A arte de um esquizofrênico


Vivian Virissimo
A história de um homem diagnosticado como esquizofrênico-paranóico que conseguia extravasar suas emoções em um trabalho catártico e comovente. Esta poderia ser uma história trivial de terapia ocupacional se o resultado da obra deste homem não se consistisse num dos pontos mais altos da arte contemporânea brasileira. Em cartaz no Santander Cultural até o dia 29 de abril, a exposição “Arthur Bispo do Rosário – A poesia do fio” mostra as obras de maior vulto do sergipano que viveu cinquenta anos enclausurado na Colônia Juliano Moreira, um hospício carioca que — como todos os outros manicômios brasileiros –, tratava os doentes psiquiátricos a base de química e choques elétricos.
E dentro deste contexto que Arthur Bispo (1909-1989) nega o esperado papel da estagnação pessoal e coloca mãos à obra para transformar seu ócio em criação. Desfiando os uniformes dos internos do hospital, o artista encontra sua matéria prima e marca registrada: as nunces de azul das linhas utilizadas em seus bordados. “Bispo é a prova real de que o homem pode criar, não importa as dificuldades técnicas ou materiais”, escreveram Wilson Lazaro e Helena Severo, os curadores da exposição.
As obras são perturbadoras por transpor as fronteiras da insanidade, da realidade e da arte. Refugiado em sua cela, Bispo mesclava genialidade e doses de delírio para compor as instalações, colagens e tapeçarias.
Não bastasse ter sido encarcerado em um manicômio, Arthur Bispo também demorou para ser reconhecido no campo artístico e assumiu, mais uma vez, um papel marginalizado, agora no circuito das artes no Brasil. Sua obra delirante só foi reconhecida após uma matéria do jornalista Samuel Wainer Filho veiculada em 1980. Dois anos depois, o crítico de arte Frederico Morais incluiria suas obras na exposição “À Margem da Vida”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM.
No total, Bispo elaborou mais de mil obras que foram consagradas no mercado internacional e que circulam em diferentes museus internacionais. O conjunto foi tombado em 1992 pelo Instituto Estadual do Rio como patrimônio artístico e cultural e atualmente está sob os cuidados da Associação dos Artistas da Colônia Juliano Moreira.
A arte como válvula de escape
Negro, sem documentos e indigente, Bispo foi interditado em dezembro de 1938, aos 29 anos. Antes de ser internado, peregrinou por várias igrejas e terminou no Mosteiro de São Bento, onde anunciou a um grupo de padres que era um “enviado de Deus”, incumbido de “julgar os vivos e os mortos”. Os padres não simpatizaram com a ideia e chamaram soldados que o prenderam imediatamente.
Neste documentário, o jornalista Fernando Gabeira conversa com Bispo:
Detalhes dessa narrativa constam, inclusive, em um estandarte bordado por Bispo, uma das belas peças de sua vasta obra, que mistura autobiografia e ficção. É nesse estandarte que ele registra a frase-síntese de sua vida e obra “Eu preciso destas palavras – Escrita”. “A palavra tinha para ele status extraordinário, por isso seus bordados estão repletos de nomes de pessoas, trechos poéticos, mensagens”, explica a jornalista Luciana Hidalgo, autora de Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto, ganhador do Prêmio Jabuti de 1997.
Além disso, muito antes do festejado artista plástico Vik Muniz (para saber mais veja o documentário Lixo Extraordinário), Bispo já produzia objetos com diversos tipos de materiais oriundos do lixo e da sucata. Ele utiliza sobretudo algodão, mas materiais como madeira, concreto, linha, plástico, metal e vidro também podem ser observados nas obras. Quando foram descobertas, críticos classificaram sua arte como vanguardista e chegaram até mesmo a ser comparadas à obra de Marcel Duchamp. Tiveram impacto não só na teoria crítica da arte, na arte contemporânea, mas também nas terapias ocupacionais e na medicina. Bispo chegou a representar o Brasil na prestigiada Bienal de Veneza.
Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Em vida, Arthur Bispo sempre rejeitou o rótulo de artista, dando um caráter somente “divino” as suas criações. Ele faleceu há vinte anos, mas sua vida e obra seguem intrigando em razão do seu inusitado “atelier” e do seu singular “modus operandi”: Bispo não só resistiu a um ambiente completamente adverso, mas conseguiu catalizar suas angústias em um incrível esforço criativo.

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