DE COMO NOS LIVRAMOS DE UM DITADOR CIVIL
De vez em quando é preciso mergulhar no passado, na tentativa de iluminar o presente, mesmo sem a pretensão de desvendar o futuro. Porque o passado, alguém já escreveu, não costuma mostrar o que fazer, mas aponta sempre o que devemos evitar.Cinqüenta anos atrás o então presidente Jânio Quadros empolgava o país com iniciativas de toda ordem. Inaugurara uma política externa dita independente, desvinculando o Brasil do alinhamento automático com as diretrizes dos Estados Unidos. Rejeitara qualquer sanção contra Cuba, tendo até visitado Havana durante a campanha, prometendo a Fidel Castro manter a promessa de jamais admitir interferência nos negócios internos de outros países. Dera um susto em Portugal determinando que a partir de sua posse reservávamos o direito de não votar, nas Nações Unidas, favoravelmente à colonização de Angola e Moçambique. Restabelecera relações diplomáticas com a União Soviética, cortadas desde 1946, e inserira o Brasil no Terceiro Mundo, apoiando as ações de Tito, na Iugoslávia, Nehru, na Índia, e Nasser, no Egito.
No plano interno, adotara uma política econômica recessiva, desvalorizando o cruzeiro diante do dólar, favorecendo as multinacionais e cortando fundo no orçamento. Interrompeu a estratégia desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Também proibiu desfiles de maiôs, nas disputas de Miss Brasil, brigas de galo, em todo o território nacional, e corridas de cavalo durante a semana. Exigiu do funcionalismo público que trabalhasse em dois horários diários, e suspendeu por três dias as transmissões da Rádio Jornal do Brasil. Fulminou seus ministros com bilhetinhos que tornaram a “Hora do Brasil” o programa mais ouvido no rádio, impondo comissões de inquérito para investigar montes de denuncias de corrupção. Botou o Exército na rua, em Recife, com tanques e tropa embalada para reprimir estudantes revoltados com a proibição, pelo reitor da Universidade de Pernambuco, de permitir palestra da mãe de Che Guevara em suas instalações.
Em suma, era uma salada mista onde o presidente ora voltava-se para um lado, ora para outro. No Congresso, desprezava os grandes partidos, como PSD, UDN e PTB. Recebeu um aviso do Senado, que deixou de aprovar a indicação de José Ermírio de Moraes para embaixador do Brasil em Bonn, ainda que insistisse em nomear embaixadores fora da carreira. Rubem Braga para o Marrocos, por exemplo. Quando vagou a embaixada na Nigéria, indicou um oficial de seu gabinete, Raimundo Souza Dantas, jornalista de cor negra, levando Carlos Lacerda a indagar se nomearia um lourinho para a Suécia, quando vagasse a embaixada naquele país.
Em vez de ganhar o apoio de cada segmento ou categoria, por atender suas inclinações, Jânio obtinha o resultado oposto: os setores contrariados uniam-se contra ele. Talvez já tivesse a estratégia definida antes mesmo de assumir, pois como candidato renunciara uma vez, gerando a substituição de seu candidato a vice-presidente. Quando governador de São Paulo, duas vezes também renunciara, sendo contido por auxiliares. Admirador de Fidel Castro e de Gamal Abdel Nasser, prestara atenção na renúncia de ambos aos governos de Cuba e do Egito, meros golpes para retornarem logo depois nos braços do povo e como ditadores.
Assim, e diante de resistências parlamentares frágeis e de uma imprensa que o adulava quando conservador e o criticava quando voltado para a esquerda, imaginou passar o apagador no quadro negro e inaugurar um novo regime político, onde o Congresso não o incomodasse e a Constituição não o contivesse. Uma falsa renúncia, pensou, levaria ao paroxismo as massas e a classe média que o haviam elegido por seis milhões de votos, fazendo-o retornar em seguida com poderes especiais. Traduzindo, como ditador. Dera certo em Havana, dera certo no Cairo, por que não em Brasília? Para ele, tão embriagado com a vitória eleitoral, as forças populares se movimentariam espontaneamente, em especial se alegasse a pressão de forças ocultas e terríveis, ligadas ao capital internacional. O problema é que depois se verificou terem nomes, essas forças: Black and White, Johnny Walker e Queen Anne...
Mas Jânio programou o golpe em detalhes. Obrigou o vice-presidente João Goulart a transformar em oficial uma viagem particular à China Comunista, onde conforme o mundo ocidental se comiam criancinhas no café da manhã e velhinhas no jantar. Deixou para anunciar sua renúncia a 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, quando Jango partia de Cantão para Cingapura. Uma sexta-feira, impossível de localizar o substituto e, mais ainda, dia em que até hoje fica difícil encontrar deputados e senadores em Brasília. A renúncia, entregue ao Congresso depois das três da tarde, geraria o caos no país inteiro, dando tempo a que as forças populares, até segunda-feira, o reinvestissem no governo com poderes absolutos. Imaginou que essas coisas acontecessem de graça, sem preparação, tanto que recusou a proposta dos ministros militares, na manhã da renúncia, de fecharem o Congresso e o confirmarem no poder. Não queria dever nada a ninguém, para não ser tutelado, como teria sido naquela hipótese.
O resultado foi que naqueles dias os deuses estavam simpáticos ao Brasil, e boa parte dos parlamentares encontrava-se em Brasília, mesmo numa sexta-feira. Circulavam rumores de um golpe de estado, já que essas coisas jamais constituem segredo. Ainda mais porque o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, era adversário de Jânio e mandou fechar o aeroporto da capital federal. Ninguém sairia, deputados e senadores ouviram pelos alto-falantes que deveriam retornar ao Congresso. Quando anunciada a renuncia, que Jânio imaginava só ser apreciada na segunda-feira, ficou claro que o golpista havia sido péssimo aluno na Faculdade de Direito de São Paulo. Porque a renúncia é um ato unilateral que produz efeito assim que formalizada. Não tem que ser votada. Apenas conhecida.
Resultado, enquanto voava para São Paulo, ou lá se instalara na Base Aérea de Cumbica, para aguardar o caos e o seu retorno, Jânio ouviu pelo rádio que o Congresso havia tomado conhecimento de seu gesto e empossado o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, na presidência da República, tendo em vista a viagem do vice-presidente João Goulart ao exterior.
O resto fica para outro dia, nessas lembranças do que aconteceu 50 anos atrás, e que deveríamos lembrar, no mínimo para que não se repita, 50 anos depois. Para quem pensa que o mundo mudou, vale lembrar a máxima popular de nada de novo acontece sob o sol...