O estoque de utopias
Será uma injustiça concluir que o governo bate o bumbo do Brasil sem Miséria só para garantir um refresco no ambiente político. O programa é compromisso de campanha da candidata Dilma Rousseff e recebeu o sinal de largada lá no comecinho da gestão.
Pela memória, foi a primeira vez de auxiliares da chefe fotografados todos diante de terminais de computador. Era a visão de um governo tecnocrático, pouco permeável à politicagem, de reduzida tolerância ao sistema de trocas congressuais.
A observação mostra que em boa medida essa ideia -ou ilusão- ficou para trás. O debate já não é mais sobre se vai entregar anéis, mas quantos entregará.
Vou fugir um pouco das circunstâncias -essas variáveis que competem diariamente pela atenção- e concentrar no essencial. O Brasil sem Miséria é uma bela iniciativa.
Algo utópica, mas sem utopia ninguém vai longe.
Não sei se o governo Dilma conseguirá acabar com a miséria, e é arbitrário restringir o universo dos miseráveis a quem ganha menos de R$ 70 por mês. Mas é importantíssimo que o governo se dedique a tentar eliminar a pobreza extrema.
É um pouco como a objetividade jornalística. Alcancá-la completamente é impossível, buscá-la é essencial.
Alguns dados atraem atenção. O governo definiu que o Brasil tem cerca de 16 milhões de miseráveis. É ainda muito, em números absolutos.
Mas é também animador notar que o Brasil, agora oficialmente, tem menos de 10% nessa triste condição. É sinal de que nosso desenvolvimento econômico e nossas políticas sociais, vindas da Revolução de 30 e aperfeiçoadas continuamente, produziram neste quase um século um país melhor.
Eis porque é sempre útil relativizar os argumentos corriqueiros da luta política. Se a realidade nunca é tão bonita quanto diz o governo de plantão, tampouco é tão feia quando faz crer a oposição do momento.
Sobre o programa, ele parte de um conceito bom. O Estado procurará ser mais ativo, ir atrás dos muito pobres para oferecer não só ajuda, também oportunidades.
É positivo, desde que uma coisa não condicione a outra. Prefiro concordar com o ex-ministro Patrus Ananias, para quem a obsessão com as condicionantes, as chamadas "portas de saída" dos programas sociais, embute preconceito, má vontade com os muito pobres.
É confortável para os não tão pobres imaginar que o beneficiário do programa social vai acabar se acomodando. Um elitismo "limpinho".
Se mesmo quem já tem muito quer sempre mais, não é um tantinho de dinheiro vindo do governo que vai fazer o pobre se conformar com a condição.
Mães e pais querem os filhos progredindo. Vale para ricos e pobres. Mais que isso, os jovens desejam muito eles próprios avançar.
Em vez de o Estado se preocupar em excesso com a contrapartida da ajudazinha oferecida, deve ocupar-se em fazer ela chegar efetivamente a quem necessita.
Se o novo programa fizer isso, parabéns.
Somos um país de quase 200 milhões. Um potencial invejável e invejado. Onde estão os principais gargalos? Nos remanescentes de pobreza e na precária educação oferecida em nosso ensino público fundamental e médio.
Por falar em utopias, agora que a presidente resolveu colocar uma delas para rodar talvez seja hora de olhar com carinho para outra. De buscar acabar com a vergonhosa má qualidade no ensino público oferecido aos filhos dos pobres, na comparação com o particular proporcionado aos dos ricos e da classe média.
Para isso, a presidente precisaria enfrentar as corporações autocentradas que monopolizam a agenda educacional e jogam para as calendas o dever de ensinar bem aos meninos e às meninas. Seria uma batalha e tanto.
Atingiria bem mais gente do que o público-alvo do Brasil sem Miséria, e certamente faria emergir resistências bem mais ferozes, da turma que está na zona de conforto com o status quo.
Não traria só aplausos. Ao atacar nossa próspera indústria de mediocridade educacional, precisaria confrontar os beneficiários.
Será que o estoque de utopias de Dilma e do governo dela chega a tanto?
Nenhum comentário:
Postar um comentário