Franz Liszt

Quatro lançamentos internacionais mergulham na vida e na obra de Franz Liszt, dando início às comemorações dos 200 anos de nascimento do artista, uma autêntica celebridade do século 19

Laszlo Balogh/Reuters
Laszlo Balogh/Reuters

João Marcos Coelho – O Estado de S.Paulo

Qual Franz Liszt vamos comemorar em 2011, em tributo aos 200 anos de seu nascimento?
* O pianista, virtuose diabólico, que fez mais de 700 transcrições, arranjos e paráfrases, inventou a fórmula do recital, que, como uma atualíssima “balada”, seduzia adolescentes e sobretudo o público feminino, a ponto de elas fazerem pulseiras com as cordas arrebentadas do seu piano?
* O maior Dom Juan europeu de seu tempo, que distribuía rosas vermelhas às mulheres das primeiras filas em seus recitais e roubou literalmente Marie D”Agoult de seu conde, amasiando-se com ela por uma década e mesmo assim conseguiu ser aceito pelo “grand monde”?
* O formidável maestro que por uma década transformou Weimar na Meca da música nova, apoiando os jovens compositores ainda sem espaço, como Richard Wagner?
* O dublê de escritor e crítico que escreveu tanto quanto Schumann e Berlioz, tinha aguda consciência social e ajudou financeiramente dezenas de novatos na música?
* Ou o abade de seus últimos 21 anos de vida, compondo música religiosa, que tentou de todas as maneiras casar-se com sua segunda paixão fulminante, a princesa russa Carolyne, e jamais recebeu consentimento do Vaticano? O mesmo Vaticano que recebeu com pompas o velho músico, porque o papa adorava ouvi-lo improvisar sobre prelúdios e fugas de Bach na Capela Sistina, ignorando que, ao chegar em casa, o abade entregava-se ao proibidíssimo absinto, o LSD do século 19?
Modernamente, nesses anos festivos, as orquestras limitam-se a repetir os dois concertos para piano, a portentosa sonata em si menor, uma missa, um ou outro poema sinfônico de Liszt. E muita música para piano, claro. É pouco, bem pouco diante da formidável diversidade das mais de 1.400 obras do mestre. Um retrato distante de sua real fisionomia, radical e complexa, protótipo do compositor-pianista romântico do século 19. Onde ficam duas obras-primas românticas incontestáveis como as sinfonias Dante e Fausto? Ou os ainda menos conhecidos 70 lieder (canções para voz e piano), nos quais há um punhado capaz de rivalizar com Schubert ou Schumann? E a música coral-sinfônica religiosa, os oratórios Christus ou A Lenda de Santa Elisabeth, as missas e salmos? Valeria um olhar mais atento sobre seus 13 poemas sinfônicos, gênero “inventado” para romper os limites da sinfonia.
Mas, se a vida musical teima em repetir as mesmas obras, ao menos a pesquisa musical parece mais fértil e diversificada. Um punhado de livros publicados nos últimos meses no mercado internacional trata de devolver-lhe sua real importância.
Quando se afirmou como o “Paganini do piano”, na Paris dos anos 1830, Liszt operou um milagre: transferiu para a música instrumental o grande público então cativo da ópera italiana. Em Liszt – Virtuose Subversif (Symétrie, 42,75 na Amazon; os preços citados serão deste site), o pesquisador francês Bruno Moysan diz que Liszt negociou com seu público um tênue equilíbrio entre o virtuosismo e a qualidade musical, para conquistá-lo. Sua tese é de que Liszt usou as fantasias (paráfrases, arranjos e transcrições) das árias mais populares das óperas de seu tempo para transferir o magnetismo delas à música instrumental. Aos 17 anos, recém-chegado, Liszt participou de uma vida musical que acontecia nos ricos salões parisienses; quando partiu para conquistar o mundo, em 1839, fazendo por quase uma década a inacreditável média anual de 100 recitais, já transferira a música instrumental dos salões para as salas de concerto – com ingressos pagos e casa cheia. A Lisztomania (1975), seu retrato pop no filme de Ken Russell , mostra bem esse raro fenômeno de massa.
Outro pesquisador francês, Alain Galliari, abandona o que chama de “lado satânico de Liszt” para mergulhar em sua religiosidade. Liszt et L”Espérance du Bon Larron (Fayard, 20,90) transforma o compositor numa espécie de filho pródigo, que na meninice foi católico e, depois de uma vida devassa, arrependeu-se. Como o bom ladrão que dá um voto de confiança a Jesus, gostaria de também receber em troca a promessa de Cristo (”hoje mesmo estarás comigo no Paraíso”). Galliari faz um espelho religioso do derradeiro poema sinfônico de Liszt, Do Berço ao Túmulo, sua autobiografia sonora, composta em 1882, quatro anos antes de sua morte.
Dois outros livros mergulham mais diretamente na música de Liszt, demonstrando ao mesmo tempo sua originalidade e seu “dardo” futurista: “Minha única ambição como músico era e será lançar meu dardo nos espaços indefinidos do futuro desde que ele não caia de novo na terra, o resto não importa”, disse ele.
Em La Musique de Liszt et Les Arts Visuels ( 42,75), Laurence le Diagon-Jacquin parte de uma frase do compositor para construir um livro rigoroso. “O sentimento e a reflexão me convenceram da relação oculta que une as obras de gênio. Rafael e Michelangelo me fizeram compreender melhor Mozart e Beethoven.” De fato, sua ligação com as artes visuais é tão forte quanto com a literatura. Apoiada na teoria tripartite de Erwin Panofsky para a análise das artes visuais – primária, ou natural, que ele chama de “motivo”; secundária, ou convencional, em que o motivo se relaciona com um tema ou conceito; e o significado intrínseco ou iconologia -, Laurence analisa obras como Sposalizio, baseada na tela de Rafael, Il Pensieroso e La Notte, baseados em Michelangelo, A Batalha dos Hunos, segundo tela de Kalbach, e o poema sinfônico Orfeu, inspirado por um vaso etrusco do Louvre.
A lição de Laurence é que Liszt é muito melhor do que suspeitam os bem-pensantes de hoje, atentos apenas ao aspecto circense de seu pianismo. E, por falar em pianismo, Liszt não foi só o diabólico virtuose superstar, como quer o senso comum, mas o maior pedagogo do instrumento no século 19. Basta ler The Piano Master Classes of Franz Liszt, 1884-1886: Diary Notes of August Göllerich (Indiana University Press, US$ 21,70), que resgata suas derradeiras aulas. Ao longo da vida, teve mais de 400 alunos – e jamais cobrou um tostão deles.
Todo pianista, nos últimos 180 anos, deve a Liszt a essência de sua arte. Robert Schumann detectou isso ao escrever que “não basta ouvi-lo, é preciso também vê-lo: Liszt não poderia tocar nos bastidores, porque dessa forma se perderia grande parte de sua poesia”. Ou seja, sem deixar de apontar seu “dardo” criativo para o futuro, Liszt transformou a música em espetáculo. Coisa de gênio.
JOÃO MARCOS COELHO É JORNALISTA E CRÍTICO MUSICAL, AUTOR DE NO CALOR DA HORA (ALGOL)

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