por Carlos Chagas


DE COMO NOS LIVRAMOS DE UM DITADOR CIVIL

De vez em quando é preciso mergulhar no  passado, na  tentativa de iluminar o presente, mesmo sem a pretensão de desvendar o futuro. Porque o passado,  alguém já escreveu, não costuma mostrar o que fazer, mas aponta sempre o que devemos evitar.

Cinqüenta anos atrás o então presidente Jânio Quadros empolgava o país com iniciativas de toda ordem. Inaugurara uma política externa dita independente, desvinculando o Brasil do alinhamento automático com as diretrizes dos Estados Unidos. Rejeitara qualquer sanção  contra Cuba, tendo até visitado Havana durante a  campanha, prometendo a Fidel Castro  manter a promessa de  jamais admitir interferência nos negócios internos de outros  países. Dera um susto em Portugal determinando  que a partir de sua posse reservávamos o  direito de não votar, nas Nações Unidas, favoravelmente à colonização de Angola e Moçambique. Restabelecera relações diplomáticas com a União Soviética, cortadas desde 1946,  e inserira o Brasil no Terceiro Mundo, apoiando as ações de  Tito, na Iugoslávia, Nehru, na Índia, e Nasser, no Egito.
No plano interno, adotara uma política econômica recessiva, desvalorizando o cruzeiro diante do dólar, favorecendo as multinacionais e cortando fundo no  orçamento.  Interrompeu  a estratégia desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Também proibiu  desfiles de maiôs, nas disputas de Miss Brasil, brigas de galo, em todo o território nacional,   e corridas de cavalo durante a semana. Exigiu  do funcionalismo público que trabalhasse em dois horários diários, e suspendeu por três dias as transmissões da Rádio Jornal do Brasil. Fulminou seus ministros com  bilhetinhos que tornaram a “Hora do Brasil” o programa  mais ouvido no rádio, impondo comissões de inquérito para investigar montes de denuncias de corrupção. Botou  o  Exército na rua, em  Recife, com tanques e tropa  embalada para  reprimir estudantes revoltados com a proibição, pelo reitor da  Universidade de Pernambuco, de permitir palestra da mãe de Che Guevara em suas instalações.
Em suma, era uma salada mista onde o presidente ora  voltava-se para um lado, ora para outro. No Congresso,  desprezava os grandes partidos,  como   PSD, UDN e PTB.  Recebeu um aviso do Senado, que deixou de aprovar a indicação de José Ermírio de Moraes para embaixador do  Brasil em Bonn, ainda que insistisse em nomear embaixadores fora  da carreira.  Rubem Braga para o Marrocos, por exemplo. Quando  vagou a embaixada na Nigéria, indicou um oficial de seu gabinete, Raimundo Souza  Dantas,  jornalista de cor negra, levando Carlos Lacerda a indagar se nomearia um lourinho  para a Suécia, quando vagasse a embaixada naquele   país.
Em vez de ganhar o apoio de cada segmento ou categoria,  por  atender suas inclinações, Jânio obtinha o resultado oposto:   os setores contrariados uniam-se contra ele. Talvez já   tivesse a estratégia definida antes mesmo de assumir, pois como candidato renunciara uma vez, gerando a substituição  de seu candidato a vice-presidente.  Quando governador de São  Paulo, duas vezes também renunciara, sendo contido por auxiliares. Admirador de Fidel Castro e de Gamal Abdel  Nasser, prestara  atenção na renúncia  de ambos aos governos de Cuba e do  Egito, meros golpes para   retornarem logo depois nos braços do  povo  e como  ditadores.
Assim, e diante de resistências parlamentares frágeis e de uma imprensa que o adulava quando conservador e o criticava quando voltado para a esquerda, imaginou passar o  apagador no quadro negro e inaugurar um novo regime político,   onde o Congresso não o incomodasse e  a Constituição não o  contivesse.  Uma falsa renúncia, pensou, levaria ao paroxismo as massas e a classe média que o haviam elegido por seis milhões de votos, fazendo-o retornar em seguida com   poderes especiais. Traduzindo,  como  ditador. Dera  certo  em Havana, dera  certo  no  Cairo, por que não em Brasília?  Para ele, tão embriagado com a vitória  eleitoral, as forças populares se movimentariam espontaneamente, em especial  se alegasse a pressão de forças ocultas e  terríveis, ligadas ao capital internacional. O problema é  que depois se verificou terem nomes,  essas forças: Black and White, Johnny Walker e  Queen Anne...
Mas Jânio  programou o golpe em detalhes.  Obrigou  o vice-presidente João Goulart a transformar em oficial  uma viagem particular à China Comunista, onde conforme o mundo ocidental se comiam criancinhas no café da manhã e velhinhas no jantar. Deixou para anunciar sua renúncia a 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado,  quando Jango partia  de Cantão para Cingapura. Uma sexta-feira, impossível de localizar o substituto e, mais ainda, dia em que até  hoje fica difícil encontrar deputados e senadores em Brasília. A renúncia, entregue ao  Congresso depois das três  da tarde, geraria o caos no país  inteiro, dando tempo  a que as forças populares, até segunda-feira,  o  reinvestissem no governo com poderes absolutos. Imaginou que essas coisas acontecessem de graça, sem  preparação, tanto que recusou a proposta   dos ministros militares, na manhã da renúncia, de fecharem o Congresso e o confirmarem no   poder. Não queria dever nada a ninguém, para não ser tutelado,  como teria sido  naquela hipótese.
O resultado foi que naqueles dias os deuses estavam simpáticos ao  Brasil, e boa parte dos parlamentares encontrava-se  em Brasília, mesmo numa  sexta-feira.   Circulavam rumores de um golpe  de estado, já que essas coisas jamais constituem segredo. Ainda mais porque o  presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, era adversário de Jânio e mandou fechar o aeroporto da  capital federal. Ninguém sairia, deputados e senadores ouviram pelos alto-falantes que  deveriam retornar ao Congresso.  Quando anunciada a renuncia, que Jânio imaginava só  ser apreciada na segunda-feira, ficou claro que o  golpista havia sido    péssimo  aluno na Faculdade de Direito de São Paulo. Porque a renúncia é um ato unilateral  que produz  efeito assim que  formalizada. Não tem que ser votada. Apenas conhecida.
Resultado, enquanto  voava para São Paulo, ou lá se instalara na Base Aérea  de Cumbica, para aguardar o caos e o seu retorno, Jânio  ouviu  pelo rádio que o Congresso havia tomado conhecimento de seu gesto e empossado o presidente da Câmara,  Ranieri Mazzilli,  na presidência da República, tendo em vista a viagem do vice-presidente João Goulart ao  exterior.
O  resto fica para outro dia, nessas lembranças do  que aconteceu 50  anos atrás, e que deveríamos  lembrar,  no mínimo para  que  não se repita,  50 anos depois.   Para quem pensa que o mundo mudou, vale lembrar a máxima   popular  de nada de novo acontece sob o sol...