[...] Não precisa dizer mais nada
"A fúria de um longo adeus"
por Pepe Escobar
ilustrações por Carlos Clemen
"Furor, furor, contra a morte da luz"
— Dylan Thomas
No princípio, o rock foi um instante. Mágico instante. Em condições ideais, a brevidade seria fundamental para sua glória. Na Inglaterra, a cultura mod também foi um princípio. Virtudes similares: violentas demonstrações de alegria desenfreada por jovens e afluentes desordeiros (de Vespa, chapeuzinho, paletó de lapela fina e gravatinha). O escândalo pelo escândalo, o gasto sem culpa.
Mas o instante se expandiu. A anarquia no sábado à noite tornou-se uma paixão sete dias por semana. Inevitavelmente, rock e mod tornaram-se instituições, contradições vivas, verdade/ficção. Além do gozo, o rock virou forma de arte. Além do excesso, o mod se tornou um estilo de vida.
A história deste paradoxo é a história de The Who, a mítica "outra melhor banda de rock do mundo", junto aos Stones. Nascida em um pobre subúrbio londrino, popularizando-se com a dança dos sonhos nos anos 60, o Who é a banda que se recusa a morrer antes de envelhecer.
Keith Moon, rebelde sem causa, morreu há quatro anos, de uma overdose de pílulas antialcoólicas. Mas a banda continuou. Pete Townshend sufocou-se em uma noite de álcool, drogas e vazio na alma antes de voltar ao corpo-a-corpo com a raiva e a dúvida ("Sempre estive aqui, no silêncio, mas nunca sob seus olhos / Misture seu amor com alguma sabedoria / e você me verá" em "I Am An Animal"). Há dois meses, Roger Daltrey anunciou: The Who vai fazer sua última excursão, depois de 18 anos juntos. Claro, ainda não era o fim. Na era pós-60, só pode haver paródias, comédias. Daltrey: "Bem, para nós esta é a primeira excursão de despedida".
Frenesi nos EUA, de público e mídia. A primeira parte da excursão já acabou, com um concerto no último dia 29, em Los Angeles, para 95 mil pessoas. Só em Nova York, o Who tocou para quase 300 mil, em quatro shows. Até agora, o grupo arrecadou quase 20 milhões de dólares, em ingressos e vendas de acessórios variados. A segunda parte da excursão começa no final deste mês, seguida pelo lançamento de uma cadeia de produtos interligados: videocassete, videodisco, especial para a TV a cabo, para TV comercial, álbum ao vivo. Já chegou às livrarias americanas "The Who: Maximum R&B", biografia do grupo por um senhor muito bem informado, Richard Barnes, inventor do próprio nome "The Who. "It's Hard", o último LP, lançado há dois meses nos EUA e esta semana no Brasil, é seu melhor disco desde "Who's Next". Ou seja, não pretendem morrer tão cedo.
TROVÕES APOCALÍPTICOSSeparadamente, os quatro membros do Who não seriam nada: não há um símbolo sexual. Juntos, no palco, sempre foram o absurdo total. O baterista, com cara de garoto satânico, jogava as baquetas para o ar, ignorava os tempos da batida e de repente explodia em fúria, encaixando trovões em espaços aparentemente reservados para solos de guitarra. O guitarrista — alto, magro, com nariz de águia — pulava como um macaco movido a anfetamina, criando ritmos espasmódicos, movendo seus braços como um moinho de vento, arranhando os dedos em poderosos acordes, atacando os amplificadores com sua Gibson para obter uivos de feedback que faziam tremer os dentes. O vocalista, com a postura de um provocador profissional, girava seu microfone como um laço, marchava no mesmo lugar, dançava passos ridículos, gritava, ameaçava a platéia, cômico/agressivo. O baixista ficava impassível, como se já tivesse visto coisa melhor. O som era o caos, anarquia, puro ruído — definição de um certo tipo de rock dos anos 60. Baladas, nunca. Nesta volátil era pop, o Who teria durado o tempo de um compacto simples. No entanto, terminaram ultrapassando todas as outras bandas de sua geração.
Influências: Jimmy Reed, Eddie Cochran, o frenesi dançante de James Brown, um pouco de surf music. Mas o Who não era apenas outra banda inglesa de rhythm 'n' blues, e sim "máximo R&B" (como o título da biografia): soul music em tumulto absoluto, tocada sem o perfeccionismo dos Stones, ou a ironia dos Kinks, mas com a garra de garotos selvagens de fundo de garagem. Não chegavam ao palco para divertir ou representar, mas para ditar, comandar, dominar. Quando Pete Townshend enfiou sua guitarra no teto baixo de um pub de Brighton, reduzindo-a a cacos, explodia a voz da frustração ("Eu quebrava guitarras porque não conseguia tocá-las como queria"). A destruição passava a ser um componente natural do show. Mas esta é apenas uma parte da história. O que os mods — e o Who — tentavam expressar ia diretamente contra o blues e suas ramificações. O tema do pop negro é o encontro da dignidade em uma vida de trabalho e dor. O tema do rock gira em torno de ignorar e obliterar estas pequenas derrotas. Quando os cantores de soul exprimem suas frustrações, isso é entendido como um desabafo momentâneo. Fora do palco, é outra coisa. Townshend, Daltrey, Entwistle e Moon, no palco e na vida, sempre conservaram a mesma raiva.
"My Generation" não virou hino por acaso. Era o grande momento, 1965, capturado com o máximo de furor e paixão, uma surpresa eternamente renovada ("As pessoas tentam nos arrasar / só porque andamos por aí / o que elas fazem é terrivelmente frio / espero morrer antes de envelhecer"). Mas na época o rock já não era uma coisa de momento. Fazer uma canção de tão longo alcance, personalizando um descontentamento geral, era cair no risco de ser levado a sério — antes de envelhecer.
ARTE E ESPETÁCULO
Elvis tornou-se um fora-da-lei por acidente. Mas quando Lennon, Keith Richards e Pete Townshend pegaram suas guitarras, no início dos anos 60, as consequências do fato de tocar acordes rebeldes já eram bem conhecidas. Mais do que qualquer conjunto de circunstâncias sociais — inclusive drogas —, foi isso que distinguiu o novo despertar do rock do primeiro — nos anos 50 — e criou uma autoconsciente "forma de arte" da série inicial de momentos vagamente interligados.
Elvis tornou-se um fora-da-lei por acidente. Mas quando Lennon, Keith Richards e Pete Townshend pegaram suas guitarras, no início dos anos 60, as consequências do fato de tocar acordes rebeldes já eram bem conhecidas. Mais do que qualquer conjunto de circunstâncias sociais — inclusive drogas —, foi isso que distinguiu o novo despertar do rock do primeiro — nos anos 50 — e criou uma autoconsciente "forma de arte" da série inicial de momentos vagamente interligados.
O Who sentiu este problema em um grau extremo, como nenhuma outra banda. Sabiam que o rock primitivo era sensacional justamente por sua espontaneidade: uma "naiveté" que o rock 'n' roller dos anos 60 não tinha. Afetado pelo jogo das contradições, Townshend começou um largo e doloroso processo, onde alternava pomposos discursos sobre a importância artística do rock com divagações autodestrutivas sobre a trivialidade de todo o fenômeno. E com isso chegava a uma das mais pertinentes perguntas dos anos 60: em que medida uma banda de rock pode levar-se a sério?
As respostas, é claro, variaram de momento a momento, mas a mais marcante foi sem dúvida "Tommy", a grande armadilha, vagando entre pequenas genialidades e pura farsa, mensagens espirituais e enganação bem embalada. A melhor música era sobre fliperama, a melhor passagem um guru falando que todo poder vem das massas. A história era pegajosa, tola, a maior parte das músicas absolutamente dispensável.
Como o rock quando foi aceito por professores e clérigos, como o mod quando se transformou em gente com atitudes erradas comprando adereços corretos, o Who se encontrava frente a uma situação que contradizia sua própria essência. A maior parte da glória do grupo provinha do furor, da raiva, da hostilidade, e outra parte substancial da frustração de não conseguir atingir um grande público. Mas Townshend nunca tinha escolhido o caminho mais fácil — nunca tinha escrito um "As Tears Go By". Não se deixava cooptar, evitava a traição ("É preciso ter muita raiva para continuar honesto"). Em diversos sentidos, "Tommy", um projeto concebido quase por acaso, com inocência, foi muito pior do que uma traição.
O que o público achava de tudo isso? Adorava. O Who sempre teve um público paradoxal — justamente o que necessitava: garotos com apenas um pé nas ruas, que simplesmente gostavam do flash, da violência e do potencial de discórdia celebrado pelo grupo, e intelectuais com um pé no conhecimento que idolatravam as declarações artísticas como autênticas genuflexões à Musa. Nenhum lado podia ignorar o outro, porque os conceitos mais etéreos de Townshend inevitavelmente colidiam com a tensão e o "drive" da música, e com as palhaçadas de Keith Moon.
CONFLITO DE GERAÇÕESO resto da carreira do Who transcorreu sob o signo de "Tommy". Tinha de ser criado algo muito grandioso, ou muito trivial, para que a "ópera" fosse finalmente esquecida. Mas vieram as versões da Sinfônica de Londres, do balé canadense, para sintetizador, para metais, o filme de Ken Russell. No meio destas catástrofes artísticas, lances de genialidade: "Who's Next" (1971), um dos grandes álbuns da história do rock. Para muitos, seria um último suspiro. Afinal, o Who vinha lutando contra a maturidade desde 1966, com "The Kids Are Alright". Veio "Quadrophenia" (1973), um confuso conto de dupla esquizofrenia, tentando recapitular as glórias perdidas do mod. Mas seu efeito foi retardado: apenas em 79, com o lançamento do filme, fascinante, e a remixagem da trilha sonora, foi reconhecido como uma das mais inteligentes peças conceituais já produzidas no universo rock.
Townshend e Daltrey, constante pólo de atração-repulsão, ambos líderes do grupo, passaram a brigar em público. Mesmo assim, ainda havia tempo para produzirem momentos de fúria em "The Who By Numbers", onde Townshend parece descascar todas as feridas acumuladas e expô-las ao rosto dos ouvintes: fascinante mas passível de causar mal estar. O tema básico, claro, era a passagem do tempo, o abandono do ringue. "Who Are You", o álbum seguinte, falava até de reconciliação. Veio o limbo. Keith Moon morreu, só se falava na dissolução do conjunto, Daltrey foi fazer cinema, Townshend entrou em espiral visando o abismo.
Voltaram em 1980. Cada um tinha seus projetos-solo, a vida rearranjada. No palco, estavam mais formais, menos espontâneos, porém mantinham um entusiasmo comparável ao de bandas pós-punk de garotos de 18 anos. Seria uma blasfêmia continuar sem Keith Moon? Seria uma blasfêmia continuar depois de "My Generation", quando fizeram a única afirmação que qualquer banda de rock jamais precisou fazer?
"It's Hard", este último disco, é a resposta. O desejo não satisfeito de Townshend — morrer antes de envelhecer — engendrou nova peste: o clássico rebelde britânico, o homem cheio de raiva que não acredita em revolução, tem uma coragem renovada para atuar as grandes questões morais e sociais da época no fundo de sua alma, e continuar transformando em arte suas paixões, dúvidas, contradições e epifanias. A chave do álbum é "I've Know No War", um hino para nossa geração, assim como "Won't Get Fooled Again" há uma década: "Guerra — não conheci nenhuma guerra / Nunca vou conhecer a guerra / e se um dia conhecê-la / o lampejo será efêmero / bola de fogo no céu". E em "Cry If You Want", tão vibrante quanto a antológica "I Can See For Miles", esta mesma geração vê o epitáfio de seu arrogante e autodepreciado idealismo: "Houve um tempo em que era apenas inocência / idéias imprudentes e insolência / mas você nunca vai se safar / com as coisas que anda dizendo agora". Cada verso é uma facada na carne, com alusões a Beatles, Dylan e a longa cooptação pós-68; afirma-se taxativamente, o ocaso de qualquer autocomplacência: "Você não se envergonha de toda a amargura que carrega dentro de si? / Ou será que seu ego salva sua cara — Eu tentei, bem que tentei / Agora você sabe que seus líderes mentiram / mas com isso você para de agir como um velhaco? / Ou você ainda é um garoto que chorava / lágrimas que com certeza secaram há muito tempo?". A banda produz os sons que envolvem estas palavras amargas como se sua própria vida dependesse do resultado da performance.
Daltrey dizia, há alguns meses: "Nós, até hoje, só tentamos falar para a geração com que crescemos, a única da qual conhecemos os caminhos". Neste sentido, o Who só poderia recusar a definitiva dissolução. Continua tentando trazer o inefável para o tempo e o espaço. Vai suspender as apresentações ao vivo. Mas persistem as idéias, em disco, em alguma faixa brilhante de um álbum-solo. O rock é um rio corrente. Hoje, há outros heróis forjando novas linguagens dentro de suas almas para uma garotada muito atenta — Elvis Costello, The Jam, The Clash. Mas para a geração contemporânea do Who, o grupo mais que nunca continua fabricando sentido. Provam até as últimas consequências que rock não é apenas algo que se ouve quando se cresce; é uma tocha flamejante que nos ajuda, indistintamente, continuamente, a crescer e formar nosso tempo. Tempo de liquidação — perspectiva fascinante, período em que cada um, ante a libertação finalmente alcançada, estará feliz de ter atrás de si as torturas da esperança e da espera.
"Nós criamos uma forma de arte. Ela aconteceu em volta de nós. Aconteceu porque era necessária e porque todas as outras formas de arte não fazem mais efeito, a não ser o rock". (Pete Townshend)
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