Camaradas, apresento-lhes José Papagaio da Silva, vulgo Zé Papagaio. Eu vou lhes contar a história desse genuíno cidadão pertencente à nova classe média, de moral conservadora arraigada. Antes de criticar a personalidade do Zé, é preciso compreender o que ele viveu, presenciou, como foi criado, o mundo que vislumbrou e suas tradições.
José Papagaio da Silva nasceu no interior do Estado. Filho de família humilde, teve uma infância muito difícil e sofrida. Mesmo não tendo chegado a passar fome, a renda de sua família, composta por seus pais e mais cinco irmãos, sempre foi absolutamente suficiente para que todos pudessem mastigar.
Os pais do Zé Papagaio trabalhavam na lavoura, em uma grande fazenda, riquíssima, um infinito latifúndio, onde existia uma selva de café. Os donos da imensa fazenda, obviamente, viviam no luxo, tinham outras propriedades, carros importados, e os filhos estudavam no exterior. Em suas terras trabalhavam milhares de lavradores, entre eles o Zé Papagaio e toda sua família. Naquela época, quando os patrões não conseguiam vender a safra de café, o governo comprava-lhes toda a produção e as estocava, e por vezes colocava fogo na safra; era uma medida para impedir que os nobres fazendeiros fossem à bancarrota; extremamente necessária para poder salvar a economia do país.
Diziam os pais do Zé Papagaio: “Ainda bem que o governo ajuda o barão, pois se assim não fosse, o que seria de nós?” De fato, canjiquinha, inhame e farinha de milho não faltavam na casa do Zé Papagaio, e todos viviam aquela vidinha, sempre felizes, sem reclamar. Roupa era algo supérfluo; a mãe do Zé Papagaio lhe fazia calças e camisetas com sacos de açúcar. O Zé Papagaio e seus irmãos trabalhavam o dia todo, e frequentavam a escola no período noturno. O dia começava logo cedo; pelas quatro da manhã todos já estavam de pé. A água quente era passada na borra de café que sobrara dentro do coador de pano no dia anterior, e todos se dirigiam para os cafezais. Na marmita, canjiquinha engrossada com leite e açúcar. Vez ou outra, um pedaço de pão.
Pelos idos de 1964, o Zé Papagaio já era adolescente, e um tal vice-presidente da república, a quem chamavam de Jango, estava sofrendo tremendas pressões políticas, provenientes de “forças misteriosas e ocultas” para que não tomasse posse. O Zé Papagaio ficou sabendo que o tal Jango chegou a assumir a presidência, mas estava dizendo que queria fazer algo extremamente cruel e demoníaco, nas palavras de seus patrões: a reforma agrária. O que é isso? Bem, o Zé Papagaio não sabia o que era esse negócio de reforma agrária. Aliás, certa feita um amigo do Zé Papagaio falou tal termo proibido na hora do trabalho e foi dedurado para o capataz; o amigo do Zé e toda sua família perderam o trabalho. Reforma agrária? Ninguém sabia o que era. O padre, certa vez, explicou para a mãe do Zé Papagaio que reforma agrária é coisa de comunista, e os comunistas eram servos do diabo. Comunista? O que é isso? ninguém sabia o que era.
O Zé Papagaio leu em um pedaço de jornal que aquele tal Jango havia sido tirado do cargo pelo exército brasileiro. Naquela época a família do Zé Papagaio já tinha rádio, e nos programas jornalísticos ele sempre ouvia que a ordem precisava ser mantida, pois os comunistas queriam acabar com o Brasil. Nossa, todos morriam de medo dos comunistas. Embora ninguém soubesse quem eram e o que diziam os tais comunistas, todos tinham pavor. Morriam de medo. Na missa, as velhinhas sempre comentavam que os comunistas eram pessoas más, pois o padre mesmo havia contado isso a elas.
Na cidade tinha uns dois ou três coronéis, que eram pessoas de posse, ricos, donos da opinião pública e do pouco trabalho escravo que ainda podia ser encontrado. Esses coronéis odiavam os comunistas, a quem chamavam de “subversivos” e “terroristas”. Ninguém ousava mencionar tal palavra em via pública.
Alguns anos se passaram e a família do Zé Papagaio comprou uma televisão, em branco e preto mesmo. Como era gostoso reunir todos os vizinhos nas noites para assistir às novelas e ao Jornal Nacional, já existente naquela época. Aquilo sim era progresso; o Zé Papagaio sempre via o jornalista falar sobre o “Milagre Brasileiro”. Mesmo sem entender o que era aquele tal milagre, sobre o qual todos os canais falavam, o Zé aceitava aquela versão como sendo a verdade absoluta. O repórter falava sobre a qualidade de vida no Brasil, que havia melhorado muito desde que os generais tomaram o poder. Ninguém contestava. Aliás, ninguém era louco de contestar. Falar sobre política ou mal do regime era algo impensável. Mesmo porque o Zé tinha conhecimento que alguns homens da cidade desapareceram depois que policiais lhes retiraram à força de dentro de suas casas, sem que eles tivessem cometido qualquer crime; mas por terem falado mal do governo. Aceitavam o que o jornal lhes dizia, e dormiam em colchão de palha.
O Zé Papagaio conseguiu concluir o ensino fundamental com muito esforço. Conhece o básico da língua e tem bom raciocínio matemático. Só. No começo de sua juventude, o Zé Papagaio teve uma ideia; ele tinha uns trocados e foi até uma feira, onde comprou uns pés de alface. Algo veio à mente do Zé Papagaio, e ele conseguiu vender aqueles pés de alface na rua de baixo, pelo dobro do preço. Ele gostou da ideia, e comprou outros pés de alface, e os vendeu, novamente por um preço bem maior. Outros amigos do Zé tentaram fazer o mesmo que ele, mas não tiveram a mesma SORTE. O Zé Papagaio teve sua OPORTUNIDADE, e a agarrou com toda força. Ele conquistou uma boa freguesia, e naquela cidade obviamente não haveria espaço para dois vendedores de alface. Tratava-se de uma cidadezinha muito pequena, e a ideia dele apenas deu certo para ele. Os fregueses gostavam do Zé Papagaio. Tornou-se ele comerciante de alfaces. Em pouco tempo, montou uma feirinha. Conheceu os juros e passou a viver deles.
Casou-se e teve três filhos. Como pequeno comerciante, conseguiu dar uma vida bem melhor para seus descendentes. O Zé Papagaio vive em um bairro onde a casa dele é a melhor. Ele tem seu carro, também. Todos no bairro trabalham, todos. O Zé também sempre diz que trabalhava demais. Nossa, como é horrível ter que atender a esses fornecedores chatos, e ficar contando dinheiro no final do dia, para levar ao banco.
O Zé Papagaio gosta de assistir ao programa do Datena. Em sua quitanda há uma televisão, onde no final de todas as tardes ele sintoniza o jornalístico. O Zé sempre diz que é uma pessoa extremamente informada: vê o Datena, à noite não perde um Jornal Nacional e recentemente assinou a Veja. “É preciso saber das coisas que estão acontecendo”, diz sempre o Zé. Por ter a mania de ver o Datena todos os dias, o Zé Papagaio passou a assimilar que todo bandido é pobre. Assim, Zé Papagaio colocou na sua cabeça, por dedução ou analogia, que se todo bandido é pobre, todo pobre é bandido. Bem próximo à entrada da quitanda do Zé Papagaio ele ostenta a imagem da santa preferida dele, que lhe serve para espantar os “maus agouros” e os “vagabundos”. Tal rótulo, “vagabundos”, o Zé Papagaio atribui às pessoas mais humildes que moram no bairro. É que na mente do Zé Papagaio, tais pessoas se parecem fisicamente com os que o Datena mostra todos os dias em seu jornalístico de primeira linha.
Outra coisa que o Zé Papagaio não suporta é o Bolsa Família. O Zé Papagaio abomina isso. “Onde já se viu o governo dar dinheiro para esse bando de vagabundos? Eu sempre trabalhei e nunca precisei disso pra viver. Agora nem é mais preciso trabalhar, porque o governo dá dinheiro para esses vadios”. Na verdade, o Zé Papagaio sabe que as pessoas do bairro que recebem o benefício são trabalhadoras e honestas, e que tal auxílio governamental é um complemento para suas rendas, para comprem alimentos. Ele sabe que aqueles cidadãos não são vadios. Mas o Zé Papagaio ouviu não sei quem dizer isso, e achou bonito; isso fez algum sentido para ele. É estranho o Zé Papagaio se manifestar assim, pois ele mesmo sabia que quando era criança, os governos de então davam o mesmo benefício, só que para os fazendeiros para os quais ele e sua família trabalhavam. Mas o Zé Papagaio se esqueceu disso. Aliás, não é que ele esqueceu. Ele não esqueceu. É que ele nem sabe porque diz essas coisas. Ele não parou para pensar. Está repetindo algo que disseram para ele.
Se tem uma pessoa a quem o Zé Papagaio odeia é o Lula. Impossível chegar na quitanda e não ouvir o Zé Papagaio xingar o Lula. “Esse é o maior ladrão do país”, entona o Zé Papagaio. E o faz mostrando para os fregueses as páginas da Revista Veja, que se tornou leitura obrigatória para o Zé. Aliás, é a única coisa que ele lê. Ou melhor, ele nem lê. O Zé Papagaio olha as fotos e as informações de rodapé. Isso é-lhe mais que suficiente. O Zé Papagaio se diz um cidadão extremamente bem informado. Ele odeia o Lula, mas não sabe por que odeia. Ele simplesmente odeia. Diz o Zé Papagaio “Esse cara estudou até a oitava série e virou presidente. Ah, povo ignorante desse país”. Estranho é que o Zé Papagaio também estudou até a oitava série, e por vezes diz “Se eu fosse presidente eu faria diferente. Eu tenho certeza que colocaria esse país nos trilhos”.
Certa feita alguém indagou o Zé Papagaio: “Zé, por que você não gosta do Lula?” E o Zé: “Porque não, porque ele é um ladrão”. E o interlocutor: “Mas, ladrão por quê? O que ele furtou? Você tem conhecimento do que está dizendo?” E o informado Zé: “Eu não gosto porque não, porque é minha opinião”.
O Zé Papagaio vive a dizer que a situação do país está uma merda, que a economia vai mal, e tal. Mas é estranho, porque na última década ele tem vendido mais, principalmente para os mais humildes do bairro que compram em sua quitanda. No entanto, o Zé Papagaio acompanha sempre os cálculos da Eliane Castanhede. Aliás, ele não acompanha, porque ele não consegue entender do que ela fala. Ele só vê. O Zé só assimila uma ou outra palavra ou frase onde é perceptível que a urubóloga está dizendo que tudo vai mal. É o suficiente pra ele. Mesmo ele vendendo mais em sua quitanda, para os mais pobres, rotula esses como vagabundos e absorve para si algo que ele mesmo percebe que é irreal. Mas é preciso "ter opinião". E o Zé Papagaio tem a sua.
O Zé Papagaio segue sua vida de “radical classe média”. Ele não é rico, mas também não é pobre. Está ali no meio. Nem pra lá, nem pra cá. Mas como todo bom “radical classe média”, o Zé Papagaio, que já esteve no andar de baixo da pirâmide social, abomina os que lá estão. Na missa, o Zé Papagaio reza com as mãozinhas no peito, olhando para cima com os olhinhos fechados, fazendo beicinho, pois é extremamente fervoroso em sua fé. O Zé Papagaio tem um poster enorme do Papa dos pobres na cozinha de sua casa. Mas curiosamente, em sociedade terrena o Zé Papagaio age em contradição com a pureza de sua própria fé.
O Zé Papagaio tem devaneios fascistas. Mas ele nem sabe disso. Aliás, como foi dito no início, é preciso compreendê-lo. Ele foi criado assim. Assim construíram a mentalidade do Zé Papagaio no decorrer das décadas. Ele não viu outra coisa. O Zé Papagaio é o genuíno produto da manipulação, do sistema. O autêntico brasileiro globalizado. O Zé Papagaio.
E quem não conhece um Zé igual?
JOÃO PAULO DA CUNHA GOMES
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