O resgate da pequena Azra Gulzad Karaduman

 Estava ali, lendo as notícias sobre o recente terremoto que sacudiu a província de Van, na Turquia e o resgate da pequena Azra Gulzad Karaduman, de apenas 15 dias, bem como de sua mãe e avó. Uns dizem que foi um milagre de Deus. Enquanto isso morreram mais de quatrocentos habitantes da mesma província, entre crianças que nem Azra, jovens e idosos. Azra, que se trocarmos de lugar as duas últimas letras daria Azar, teve muita sorte, isso, sim. Confesso-me irreverente por conta das blasfêmias gratuitas quando escuto essa história de "livre arbítrio" para justificar crendices que beiram o fanatismo. Quando fazemos coisas erradas ou quando inocentes pagam com a vida a irresponsabilidade alheia dos impunes de plantão, a ladainha é a mesma. Uns apenas para o desgastado "Deus sabe o que faz" ou "Deus escreve certo por linhas tortas". Ainda dentro dos meus contextos de irreverência que norteia a minha descrença, ouso perguntar se essa coisa de livre arbítrio é somente dos humanos? No caso de Azra, por exemplo, por que somente ela foi salva com esse milagre? Livre arbítrio desse mesmo deus? Quais os critérios para que o milagre tenha acontecido? Um miserável qualquer dos confins do mundo ganha sozinho na loteria entre bilhões de possibilidades dele acertar os números. Milagre? Sorte? Escolha divina? Por favor, não me levem a mal essas mal traçadas irreverências porque elas não fazem apologia à descrença. De tanto ver grassar a violência, de tanto ver prosperar a impunidade, a cretinice, a desigualdade, pergunto onde estão os milagres que só acontecem entre os maus; os que prosperam com a infelicidade alheia, com os dízimos humildes dos que ainda são inocentes ou carentes demais para se deixarem levar por essas promessas imorais de que Deus só escuta quem se sacrifica por Ele. É bem provável que eu já tenha meu lugar garantido nas profundezas do inferno. Podem me deixar ficar bem passado ou até passar do ponto. Terei merecido se existir inferno, mas rezem muito, orem muito para eu não encontrar nenhum de vocês num lugar comum e perdido pelas vastidões incomensuráveis do desconhecido onde estaremos retornando ao pó de onde viemos. A Terra já foi um aglomerado de pó de estrelas que explodiram universo afora, há mais de 14 bilhões de anos. A Terra já foi uma imensa bola de fogo e a prova é tanta que mesmo tendo encolhido enquanto foi esfriando e assumindo formas e se enchendo de vida, ainda não ficou pronta. Aqui e ali essa mesma Terra, com mais de 4 bilhões de idade, ainda se espreguiça com violentos terremotos, se coça em suas acomodações tectônicas, regurgita em tornados e faz peraltices com furacões, tufões e outros que tais. A pequena turca, Azra, teve muita sorte. Por outro lado, muitos de seus primos, parentes e vizinhos, o maior azar. Talvez alguns deles tenham mesmo merecido morrer no cataclismo, mas outros nem tanto. De uma coisa estou convencido, não por conta do resgate de Azra, mas por todo um contexto e pelo meu livre arbítrio: decidi não comentar mais sobre o que dizem sobre esse assunto. Os que sofrem, os mais puros, os mais humildes precisam acreditar numa luz que os guie. Vamos chamar essa luz de fé, seja lá o que for. Que acreditem, como acreditaram nos políticos que elegeram. Decepções fazem parte da vida. Nem tudo acontece como a gente imagina e a maioria das decisões que tomamos as tomamos por livre arbítrio ou por puro acaso, ou porque fomos induzido a tomá-las. Assim é a vida e a vida não é um livre arbítrio. Desistir dela é cometer suicídio, é sentir medo e medo é uma forma de ter mais cautela. A pequena Azra não pediu para nascer e já que teve a sorte de escapar, vamos desejar a ela uma boa vida e que ela faça boas escolhas quando puder entender que teve essa sorte toda.

A. Capibaribe Neto


Nenhum comentário:

Postar um comentário