Scott Walker lançou, no mês passado, o disco "Bish Bosch", terceiro de uma série que define sua fase mais madura: arranjos sombrios e vocal de ópera
Em sua carreira solo, trabalho do músico assume postura mais densa: vanguarda disfarçada de pop music
Basta um giro pela trajetória de Scott Walker para compreender a reverência que sua música inspira em jovens compositores. Em quase meio século de carreira, o cantor estadunidense foi de ídolo teen a trovador autoral.
Seus hits com os Walker Brothers, mais conhecidamente "The Sun Ain´t Gonna Shine Anymore" (originalmente gravada por Frankie Valli e que ganhou versões por Cher e Keane), e seus primeiros trabalhos solos são marcos do pop dos anos 60 relembrados até hoje em estações de rádio saudosistas; os discos vanguardistas de sua fase madura vão do grotesco ao agonizante, trilhando uma tênue linha de poesia explorada em letras e arranjos viscerais que ecoam o lirismo das óperas de Alban Berg.
É como se desde o fim dos Walker Brothers, em 1978, o barítono de Scott se transformasse em um quase tenor, rompendo a estratosfera pop, e indo parar em um mundo sideral no qual a física de hits não se aplica, mas as raízes de seu canto permanecem intactas. Escutá-lo flutuar por esse infinito de matéria negra é apreciar um raro artista popular que não perdeu uma fagulha sequer de sua chama criativa ao longo dos anos.
"Não sou um artista de vanguarda. Tudo o que faço é vestir as minha canções. Se as letras me pedissem para soar como Mantovani (bandleader italiano de música de elevador), eu faria, pois seria esta a necessidade da canção", explicou em uma entrevista concedida à revista inglesa Wire, em 2012. Scott referia-se ao processo criativo das canções de "Bish Bosch", seu mais recente álbum, lançado em dezembro.
Trata-se do terceiro título de uma trinca de álbuns que define sua fase madura: arranjos sombrios, criados por fragmentos de rock, música atonal e experimentalismo, que sustentam - ou abandonam - um vocal operístico equilibrado entre a emoção exagerada e a elegância reservada. Os temas, como em discos desde "Nite Flights", o último dos Walker Brothers, considerado por muitos o início de sua fase tardia, vão do absurdo, ao histórico, ao científico.
Em "SDSS1416+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)", por exemplo, Walker baseou-se na história de um anão líbio, bobo da corte de Attila no século 4º, que morre congelado ao sentar-se em um mastro. Ao mesmo tempo, o título se refere ao corpo estelar mais gélido fora do sistema solar. Durante os 20 minutos de "Zercon", o tenor de Scott atravessa uma série de cenários musicais, desde um breu sonoro, acompanhado apenas por uma bateria, a um esquizofrênico fundo orquestral, que vai do melancólico ao prazenteiro, ao brutal em questão de segundos. A ambiguidade do tema da canção é recorrente na obra de Scott. Em "Jesse", de "The Drift", seu arrebatador disco de 2006, o irmão gêmeo natimorto de Elvis Presley é sobreposto às torres gêmeas, e uma sonoplastia explosiva imita os aviões de Osama Bin Laden e os primeiros compassos de "Jailhouse Rock".
"Bish Bosch", cujo título se refere ao pintor holandês e à palavra "bitch", é uma sequência mais agitada de "The Drift". A instrumentação elaborada leva o disco de heavy metal a escolas de samba e grupos de jazz. Há um par de peixeiras que se raspam no início de "Tar", e uma cria de tuba com saxofone, que serve de alicerce para a levada de "Epizootics". As diretrizes de Scott à sua banda são excêntricas. Pediu para que seu percussionista tentasse imitar garras que raspam a parte de dentro de uma casca de ovo em uma música, "Bish Bosch". Em "The Drift", ordenou ao músico que surrasse um pedaço de carne durante a gravação de "Clara", sobre a execução de Mussolini e sua amante Clara Petacci.
Mas, se este denso período tardio de Scott Walker soa assustador ou intragável, um giro pelos lançamentos que originaram as sombras atuais esclarece melhor a fase, e aponta a incansável coragem estética do cantor, desde o fim de sua carreira pop, nos anos 1970. Em "Nite Flights", o último dos Walker Brothers, um elo entre seu desesperado lirismo tardio é feito por arranjos que ecoam disco music e a sensibilidade pop de sua carreira. "Electrician", por exemplo, une uma melodia romântica com arranjos atonais.
A canção, uma das quatro feitas por Scott para o álbum, é o início de uma trilha que daria em "The Drift" e "Bish Bosch". Os seguintes álbuns, "Climate of The Hunter", lançado 6 anos depois, e "Tilt", de 1995, trouxeram canções com uma estrutura reconhecível. É música de vanguarda disfarçada de pop music: ritmos constantes, acordes escuros e melodias palatáveis, que se desfazem na medida em que Scott amadurece. Com "The Drift", uma barreira é rompida, e Scott parece falar conosco de algum canto longínquo do universo. Os que têm a coragem de ouvi-lo escutam histórias assustadoras e contagiantes.
Disco
Bish Bosch
Scott Walker
4ad Records
2012, 9 faixas
U$ 13,99 (amazon.com)
ROBERTO NASCIMENTO
AGÊNCIA ESTADO
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