brasileira mas também do poder de decidir que assuntos devem ser discutidos e quais não.
Um de cada vez, governam gostosamente com apoio do que, nas rodinhas de bem-pensantes, gostam de chamar de "atraso". Não sem lamentar que tenham de fazer isso.
Propiciaram inclusive o surgimento de uma safra sebastianista, ocupada full-time em cantar a volta dos tempos quando ambos simbolizavam a "ética" e a "renovação".
Imaginam que o debate na sociedade pode ser contingenciado como, por exemplo, o orçamento. E executado só quando convém. Assim, a legalização do aborto é pauta legítima se, e quando, proposta por quem é a favor. Mas ilegítima quando, e se, impulsionada por quem é contra.
Agora, para desgosto, uma pesquisa do canal de internet G1 entre parlamentares aponta que a agenda conservadora tem apoio majoritário. Confirma o verificado na campanha eleitoral. Verificação que também aparece em qualquer levantamento popular dos temas.
Talvez seja hora de parar com o cinismo e com a esperteza, de debater os assuntos de frente, não com resmungos em rodinhas ou nichos. Sem preconceitos ou interdições. E que cada um se exponha com suas ideias. E pague o preço por elas.
A presidente da República, pelo jeito, decidiu que o preço estava alto demais e mandou para casa o assessor que defendeu o fim das penas de prisão para pequenos traficantes.
Ainda que corra outra coisa. Ser surpreendida pela declaração incomodou mais que o conteúdo. Mas o resultado final foi a exoneração.
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