MEMÓRIA E VERDADE
Quando as ditaduras caem, também caem seus hierarcas, se desmentem os seus dogmas e a verdade dá o ar de sua graça. O reencontro dos povos com a liberdade, das nações com as democracias, do homem com o seu destino de grandeza, é sempre um grande espetáculo.
Inesquecíveis as imagens dos portugueses indo às ruas depois do 25 de abril, soterrando meio século de ditadura salazarista, rompendo grilhões, distribuindo cravos vermelhos e cantando 'Grandôla, Vila Morena', a música de Zeca Afonso que serviu de senha para o início da revolução libertadora. Foi a mais bela das célebres primaveras do velho Portugal. Do já longínquo ano de 1974 até os dias de hoje, os portugueses conheceram momentos de bonança econômica ou enfrentaram duras crises, mas os tempos de ditadura são lembrados com dor e o regime democrático é tão sólido quanto a devoção de nossos queridos irmãos d'além mar à liberdade.
Inesquecível, também, a imagem do defensor público Júlio Strassera, num tribunal argentino, encarando com coragem e serenidade os arrogantes generais, brigadeiros e almirantes que se revezaram em seguidas juntas militares e produziram um país derrotado na guerra, uma economia em frangalhos e mais de 30 mil mortos e desaparecidos: "Nunca más!". Passados exatos 35 anos do golpe de 24 de março de 1976, quando se derrubou a presidenta constitucional Isabelita Perón e quatro generais se revezaram na inglória função de ditador, e a Argentina busca - com coragem cívica e imensa tenacidade de seus governantes democráticos - esclarecer criteriosamente a história pavorosa de crianças recém-nascidas e que foram arrancadas para nunca mais dos braços de mães prisioneiras políticas; de homens e mulheres, jovens ou idosos, que, torturados até a morte em campos de extermínio localizados em quartéis e bases militares, foram embarcados em aviões da própria Força Aérea e tiveram seus corpos jogados em pleno mar; de intelectuais, jornalistas, líderes políticos, sindicalistas, professores ou simples cidadãos que foram sequestrados, torturados e cujos corpos jamais apareceram. Nas voltas que o mundo dá e por obra dos caprichos da história, os militares homicidas julgados por corajosa iniciativa do presidente Raul Alfonsín e anistiados pelo lamentável Carlos Menem, reencontraram-se com a repulsa nacional pelas mãos firmes do presidente Nestor Kirchner: a história não os esqueceu e os argentinos não os perdoaram.
Viva está, na memória dos paraguaios e do mundo, a silhueta cabisbaixa e alquebrada do déspota subindo lentamente as escadas do avião que o levaria ao exílio e a emoção, a alegria transbordante dos que, dos balcões do aeroporto de Assunção, miravam a cena patética que punha um ponto final em quase quatro décadas de cruel tirania do general Alfredo Stroessner? O Paraguai é hoje uma sólida democracia, com importantes avanços sociais e econômicos, nosso parceiro no Mercosul e na estupenda hidrelétrica de Itaipu, e destina ao seu passado profunda consternação e sincero repúdio. Nas terras guaranis respira-se o ar da liberdade.
No pequeno Uruguai, país de avançada estrutura social e sólida tradição democrática, instituiu-se ditadura militar feroz quando se quebra a normalidade institucional nos idos dos anos 70. Por mais de uma década se abarrotaram cárceres, inúmeros cidadãos desapareceram sem deixar pistas, dilapida-se a economia nacional e uma diáspora impressionante, onde quase 1/3 da população buscou o exílio fugindo do regime autoritário, espalhou-se pelo mundo. Após a redemocratização, em meados dos anos 80, algumas responsabilidades foram apuradas, mas a maior parte dos crimes não foi esclarecida e nem os criminosos punidos. A modelar sociedade uruguaia, que possibilitou aquela pequena e querida Nação ser chamada de "a Suiça das Américas", fechou o ciclo histórica à maneira dos grandes povos: levou para a presidência da República um ex-prisioneiro político e líder guerrilheiro, José "Pepe" Mujica, e revogou dispositivos legais que mais serviam de biombo para assassinos e torturadores do que de pálida anistia. Mujica realiza governo com aprovação recorde, não foi chamado de "revanchista" sequer por seus poucos opositores e os uruguaios querem conhecer mais e melhor um passado que os atormenta e envergonha.
O Chile, de tão sólida histórica democrática, ironicamente passou a servir de retrato pronto e acabado para o que se pode definir como ditadura: cruel, nefasta e assassina. Entre os anos de 1973 e 1989, o sanguinário Augusto Pinochet, chefiou governo que nasceu com a morte violenta do presidente Salvador Allende e fez da morte e da violência os instrumentos de manutenção de sua longa tirania. Milhares de exilados mundo afora, muitos deles caçados por sicários que os assassinavam em atentados à bomba ou emboscadas à mão-armada; adversários políticos confinados em campos de concentração nos longínquos territórios patagônicos, submetidos à maus tratos, fome e a temperaturas polares; parlamento, partidos políticos, associações de classe e sindicatos fechados; imprensa submetida a mais pesada censura; um número ainda hoje desconhecido de chilenos que foram presos, torturados, mortos e cujos corpos jamais foram encontrados por seus familiares: esse é o saldo da ditadura militar chilena.
Quando, depois de eleito por consagradora votação, o presidente Patrício Aylwin, estabelece em março de 1990 a "Comisión Nacional de Verdad y Conciliación", os chilenos começaram a conhecer detalhadamente o inventário de sangue e de dor, com os abusos, as torturas e os 'assassinatos-de-estado' patrocinados por Pinochet e seus aliados. O velho ditador, por um estratagema da Constituição que ele mesmo promulgara, era senador "biônico" e acumulava o comando do exército chileno. Nem assim escapou da verdade e da justiça. Em pouco tempo respondia a vários processos por mortes e desaparecimentos, além de uma ordem de detenção internacional que o reteve em Londres por mais de um ano em regime de prisão domiciliar. Os chilenos buscaram sua verdade histórica. E ela apresentou-se dolorosa, dura, permeada de depoimentos sofridos de impressionantes torturas, de crueldades aplicadas com requintes de sadismo, de homens e mulheres que pagaram com a própria vida o preço alto de sonhar com um país melhor, um Chile livre e democrático. E mais uma vez a história, caprichosa e inexorável, acertou suas contas com a ditadura militar, quando levou à presidência do Chile a filha de um militar legalista, brigadeiro da Força Aérea assassinado numa prisão do regime de Pinochet. E Michelle Bachelet, ela e a mãe também presas, torturadas e exiladas, ocupou o Palácio de La Moneda com competência e honradez, realizando uma gestão consagradora que lhe valeu a mais alta aprovação popular a um governante chileno em todos os tempos.
No Chile, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, que eram parceiros do Brasil pós-64, do Brasil da OBAN e do DOI-CODI, do Brasil da tortura e dos desaparecimentos, na terrível "Operação Condor" (uma multinacional para matar adversários políticos das ditaduras de então), aqueles que ousaram quebrar a ordem constitucional e atraiçoar a democracia pagaram pela traição aos seus países e seus povos. No Brasil, isso não aconteceu e nem vai acontecer. Foi realizado um processo de redemocratização negociado com o próprio regime, com a Anistia que possibilitou a volta dos exilados ao país e dos cassados à vida pública. Mas é preciso conhecer a verdade, é preciso saber detalhadamente o que foi feito nos subterrâneos do pior período de nossa história republicana, quiçá, de toda nossa história.
A presidenta Dilma Rousseff, ao dar posse aos membros da Comissão da Verdade, escreve um capítulo necessário e inesquecível na história de um país que, como ela própria, conheceu a crueldade e o terror da ditadura, e que, mesmo sem o intuito do revanchismo, quer conhecer essa triste história, essa história que jamais permitiremos que se repita, mas que jamais será esquecida pelos que amam o Brasil e a liberdade.
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