Ditadura: A verdade que precisa ser revelada e que pode influir no existencial das gerações hoje alienadas pelo sistema

No dia em que cruzei com um torturador, vi-me de volta aos porões da ditadura 34 anos depois
"No Brasil, pelo menos por enquanto, a ditadura venceu no propósito de fazer da tortura um tema de natureza pessoal do torturado. Uma questão individual e não um tema político de interesse de toda a sociedade".
Vladimir Saflate, professor e escritor
 
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Dilma numa auditoria militar após sessões de tortura.
  Os auditores milirares escondem o rosto.
Até onde ela pode
 conduzir a Comissão da Verdade?
 
Lembro-me como se fosse hoje: estava distraído à cata de uma maleta numa loja da Rua da Carioca quando uma estranha figura de pouco mais de um metro e sessenta se aproximou. Estava todo de branco, camisa de mangas compridas e uma espessa barba com que pretendia mascarar o rosto pinicado de protuberâncias avermelhadasOs óculos eram os mesmos de fundo de garrafa, que lhe valeram o apelido de "Doutor Silvana", entre nós, jovens vítimas de seu sadismo incontrolável. Pôs-se na minha frente, tentando repetir o terror d'outrora e me chamou pelo nome completo:

- Sim. Sou eu mesmo.

- Você sabe com quem está falando? - ensaiou um discreto relaxamento labial.

- Sei, sim, o Solimar.

De certa forma, ele desconcertou-se. Aquele março de 2003 distava 34 anos daqueles dias de horror, em que ele se destacava como o mais tenebroso dos torturadores do Cenimar, o serviço secreto da Marinha a que se incorporara, egresso do velho DOPS carioca, delegacia dedicada com zelo e afinco ao massacre diário de todo e qualquer suspeito de adversário da ditadura.

- Se você sabe que eu sou o Solimar, por que fala comigo?

- Porque não tenho alternativa.

Eu mesmo não saberia responder com a devida tranquilidade às perguntas daquele que durante muitos anos povoou meus pesadelos, predecessores da minha insônia de hoje.

O "doutor Cláudio", como se alcunhava entre os criminosos de uma repressão insana e impulsionada por um ódio nada profissional, já não era mais nada. Estava com aquela barba toda, a cabeleireira branca e um esparadrapo preso a uma das faces na faina de passar despercebido.

O carrasco arrogante de 1969 era em 2003 um homem medroso, que assimilara todas as paranóias de suas centenas de vítimas. Talvez, nem fosse de andar muito pela rua à luz do dia. Mas naquele instante defrontava-se com alguém que pusera várias vezes inteiramente despido no meio de outros comparsas, submetera a choques elétricos, à palmatória, ao "telefone" e ao "pau-de-arara", que humilhara por 15 dias seguidos, tentando suprimir-lhe qualquer resíduo de dignidade e auto-estima.
- Como o mundo é pequeno - comentei, contendo-me até pela compreensão política de que aquele verme era apenas um "soldado" da estrutura mortífera que uma meia dúzia de generais, almirantes e brigadeiros comandava por controle remeto, decidindo sobre as vidas de cada um, sob a proteção da censura e da cumplicidade da quase totalidade da mídia e de um empresariado pródigo em fornecer recursos para os porões da ditadura.
- Mas você tinha culpa no cartório - tentou justificar-se.

Não queria prolongar aquele diálogo macabro, não tinha obrigação de falar com o monstro, mas não sabia como esquivar-me. Para falar a verdade, as imagens da tortura em que muitas vezes desejei a própria morte para safar-me de tanta dor afetavam e imobilizavam meu cérebro nervoso.

Fiquei mais tenso ainda quando ele me perguntou:

- Se você agora é vereador, não tem segurança, não anda acompanhado?

Emudeci. Por que aquela pergunta? Estaria o torturador imaginando eliminar um arquivo capaz de expô-lo aos próprios descendentes como um dos "assassino da Ilha das Flores"?

Ele insistiu.

- Você escapou de morrer por um triz. Já tinha recebido ordens para mandá-lo para o inferno, já que você não colaborava e acabamos sem ter como reunir provas sobre seu envolvimento com o MR-8 e o Al Fatah. Ainda por cima, você acabou absolvido na Auditoria da Marinha, uma afronta ao nosso trabalho.

Continuei calado, inerte, sem conseguir dar um passo. Sem animar-me a balbuciar, pelo menos.

- Mas não se preocupe. O que passou, passou. Agora, estamos todos juntos. Eu até votei na esquerda - riu - em você, não, mas dei meu voto a um ex-subversivo que faz sucesso entre a garotada de hoje, que é muito mais light do que daquela época.

Lembrei-me da primeira porrada, naquele 2 de julho de 1969 (trecho do meu livro Confissões de um Incoformista":
- Quem te mandou sentar?
- O torturador Solimar, codinome Dr. Cláudio, acertou-me um tapa no meio da cara. A porrada me fez ver estrelinhas. Mijei-me na hora. Quem mandara sair apressado da cela, na ilusão de pegar o caminho de casa? Um pouco mais alto do que eu, óculos de garrafa e uns cornos que lembravam o Dr. Silvana, o torturador bufava, transpirando ódio e terror. Agarrou-me pelo pescoço e pôs-me de pé. Outra porrada me jogou ao chão. Sérgio, pernambucano grosseiro que vestia uma camisa branca de SPC - soldado de primeira classe - dos Fuzileiros Navais, comemorou com um sorriso de canto de boca. Estava começando uma sessão de tortura na casa 9 da Ilha das Flores. Quarta-feira, 2 de julho de 1969.
Enquanto o sargento Antunes espremia meu peito contra o chão, Solimar fez-me cheirar o chulé do seu pé:
- Qual é a cor da minha meia, seu filho da puta?
Que pergunta mais insólita, pensei. O que tem a ver a meia com as calças?
- Qual é a cor da meia do pé direito? - especificou. Já que insistia tanto, respondi:
- Azul -um azul piscina, diria.
- E do esquerdo?
- Do esquerdo?
- Do pé esquerdo, seu veado.
- Certamente, azul também.
A resposta o enlouqueceu.
- Não, seu puto, do pé esquerdo é azul marinho, é mais escura.
Percebi que tinha um bom estoque de palavrões, mas não consegui atinar para sua insistência sobre o colorido de meias tão fedorentas. Afinal, não podia admitir que tinha levado aquelas porradas todas só para falar de meias azuis e suas variáveis.
Naquele encontro interminável esqueci até da maleta que ia comprar. Olhei para o relógio e disse que estava atrasado. O torturador não queria me lugar. Parecia ter renascido nele toda arrogância e todo o sadismo que marcaram sua personalidade nos porões do Cenimar.

E eu, que já exercia o terceiro mandato de vereador aqui no Rio de Janeiro, sem saber o que fazer. Olhei para a sua cintura e vi claramente que tinha um revólver. Provavelmente para reagir a alguma outra vítima mais rancorosa.

Consegui desvencilhar-me do Solimar, enquanto contemplava o vai-e-vem da Carioca, pessoas acotovelando-se nas pastelarias dos coreanos, e alguns mais ligados numa música sertaneja que um bar tocava.

Não tinham a menor idéia de que um monstro passeava por ali, mesmo disfarçado, tentado exorcizar seus crimes ou alimentar-se de suas lembranças.

Conto esse episódio hoje na esperança de que os brasileiros sejam finalmente apresentados à verdade. Que essa comissão em formação não seja apenas uma peça caricata, condicionada por meias verdades.

Talvez quando tudo vier à luz do dia, quando os horrores dos nossos cárceres forem revelados, doa a quem doer, talvez seja outra a reação de alguém como eu diante de um algoz perverso e canalha.

Talvez essa sociedade envolta numa perigosa cortina de fumaça abra os olhos e comece a atuar politicamente, ao invés de ficar à margem criminalizando a vida pública,  enquanto se pode fazer alguma coisa em nome desse arremedo de democracia.
 
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