Ao contrário da maconha, que entorpece e embaralha a consciência em uma dispersão incompatível com trabalho ou atividades que exigem eficiência operacional, a cocaína parece aumentar este tipo de eficiência, e por isso é percebida como uma droga que "ajuda" em certas tarefas, especialmente naquelas em que existe uma grande pressão. Não surpreendentemente, a cocaína surge como uma bengala em locais onde a competição é exacerbada.
A droga proporciona uma distância emocional que permite suportar o insuportável e, por sua vez, abre a porta para habitar esse universo "mágico" que é o da diversão dos vencedores desse mundo competitivo, aqueles que não têm fissuras, dores, dúvidas ou preocupações. O medo, a ansiedade, a fragilidade, as emoções normais para a condição humana, são postas de lado quando a cocaína coloca uma "casca grossa" nas pessoas que a utilizam, protegendo-as contra os seus próprios estados de ânimo e contra este meio ambiente que considera a emotividade como desnecessária, um sinal de fraqueza e fracasso no mar dos “cascas grossas”, dos descolados e dos vencedores.
O efeito anestésico da cocaína, que blinda a emotividade e a capacidade empática, evita qualquer "dano" que esse "outro" significa na vida cotidiana. Se há algo que distingue a cocaína é o egoísmo de suas idiossincrasias e da cultura que ela representa. O consumidor de cocaína "faz a sua parte", mas sem capacidade de criar raízes emocionais em qualquer coisa. Na verdade, isso é o que busca: não sentir, para seguir em frente (independente da onde é o “em frente"), impulsionado pela vivência onipotente e indolor que propõe a droga e a cultura que ela representa.
O indivíduo da cultura cocaínica, onipotente e emocionalmente anestesiado, se sustenta por força do consumo. Ao contrário, a pessoa aberta a sua limitação individual e que não nega essa fragilidade, pode ver nessa condição um vínculo com o outro. Esse vínculo gera rede e essa rede que o liga com seus semelhantes é o que, por milênios, permite que os indivíduos e as sociedades durem, além da dor, das misérias e dos desastres. Que esse mundo mentiroso que hoje representa a cocaína não mude e machuque a quem, com ou sem razão, e com a fragilidade a reboque, constrói o mundo com essa rede que faz com que, por milênios, a humanidade continue sua marcha em direção ao melhor lugar possível.
Miguel Espeche
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